Intercongregacionalidade na Vida Religiosa Consagrada

Um olhar ao presente a partir da história.[1]

Frei Vanildo Luiz Zugno

A Vida Religiosa (VRC) congregacional surgiu com a modernidade, com o fim da modernidade experimenta o seu declínio e, junto com ela, caminha para a extinção! Afirmação tão peremptória pode ser rejeitada por alguns como sem sentido e por outros como simples pessimismo catastrofista.

Um breve olhar sobre a história da VRC e sobre a origem da forma congregacional de ser religioso e religiosa e um olhar sobre as novas realidades que o atual momento da modernidade vive, nos mostram, no entanto, que sim, a atual forma de VRC organizada em Congregações está, queiramos ou não, caminhando para o seu declínio, talvez definitivo[2].

Mas isso não significa necessariamente uma má notícia. Pode ser o início de uma nova forma de VRC que já vai se vislumbrando no horizonte. Neste artigo, partindo de uma retomada histórica das várias formas de VRC que se formaram na Igreja do Ocidente, nos propomos ver como, sob o ângulo da missão, as experiências intercongregacionais são, além de uma exigência dos novos tempos, um sinal indicativo de uma nova forma de VRC.

A Vida Religiosa monástica e a fuga mundi

Por seu caráter profético, a VRC sempre foi um fenômeno minoritário estabelecido na liminariedade da Igreja e da sociedade. Desde o início ela foi constituída por pequenos grupos de homens e mulheres que, na decisão de viver radicalmente a proposta do Reino de Deus, abdica dos espaços de poder na Igreja e na sociedade para construir junto aos setores marginalizados comunidades que sejam testemunho das possibilidades da presença de Deus no meio de nós.

E é nos momentos de crise da sociedade e da Igreja que a VRC surge como alternativa de recomposição do cristianismo através da volta ao Evangelho de Jesus Cristo colocado como parâmetro utópico para toda a sociedade[3].

A VRC monástica, a primeira historicamente a surgir, foi, ao mesmo tempo, uma crítica à Igreja e à sociedade vigentes e uma proposta de uma nova Igreja e uma nova sociedade. Em meio à mudança de época provocada pela decadência do Império Romano e acelerada pela imigração de povos vindos do oriente e que mudam drasticamente o panorama econômico, político e social da Europa ocidental, homens e mulheres, muitos deles de notável posição social e eclesial, tudo abandonam e vão viver no deserto para ali testemunharem a utopia do Reino de Deus através de uma vida ascética de oração e trabalho, na comunhão de bens e de vida na presença do Abade que representa o único Abbá-Deus.

Durante séculos os mosteiros foram, mesmo em meio a contradições, um refúgio seguro em meio a uma sociedade marcada pela insegurança e violência. Neles, além do cultivo da memória evangélica de uma comunidade de irmãos, também se colocaram as bases, tanto da ciência como da tecnologia que propiciaram a construção da civilização ocidental. Encaixados dentro da realidade feudal na qual se constituiu a Europa, os mosteiros foram pouco a pouco constituindo-se como feudos ao lado de outros feudos. A diferença era o seu caráter sagrado. Diferentemente dos outros feudos que se constituíam pelo poder das armas, os mosteiros se constituíam pelo poder da fé e, nela embasados, se erigiram como um mundo pleno de sentido e de ação no interior dos muros e nas suas extensões territoriais. Neles, salvação e produção caminhavam unidas. Estar no mosteiro era viver no presente o Reino de Deus, tanto no sentido espiritual como no material. A vida no mosteiro garantia a distância do mundo – lugar de perdição – e o acesso aos bens necessários para a sobrevivência. Sair do mosteiro era voltar para o mundo, para a perdição e, ao mesmo tempo, perder a garantia da sobrevivência.

