Arquivo mensal: maio 2021

Deus tem corpo

Tapete solidário de Corpus Christi – Tangará da Serra, MT, 2020 (Foto: Gilvan Mello)

Dito assim, em simples língua portuguesa, muitos podem achar a expressão estranha: Deus tem corpo. Já dito em latim, solenizado em uma festa de primeira categoria segundo a liturgia da Igreja Católica Romana, parece mais normal: Corpus Christi, ou, de forma ainda mais nobre, Corpus Domini. Pois sim: ambas as expressões latinas querem dizer exatamente isso: Deus tem um corpo.

Todo cristão afirma que o Cristo de Deus se fez humano no corpo do filho do carpinteiro nazareno. Negar a realidade corporal de Deus em Jesus de Nazaré foi, desde o início do cristianismo, considerado uma heresia, ou seja, uma meia verdade, um erro, um perigo para a fé cristã.

Um dos nomes dados a essa forma herética de cristianismo foi “docetismo”. A expressão vem do verbo grego dokeò, que significa “aparentar”, “fingir”. Tendo seu fundamento filosófico no gnosticismo, que considerava impossível a presença do divino no mundo material, na corporeidade humana, os docetistas afirmavam que só aparentemente o Cristo de Deus tinha assumido a corporeidade humana e que a encarnação era um fingimento, uma encenação, apenas para que os humanos pudessem compreender a mensagem de Deus e, nela, a insignificância do mundo material.

Tal heresia foi condenada pela Igreja. Mas a tentação da fuga do mundo e da realidade humana ficou latente dentro do cristianismo e, vez ou outra, assoma aqui ou acolá. Tal aconteceu na Idade Média, quando a introdução na teologia ocidental do pensamento de Aristóteles fez emergir mais uma vez a tentação gnóstica da racionalização da fé. A nova corrente teológica trazia embutida a afirmação de que a salvação pode ser alcançada pela razão e não pela prática e pela devoção.

Contra tal tendência se levantou a piedade popular que encontrou uma de suas expressões na adoração da Eucaristia. Santa Juliana de Liège foi a inspiradora desta devoção que logo se espalhou por toda Europa e foi oficialmente acolhida pelo Papa Urbano IV em 1264. Contraditoriamente, num tempo em que a maioria dos fieis não tinha acesso à Eucaristia, ela se tornou o símbolo da resistência da fé popular no humano em Cristo, contra a elitização e intelectualização da teologia e da liturgia. Impedido de comungar, o povo simples aclama o Corpo de Cristo em procissões nas ruas.

Nas controvérsias das reformas da Igreja que eclodem no séc. XVI, a procissão de Corpus Christi, já oficialmente assumida pela Igreja, se transforma em manifestação antiprotestante. Desconhecendo a diferença entre a presença real afirmada por Lutero e a presença simbólica defendida por Calvino, todos os não católicos são identificados como inimigos da Eucaristia. Depois da Revolução Francesa, Corpus Christi também se torna estandarte da antimodernidade. A presença de Cristo na Eucaristia é um milagre que a ciência e a razão, pilares do espírito moderno, não podem explicar.

A partir das reformas preconizadas pelo Vaticano, a solenidade do Corpo de Deus passou a mudar de tom e caminha cada vez mais em direção ao seu espírito original. As suntuosas procissões apologéticas e apoteóticas vão cedendo lugar a manifestações de solidariedade para com os corpos de Cristo que hoje são desprezados em sua humanidade. As bandas tonitruantes e as nuvens de incenso cedem lugar a tapetes de roupas e alimentos que são encaminhados aos que passam frio, fome, sede, estão doentes ou presos. Afinal, como diz o próprio Jesus no Evangelho, é no corpo dos humilhados da sociedade que ele mora. E, cada vez que damos abrigo, comida e água a quem precisa e consolamos com nossa presença quem vive a solidão da doença ou da prisão, é a Ele que o estamos fazendo.

Muitos têm dificuldade em aceitar essa forma verdadeiramente original e tradicional de celebrar o Corpo de Cristo que estamos redescobrindo. Como lembra o Papa Francisco na Gaudete et Exsultate, o gnosticismo ainda continua presente “de forma sutil” e “é uma das piores ideologias”, pois é “incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros”. E mais: os neognósticos, “ao desencarnar o mistério, em última análise, preferem um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo” (cf. GE 37-40).