A crise econômica, política, social e cultural que começou a tomar conta da Europa na virada do primeiro para o segundo milênio e que teve como motores principais o renascimento das cidades e do comércio, fez com que a ordem feudal, da qual a VRC monástica fazia parte, entrasse em crise. A “querela das investiduras”, a afirmação das comunas como unidades políticas autônomas em relação aos senhores feudais e dos burgueses como classe social emergente que buscava a afirmação na sociedade, são sinais de crise no sistema feudal. Para sustentar-se diante dos imperadores e príncipes que querem impor sua vontade ao Papado, este busca o apoio dos monges. De marginais, tanto na sociedade como na Igreja, os monges passam a assumir a função de bispos, papas, príncipes e reis. De sinal alternativo, passam a ser parte e, muitas vezes, a pior parte: a que quer conservar tudo como está, tanto na sociedade como na Igreja…

A Vida Religiosa mendicante e a itinerância pelo mundo

Neste momento de crise, o Espírito faz surgir um novo tipo de VRC, a Mendicante. Junto com outros, Francisco de Assis é um dos que espelham essa nova forma de VRC[4]. Abdicando do voto de estabilidade e da segurança que o mosteiro possibilita, o frade mendicante parte pelo mundo, sem levar coisa alguma pelo caminho, nem bordão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas (Lc 9,3), com a única finalidade de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo que se resume no testemunho da paz e do bem em meio a um mundo marcado pela guerra e pela opressão.

Como sinal de seu deslocamento em relação ao velho modelo de VRC, o mendicante não quer viver das rendas provindas das propriedades fundiárias ou dos benefícios de algum encargo eclesiástico ou social. Para ser livre, o frade vive do trabalho das próprias mãos e da esmola que é a mesa dos pobres. A fraternidade vivida no novo modelo não se restringe aos que vivem dentro dos muros do mosteiro, pois “nosso convento é o mundo” (Sacrum Commercium, 63), mas se abre a todos os homens e mulheres, independentemente de sua condição social (maiores ou minores), de sua condição física (sadios ou leprosos), eclesiástica (leigos ou clérigos), moral (trabalhadores e ladrões), religiosa (cristãos ou muçulmanos).

Francisco de Assis, assim como seus companheiros de movimento, têm a clara consciência de que não basta uma reforma na VRC. É preciso inovar, criar algo novo. Instado pelo bispo de Assis a adotar a forma de vida monástica ou eremítica (Tomás de Celano, Vida primeira, 33), Francisco se recusa e permanece firme no seu propósito de que o único princípio de toda VRC só pode ser o Evangelho e que toda regra deve se submeter à regra primeira de “observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade” (Regra não-bulada, 1; Regra bulada,1).

Para não cair na tentação do poder e da volta ao centro eclesiástico e mundano, o frade não pode e nem deve assumir nenhuma função de mando, seja na Igreja seja na sociedade. A narrativa hagiográfica do Espelho da Perfeição traz presente a memória de Francisco e Domingos e seu cuidado para que os frades não se deixassem tentar pela volta ao antigo modelo de VRC. É uma narrativa de tal modo significativa que vale a pena ser trazida na sua íntegra:

Quando São Francisco e São Domingos se encontravam juntos, em Roma, na presença do bispo de Óstia, que depois se tornou Papa, enquanto falavam de Deus em termos mais doces que mel, o Senhor Bispo de Óstia lhes falou assim: “Na Igreja primitiva os pastores e os prelados eram pobres, ardentes de caridade e destituídos de ambições. Por que não faremos de vossos frades bispos e prelados que superarão os outros pelo testemunho e pelo exemplo?”

Estabeleceu-se então um diálogo humilde e piedoso entre os dois santos, não que um quisesse convencer o outro, mas para ceder alternativamente a palaVRCa e levar o outro a uma resposta. Por fim prevaleceu a humildade de São Francisco em não ser o primeiro a responder, recaindo a escolha sobre são Domingos que humildemente aceitou a incumbência de ser o primeiro a responder. São Domingos então respondeu: “Senhor, com esta experiência meus frades receberiam, por certo, grande honra; mas, tanto quanto puder impedir, não permitirei que eles recebam nem mesmo a aparência de uma dignidade”.

Ao ouvi-lo, São Francisco inclinou-se ante o cardeal e lhe disse: “Senhor, meus frades são chamados menores para que não pretendam tornar-se maiores. Sua vocação os obriga a permanecer em posição modesta e a seguir as pegadas de Cristo, a fim de, por este meio, serem elevados mais que os outros aos olhos dos santos. Se, pois, desejais que eles produzam frutos na Igreja de Deus, conservai-os e mantende-os no estado de sua vocação e, mesmo que eles aspirem a alguma honra, fazei-os voltar a sua antiga posição e não permitais que sejam elevados a qualquer dignidade” (43).