Voltar ao Cristo encarnado no humano de Jesus e resgatar o humano no Cristo presente em cada pessoa destituída de sua dignidade. Esse é o caminho para podermos celebrar com toda solenidade a presença real de Cristo entre nós na Eucaristia e em cada pessoa que precisa da presença consoladora de Deus e de um irmão e de uma irmã.

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Que Deus é esse?

A historieta é terna. Um velho senhor de barba branca cuja nobreza se mostra na capa vermelha que ostenta, caminha pela praia. Em seu andar encontra-se com uma criança que, com uma minúscula concha, transvasa água do mar para uma poça. Admirado, o nobre homem pergunta ao menino o que está a fazer. Este, com um sorriso infantil, confessa seu propósito de esvaziar o mar. – Impossível! Exclama o nobre sábio. Ao que a criança lhe retruca: – É mais fácil para mim transportar a água do mar para esta cova do que para a tua razão compreender o inescrutável mistério da Santíssima Trindade.

Uma bela historieta. Mas não tão velha. Conforme o historiador Henri-Irinée Marrou, em seu livro “Saint Agustin et l’Ange”, as primeiras versões da narrativa datam do início do século XIII. O velho senhor de barba branca era apresentado como “um professor” anônimo que tentava explicar o Deus cristão que, sendo uno, é, ao mesmo tempo, trino. A narrativa surge no contexto de desconfiança de clérigos ante a nascente teologia escolástica que argumenta não mais a partir da autoridade eclesiástica, mas da racionalidade acessível a todas as pessoas.

Foi na segunda metade do século XIII que Tomas de Cantimpré, para dar autoridade ao exemplo, inseriu a figura de Santo Agostinho, considerado até então a maior autoridade teológica da Igreja no Ocidente, como o personagem principal da história.  A inclusão do bispo de Hipona foi exitosa e logo a nova versão se popularizou e passou a ser usada tão amplamente que ganhou status de história real. Teólogos nem sempre cuidadosos de suas fontes e pregadores em busca de argumentos para emocionar seus ouvintes, dela fizeram uso abundante para advertir os fiéis dos perigos da razão.

A arte deu sua contribuição à popularização da legenda. Sandro Botticelli, um dos mestres do Renascimento e apaixonado pela figura de Agostinho, imortalizou a cena no Retábulo de São Barnabé. A partir de então, múltiplas versões surgiram nas diferentes escolas artísticas e, com a difusão da imprensa, passaram a ilustrar catecismos e manuais apologéticos.

Ainda hoje, quase mil anos depois, é quase inevitável escutarmos, na Festa da Santíssima Trindade, a legenda ser mais uma vez repetida e ilustrada, agora nas páginas da internet e nas redes sociais. Por que ela perdura tanto no imaginário popular e nos sermões nem sempre bem preparados? A causa é simples e, ao mesmo tempo, grave. Ela ilustra uma questão presente em toda experiência de fé: a tensão entre a fé e a razão.

Na narrativa medieval, a solução se dá pela derrota da razão. Fracasso ainda mais calamitoso pois personalizado no teólogo por excelência, o bispo de Hipona. A historieta é um assassinato simbólico da razão teológica que perdura nos séculos. Agostinho dedicou boa parte de suas indagações teológicas à questão fundamental da fé: quem é Deus? Seu livro “Sobre a Trindade” é uma obra prima que esgrime todos os argumentos da razão até chegar à afirmação mais contundente e plena que alguém pode fazer da compreensão cristã da divindade: Deus-Trindade é Amor puro e pleno!

Diferentemente do que a historieta e as interpretações antirracionais que dela decorrem afirmam, o conhecimento de Deus não dispensa a razão. Pelo contrário, como bem pode notar quem se dá ao árduo trabalho de ler Agostinho, ele a supõe e exige. A razão não é o fim e nem tem a palavra última, com certeza. Mas, como dom de Deus, ela faz parte dos instrumentos que podemos usar para até Ele chegar.

Negar a necessidade e a utilidade da razão nestes tempos de irracionalidade surda, cega, tonitruante e orgulhosa de sua própria ignorância, é uma tentação à qual não podemos nos dar ao luxo, sob o risco de sermos engolidos pela voragem mortal do obscurantismo que ronda tribunas, microfones, cátedras e púlpitos.