Francisco é tão cuidadoso em que os frades não assumam nenhum poder de mando que, na Regra não-bulada (VII,1-2) estabelece que “nenhum irmão, onde quer que esteja para servir ou trabalhar para outrem, jamais seja capataz, nem administrador, nem exerça cargo de direção na casa em que serve, nem aceite emprego que possa causar escândalo ou “perder sua alma” (Mc 8,36).

A itinerância talvez seja, dentre todos os elementos que compõem a VRC mendicante, a que mais caracteriza este novo estilo de VRC, que é “seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: ‘Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus, e vem e segue-me”. E: “Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me”. E ainda: “Se alguém quiser vir a mim e tiver mais amor ao pai e à Mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e mesmo à própria vida, não pode ser meu discípulo”. E: “Todo aquele que deixar pai ou Mãe, irmãos ou irmãs, mulher ou filhos, casas e campos, por amor de mim receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt 19 21; 16,24; Lc 14,26; Mt 19,29); (Regra não-bulada, I, 2-6).

A Vida Religiosa missionária e a transformação do mundo

O Espírito inovador de Francisco, Clara de Assis, Domingos de Gusmão e outros pais e mães fundadores e fundadoras da VRC mendicante e itinerante encontrou, tanto na Igreja como na sociedade, enormes dificuldades para se estabelecer. E dificuldades também por parte daqueles que, num primeiro momento, tinham entusiasticamente aderido a formas de vida tão radicais. Não é fácil viver permanentemente na itinerância! Dentro do movimento franciscano, tanto por parte de frades como por pressão da Igreja, logo após a morte de Francisco começou um movimento de mitigação da radicalidade original do carisma e de enquadramento eclesial e social da nova forma de VRC. Enquadramento que chegou à sua concretização no generalato de Boaventura (1257-1274) e que teve como sinais principais o retorno à vida conventual e a clericalização da Ordem[5].

O sonho de uma VRC autenticamente evangélica dentro da nova realidade social que se desenhava, porém, não morreu. Ele continuou vivo na memória de muitos frades que lutavam para manter viva a proposta de Francisco[6]. Angelo Clareno (1247–1337), Pedro João Olivi (1248-1298), Ubertino de Casale (1259–1329), Michele di Cesena (1270-1342) foram, entre outros, frades que, insatisfeitos com os rumos tomados pelo Movimento Franciscano, pregavam uma volta radical ao ideal de pobreza e itinerância[7]. E não eram os únicos… A insatisfação com a situação da Igreja e da sociedade fez com que os clamores por uma reforma da Igreja e da sociedade, cada vez mais necessária e sempre protelada, criassem o clima de convulsão social e eclesial que desaguou na Reforma protestante que, por, ironia da história, teve como seu porta-voz principal um monge agostiniano, frei Martinho Lutero.

Disposta a colocar ordem no caos social e eclesial que tomou conta da Europa, a Igreja recorre a sua autoridade máxima, a Assembléia Conciliar em Trento que, para dar conta da extrema situação, durou 15 anos (1545-1560). É neste clima de reforma que aparecem os embriões daquilo que viria a ser a Vida Religiosa da missão, modelo até hoje dominante.

As primeiras experiências do que mais tarde viria a constituir as atuais congregações religiosas surgem no final do séc. XV e início do séc. XV, na Itália. São as Companhias do Amor Divino: grupos de clérigos e leigos que se reúnem para rezar, celebrar a eucaristia e trabalhar nos hospitais. Dedicação ao Cristo Eucarístico e ao Cristo presente na pessoa que sofre são as motivações que reúnem essas pessoas que, sem querer renunciar ao seu caráter mundano, se propõe a viver a reforma por tantos desejada na Igreja. Não querem ser nem monges nem mendicantes. Apenas buscam a perfeição e a caridade ali onde Deus é mais visível: na ignorância, na orfandade, na enfermidade.

Destas Companhias do Amor Divino surgirão as primeiras congregações religiosas, os Clérigos Regulares. O objetivo é a reforma da Igreja através da revitalização da vida sacerdotal e de uma missão apostólica centrada no anúncio de Jesus Cristo e na presença junto aos que mais sofrem na sociedade. Desta experiência nascem as primeiras obras sociais e missionária de grande audácia e envergadura: primeiras escolas gratuitas da Europa (José de Calazans), assistência sanitária especializada e integral (Camilo de Lélis), reduções e inculturação chinesa e hindu do cristianismo (jesuítas).

No séc. XVIII surgem as primeiras congregações clericais que se dedicarão especialmente à pregação popular. São os padres Montfortianos (1705), Padres do Espírito Santo (1703), Passionistas (1720) e Redentoristas (1732), que incorporam ao grupo alguns irmãos leigos que os auxiliam nas tarefas apostólicas.

Um grupo de religiosos leigos só surgirá na França, em 1681, com João Batista de La Salle e os Irmãos das Escolas Cristãs. Com a onda liberal que toma conta da Europa no séc. XIX, a Igreja passa, na maioria dos países, para a clandestinidade. Muitas congregações são suprimidas e seus bens confiscados. Nesse contexto surgem as Pias Associações de clérigos ou leigos que vivem a sua fé no quotidiano da escola, da família, do hospital e de obras assistenciais. Surgidas quase sempre na clandestinidade civil e sob a proteção de algum bispo, estes grupos de homens e mulheres, para garantir sua expansão, buscam a proteção de Roma que, ao mesmo tempo que sente a importância destes grupos para manter viva a fé cristã na Europa, tem medo de sua autonomia laical. É só em 1900 que o Papa Leão XIII, com a Constituição Apostólica Conditae a Chisto, reconhece estas congregações. O Código de Direito Canônico de 1917, para completar a obra, tentará estabelecer uma uniformidade entre as congregações e submeter a todas à Cúria Romana.

No âmbito feminino, a situação foi ainda mais difícil. Depois da experiência inovadora de Ângela de Merici (1474-1540) e sua Companhia de Virgens que se dedicava à caridade e à educação da juventude, vivendo sem hábito e sem convento, a bula Circa pastoralis (1566) de Paulo V obriga todas as mulheres que desejam a vida religiosa à reclusão conventual. São Vicente de Paulo, para salvar a vida apostólica de suas Filhas da Caridade, faz com que renunciem ao título de religiosas. Será a luta de Mary Ward (1585-1645) e suas Damas Inglesas que levará Bento XIV a permitir, através da Constituição Apostólica Quanvis justo (1749) a organização de congregações femininas apostólicas.

Será, no entanto, mais uma vez a realidade social, política e cultural da Europa que se impõem e propiciará o surgimento e o desabrochar de um número incalculável de congregações religiosas femininas de caráter apostólico. Tendo perdido     seu poderio com o fim do modelo de Cristandade imposto pela Revolução Francesa e suas similares por toda a Europa, a Igreja verá na VRC feminina nascente a possibilidade de, a partir da assistência aos desvalidos, a possibilidade de continuar mantendo uma presença na sociedade.

A Constituição Apostólica Conditae a Chisto e o Código de Direito Canônico de 1917 colocarão as congregações masculinas e femininas sob o mesmo âmbito de legislação.

A VRC de formato congregacional nasce dentro do mundo moderno. E, como não poderia deixar de ser, é marcada, no seu ser e no seu agir, pelo paradigma da modernidade. Dentre os tantos elementos que compõem o modo de ser moderno, há um que influencia profundamente o ser e o agir das congregações e que exige, hoje, ser repensado: a especialização.

Com efeito, enquanto o ideal do sábio clássico é o de saber de tudo um pouco, ter um conhecimento universal (deste ideal nasceram as universidades, lugares onde se disponibilizava um conhecimento sobre todas as coisas existentes), o ideal do sábio moderno é o de saber tudo de apenas uma coisa. O mundo moderno é o mundo dos especialistas. A ciência foi dividida e subdivida em campos cada vez mais restritos que investigam o mais profundamente possível um objeto cada vez menor. E, o que também é característica da ciência da modernidade, cada ciência apresenta-se com a pretensão de ter a solução para os problemas do mundo e da humanidade e, nessa pretensão, foi se fechando em si mesma e encontrando cada vez mais dificuldades para dialogar com as outras.

A mentalidade de compartimentação presente no mundo das ciências pode também ser notada no campo da produção. Se, no mundo clássico, o ideal era cada pessoa produzir o máximo das coisas necessárias para a sua sobrevivência, no mundo moderno cada pessoa é educada ou treinada para saber fazer com perfeição apenas uma coisa. São os operários especializados. O taylorismo e o fordismo são a operacionalização desta forma de produzir que, se, por um lado, possibilitou um salto quantitativo na produção de bens, por outro, levou a sistemas produtivos desumanizantes criticados por seu caráter alienante e despersonalizante tanto por Karl Marx (O Capital) como por Charles Chaplin (Tempos Modernos).

Boa parte das congregações atuais, nascidas dentro damodernidade, é marcada pelo espírito de especialização. O carisma fundacional – geralmente de caráter amplo e abrangente – na prática se expressa através de um fazer muito específico: missões populares, missão ad gentes, cuidado de santuários, educação do clero, manutenção de hospitais, conversão de protestantes, conversão de judeus, ensino escolar, catequese, cuidado com os órfãos, criação de crianças abandonadas, acolhimento de viúvas, acompanhamento aos migrantes, ensino profissionalizante, adoração ao Santíssimo…

Normalmente, cada congregação se especializou num tipo muito particular de atividade para responder a uma necessidade urgente e emergente num determinado tempo e lugar. E o fez com tamanha dedicação e qualidade que possibilitaram o surgimento de instituições – escolas, hospitais, orfanatos, leprosários… – que ajudaram a amenizar muitos dos problemas criados pelo sistema produtivo moderno e foram assimiladas como características não só do mundo religioso, mas da própria modernidade.

Mudanças que indicam para a intercongregacionalidade

Três mudanças em curso nos últimos tempos fizeram, fazem e, certamente, farão ainda mais com que este paradigma da especialização de atividades como forma de expressão do carisma entre em crise, exija mudanças e, nestas mudanças, crie espaços de intercongregacionalidade. Duas delas se originam nas mudanças sociais e a não há como delas fugir. Ou as aceitamos e com elas trabalhamos ou somos por elas vencidos. A outra vem da dinâmica da Igreja e da VRC e exige uma aceitação criativa, por isso mais desafiadora.

  1. 1.      A evolução das condições sociais e a releitura do carisma

A primeira e mais simples, mas não por isso menos importante, é a evolução do mundo moderno, tanto no campo econômico como social que fez com que necessidades em outros tempos urgentes hoje não mais estejam presentes. Em certas regiões do mundo, a educação básica para os filhos dos trabalhadores é hoje suprida pelo Estado e, do ponto de vista social, não há mais sentido em se manter escolas religiosas. Do mesmo modo, a atenção à saúde ou aos órfãos. O Estado disso se ocupa. Mesmo na América Latina, em alguns países onde a doutrina do Estado mínimo[8] havia terceirizado educação e saúde para o terceiro setor, alguns Estados voltam a assumir a sua função de oferecer os serviços básicos à população. Pergunta-se então: ainda há sentido na VRC dedicada à educação e à saúde nestas regiões?

Diante destas novas realidades[9], muitas congregações partiram para a chamada releitura do carisma. A pergunta a responder é a de como, sem abandonar a intuição fundacional, resituar a vida e a missão da congregação diante das novas realidades econômicas, políticas, sociais e eclesiais? Como manter a identidade forjada no passado num mundo que mudou radicalmente e onde, muitas vezes, não existe mais o problema social ou eclesial que suscitou o surgimento da congregação? Na prática, trata-se de refundar a congregação em novas bases sociais e eclesiais.

E, nessa refundação, muitas congregações se deram conta que, apesar da origem, de diferentes fundadores e fundadoras, de longas histórias próprias, no mundo de hoje, tentam, cada uma a seu modo, dar solução ao mesmo problema social. Num mundo de economia e sociedade globalizada, problemas que em sociedades estáticas e com limites bem definidos pareciam totalmente alheios, hoje se encontram e devem ser juntos tratados. Neste contexto, para que continuarmos a agir separadamente se podemos agir conjuntamente e assim incidir com mais determinação e eficiência na superação dos problemas? Em outras palavras, nos damos conta de que somos muitos para sermos todos originais e de que é melhor trabalhar juntos do que trabalhar separados. Muitas das experiências intercongregacionais atuais nascem do reconhecimento desta realidade: duas ou mais congregações que na releitura do carisma atual dão-se conta de que, na sua missão, incidem sobre a mesma realidade social, começam a atuar conjuntamente.

A mudança de época possibilitada pelo surgimento das novas tecnologias da informação remodelou não só a base material da sociedade, a economia, mas também o âmbito do Estado e da sociedade e o modo como estes três âmbitos se interrelacionam[10].

A característica desta nova sociedade é a rede: nenhuma realidade pode ser compreendida em si mesma, mas no todo das relações que estabelece com as outras realidades. E isto desde o microcosmo até o macrocosmo. O caminho para o conhecimento não é o de separar e isolar cada coisa em si mesma para poder compreendê-la de forma clara e distinta (Descartes), mas saber relacioná-la com todas as realidades que a circundam e com ela interagem. Passa-se da dissecação à interligação. Para compreender o mundo é necessário passar da especialização à compreensão holística do mundo.

Dentro dessa compreensão, nos damos conta que nenhum problema existe em si mesmo. Ele sempre está relacionado com outros problemas. E isso também vale para os problemas sociais que as congregações surgidas na modernidade tentaram enfrentar. Tratar os doentes de uma determinada cidade ou região será uma ação ineficiente se junto não tratarmos os problemas de saneamento básico e de nutrição que levam as pessoas à doença. Acolher as crianças órfãs será uma tarefa sem fim se não forem erradicadas as causas da miséria que levam à morte prematura dos pais, à desestruturação familiar, à maternidade de adolescentes e ao consequente abandono das crianças. Para solucionar um problema pontual, é necessário agir sobre todos os nós e todas as linhas que unem os múltiplos nós da rede social.

Habituadas a dedicar-se exclusivamente às obras que buscaram concretizar historicamente o carisma fundacional, as congregações religiosas têm dificuldade em ressituar-se neste mundo em rede que exige não apenas um agir intercongregacional, mas pede ir além das próprias congregações e situar-se numa realidade transcongregacional, ou seja, uma vida religiosa em que cada um contribui com seu carisma e atividade tradicional num projeto de sociedade que ultrapasse o âmbito e os objetivos de cada instituição particular. O desafio, neste novo contexto, é formar uma rede de comunidades religiosas que se decidam a agir conjuntamente sem esperar resultado para a sua própria congregação[11].

Na América Latina, a inserção em espaços sociais marginalizados e abandonados pela Igreja, seja no campo ou na cidade, tornou-se o espaço privilegiado de intercongregacionalidade. Religiosos e religiosas provindas de congregações que tem como atividade privilegiada de sua identidade carismática a educação, o cuidado com a saúde, a missão popular ou ad gentes… encontraram no ativismo social (a luta pela democracia e pela construção de uma nova sociedade) e no ativismo eclesial (a construção de uma nova Igreja, particularmente as CEBs) uma nova razão e um novo modo de ser na VRC. Na prática, religiosos e religiosas vivendo na inserção se sentem muito mais irmãos e irmãs de outros religiosos e religiosas de outras congregações vivendo a mesma realidade social e eclesial do que dos seus irmãos ou irmãs de congregação de origem que seguem vivendo em realidades sociais e eclesiais de classe média ou abastada.

As diferenças na VRC não se dão mais entre os que pertencem a esta ou aquela congregação, a este aquele carisma ou pelas atividades exercidas. O que faz a diferença é o lugar social e eclesial em que cada uma se coloca: ao lado dos pobres que buscam superar sua condição de miséria ou opressão, ou do lado dos setores privilegiados da sociedade que usufruem das benesses de uma sociedade injustamente desigual.

Essa foi e ainda continua sendo a intercongregacionalidade prática que já não se coloca a questão das congregações particulares. Sua única preocupação é congregar os filhos e filhas de Deus dispersos e sofredores e, na radicalidade da opção evangélica, vencer os “a conspiração de príncipes […] que devoram as pessoas, tomam-lhes os bens e as riquezas, e multiplicam as viúvas” (Ez 22,25) e, unindo homens e mulheres de toda de “toda nação, tribo, povo e língua” (Ap 7,9), construir uma nova Igreja e uma nova sociedade.

O pouco tempo de existência ainda não permitiu uma institucionalização desta nova forma de VRC. Na grande maioria das experiências, cada religioso e cada religiosa, mesmo vivendo intensamente esta nova forma de VRC, continuou a pertencer a sua própria congregação de origem e vivendo uma dupla tensão. Por um lado, a da luta contra as forças sociais e eclesiais repressivas de tudo o que viesse questionar o status quo. Por outro, o questionamento por parte dos membros das congregações que não fizeram o passo em direção à opção pelos pobres e se sentem questionados pelo novo estilo de vida e de vivência da missão indicado pelos religiosos e religiosas vivendo na inserção. O medo das congregações é o de perder membros com alto potencial que já não se dedicam à sobrevivência da instituição, mas à transformação da sociedade e da Igreja.

Concluindo…

A maioria dos homens e mulheres que hoje chamamos de fundadores e fundadoras de nossas congregações religiosas, no tempo em que se sentiram o chamado de Deus para fazer algo em favor das pessoas concretas que a seu lado estavam sofrendo as consequências da irrupção da modernidade capitalista, não tinham a intenção de fundar uma instituição com carisma, constituições, costumários, superiores, capítulos… enquadrados pelo Direito Canônico que a tudo coloca limites. São raros os que não tiveram algum tipo de problema com a Igreja. Muitos foram demitidos de suas funções de autoridade carismática. Alguns e algumas chegaram mesmo a terminar seus dias à margem ou até mesmo fora da comunidade a que ajudaram a dar vida. Isso por uma simples e única razão: movidos pelo Espírito (Lc 4,1) e com os olhos fixos em Jesus (Lc 4,20), sua única preocupação era ver a Boa Nova do Reino fazer-se realidade na pessoa dos pobres e excluídos concretos de suas sociedades.

Os condicionamentos culturais da sociedade moderna fizeram com que cada comunidade se especializasse num tipo de atividade caritativa muito específica. Com as mudanças na sociedade, muitas das realidades de pobreza que suscitaram o nascimento desta ou daquela congregação religiosa ou mudaram ou já não existem. É necessário readaptar-se às novas realidades e às novas pobrezas. Nesta readaptação, muitas congregações descobrem que estão trabalhando com o mesmo grupo social excluído e começam a trabalhar conjuntamente. Dá-se ali uma ação intercongregacional. A revolução cultural que está criando a pós-modernidade nos mostra um mundo onde tudo é interrelacionado e em que nenhuma ação concreta pode ter êxito se não se colocar em rede com outras ações e que o todo está em cada parte[12] e cada parte traz presente o todo. Isso nos obriga a pensar não apenas no inter, mas no transcongregacional, naquilo que vai além das possibilidades de uma única congregação e que existe na coesão de forças.

Para nós, VRC latinoamericana, talvez a experiência intercongregacional mais provocativa seja a das comunidades inseridas. Superando o próprio conceito de congregacionalidade, elas se voltam para a construção de uma nova Igreja e de uma nova sociedade. Do ponto de vista institucional, é uma opção suicida, pois não pensa em primeiro lugar na manutenção ou ampliação da própria instituição. Mas talvez seja a porta de saída para a crise que a atual forma de VRC está vivendo e o início de uma nova etapa na história dos homens e mulheres que tudo deixam para seguir radicalmente a Jesus Cristo.

Notas


[1] Texto originalmente publicado em Cadernos da ESTEF, 48 (2011) 65-78.

[2]Para uma análise instigante da atual crise da VRC, ver: O’MURCHU, Diarmuid. Consecrated Religious Life: The Changing Paradigms. Manila: Claretian Publications ; Maryknoll: Orbis Books, 2005.

[3] Seguimos aqui a caracterização sugerida por NERY, Irmão. Revisitando os três ciclos da história da Vida Consagrada. Convergência, Rio de Janeiro, ano XXVI, n. 339, pp. 25-42, jan/fev 2001.

[4] Por nossa pertença a uma Ordem de tradição franciscana, as referências à VRC mendicante se atêm a esta tradição. As fontes aqui citadas são de TEIXEIRA, Celso Márcio (Org). Fontes Franciscanas e Clarianas. 2 ed.Petrópolis: Vozes, 1988.

[5]Cf. NEGREIROS, Miguel. Primeiro século do Franciscanismo. Disponível em: http://www.procasp.org.br/arquivos/Artigos%20PDF/primeiro%20sec%20franciscanismo.pdf Acessado em 15 de jan de 2011

[6]Cf. LIMA, Marinalva Silveira. Pedro João de Olivi e a questão da pobreza evangélica franciscana. Disponível em: http://www.usp.br/ran/ojs/index.php/angelusnovus/article/viewFile/67/pdf_2 Acessado em 15 de jan 2011

[7] Assim resume Negreiros (2011) o triste fim da tentativa de manter viva a intuição de Francisco e Clara: “O Papa tudo fez para pacificar a Ordem e tomou a seu cuidado a proteção dos Espirituais. O próprio Geral esforçou-se por corrigir todos os abusos contra a pobreza e demitiu todos os superiores que haviam sido demasiado duros para com os Espirituais. Tudo foi inútil. Era demasiado profundo o fosso cavado entre os dois grupos. Em vários lugares apareceram comunidades cismáticas dos Espirituais, particularmente na Toscana, na Sicília e na Provença. Muitos deles foram encarcerados e outros excomungados por João XXII, que, com a Bula “Sancta Romana” (1317), condenava os Espirituais de qualquer denominação. Não faltaram sequer as prisões perpétuas e as condenações à fogueira. Ubertino de Casale passou a viver com os Beneditinos mas quis conservar-se franciscano até à morte. Ângelo Clareno, refugiado no monte Subiaco constituiu-se Geral dos “Irmãos de vida pobre” (Fraticelli della povera vita). No seu liVRCo “Apologia pro vita sua”, faz a sua declaração de amor à Regra de São Francisco e de fé na Igreja, a quem se sente unido pelo Espírito Santo, embora condenado pela autoridade hierárquica. Tanto Ângelo Clareno como Ubertino de Casale quiseram ser reformadores autônomos e legitimamente reconhecidos, não o tendo, porém, conseguido. Os Clarenos, continuadores dos “fraticelli”, aceitaram os Visitadores apostólicos enviados por Martinho V, São João Capistrano e Santiago da Marta. Vieram mais tarde a reconciliar-se com a Igreja sob os pontificados de Eugênio IV (1413-17) e de Sixto IV, que em 1473 os colocou sob a obediência do Ministro Geral da Ordem. Em 1517 integraram-se totalmente nos Irmãos da “Observância”.

[8] Doutrina do Estado mínimo é a compreensão segundo a qual o Estado deve abster-se de toda ação econômica e social e dedicar-se exclusivamente à segurança interna e externa garantindo as condições para o livree funcionamento do mercado.

[9] A evolução experimentada no âmbito interno da Igreja Católica, tanto em sua organização como na compreensão de seu ser e sua missão no mundo – especialmente com o Concílio Vaticano II – fez com que algumas atividades assumidas por congregações como sua missão específica, deixassem de serem vistas como urgentes e relevantes. Hoje são poucos os católicos que ainda pensam que a conversão dos judeus ou dos protestantes sejam razão suficiente para o existir de uma congregação religiosa… Mesmo a missão ad gentes entendida como simples conversão dos pagãos é fortemente questionada.

[10] Sobre o tema, ver: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000

[11] A maioria dos projetos intercongrecionais impulsionados pelas Conferências de Religiosos Nacionais ou pela CLAR vai nesta direção: juntar religiosos e religiosas provindos de diferentes congregações e com diferentes aptidões para solucionar uma situação social global.

[12] Como dizia o poeta Gregório de Mattos (Ao braço do mesmo menino Jesus quando appareceo) “O todo sem a parte não é todo,/A parte sem o todo não é parte,/Mas se a parte o faz todo, sendo parte,/Não se diga, que é parte, sendo todo”.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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