A volta a Santo Agostinho, sem a mediação das legendas medievais, é um belo caminho para voltarmos a saborear a racionalidade amorosa da Trindade. Fica a sugestão!

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O Silêncio dos Inocentes

Minha intenção inicial para este texto não era a de falar do filme de Jonatham Demme que, em 1991, depois de dar ao seu diretor o Urso de Prata no Festival de Berlim e várias indicações para o Globo de Ouro, foi consagrado com cincos prêmios Oscar: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator e Melhor Atriz. Um feito inédito para um filme de terror. O sucesso de crítica, público e financeiro foi tanto que gerou uma franquia que continuou a explorar o horror despertado em cada um de nós pelo Doutor Hannibal Lecter, o psiquiatra canibal.

Anthony Hopkins no papel de Hannibal Lecter e Jodie Foster fazendo a jovem investigadora do FBI Clarice Starling são, sem dúvida, os destaques do elenco. Mas o filme não teria chegado a tal êxito não fosse a fantástica trilha sonora executada pela Orquestra Sinfônica de Munique e a história original do livro homônimo de Thomas Harris.

A trama elaborada por Harris e inteligentemente adaptada pelo roteirista Ted Tally para a linguagem cinematográfica explora a tensa relação entre uma aprendiz de policial ansiosa por firmar-se na carreira e um assassino psicopata que vê nesse encontro a possibilidade de livrar-se da cadeia e voltar a seu mórbido prazer de alimentar-se das vítimas de seus crimes.

Como vocês veem, acabei falando do filme mais do que eu queria. Não consegui interromper minhas divagações. Não sai da minha cabeça a possibilidade de O Silêncio dos Inocentes ser uma metáfora do que vive nossa sociedade brasileira que tenta acabar com criminosos insanos utilizando o savoir faire de insanos assassinos. Ao tentar arrancar do psicopata prisioneiro informações que a levem ao seria killer Buffalo Bill, Clarice entrega a ele seus mais íntimos segredos e Hannibal se torna senhor de sua alma. Qualquer semelhança com o que está acontecendo hoje no Brasil não é mera coincidência. Como diz o poeta, muitas vezes “a vida imita o filme” e, no espelho ficcional de O Silêncio dos Inocentes, vemos uma nação que entregou sua alma não a um, mas a um bando de psicopatas que só pensam no prazer sádico de ver sangue jorrando e alimentar-se dos despojos de suas vítimas.

Na Favela do Jacarezinho, foram vinte nove as vítimas que padeceram na sórdida disputa de poder entre milicianos e o Supremo Tribunal Federal que havia impedido a realização de operações policiais nas favelas. Inocentes ou culpados – ninguém pode ser condenado e executado antes de passar pelo devido julgamento – traficantes, moradores e o policial, todos foram sacrificados como cordeiros (no original, tanto o livro como o filme se chama O silêncio dos cordeiros) no altar do terror que sustenta a desigualdade social.

No país inteiro, já estamos quase alcançando as 500 mil vítimas da opção pelo envenenamento precoce da população e da recusa em adquirir o único medicamente comprovadamente eficaz contra a Covid19, as vacinas. O que antes era suspeita, agora, na CPI do Senado, é comprovado sob a luz dos holofotes midiáticos: milhares de inocentes foram sacrificados pela necropolítica dos que pensávamos podiam nos revelar os segredos para acabar com os perigos que ameaçavam o Brasil.

No final do filme, o serial killer Buffalo Bill é morto por Clarice numa sequência de perseguição das mais fantásticas já produzidas pelo cinema. Mas a esperada tranquilidade não chega para Clarice. Na confusão, Hannibal Lecter foge e, desde uma ilha distante, telefona para a policial e lhe faz a pergunta que turba o inconsciente da agora formada e festejada policial: “Bem, Clarice, os cordeiros pararam de gritar?”

Alice se cala. Ela não responde. Ela sabe que os cordeiros inocentes só se calam quando o perigo se afasta ou quando estão mortos. E, com Hannibal solto, as duas possibilidades estão abertas. Para que os cordeiros estejam em segurança, é preciso prender o assassino psicopata. Ou o silêncio continuará sendo um silêncio carregado de morte. É o dilema que vivemos no Brasil.

Se você teve a paciência de nos acompanhar até aqui, fica a sugestão: assista (de novo, caso já o tenha feito), ao clássico O Silêncio dos Inocentes. Está disponível numa das populares plataformas de streaming. E pense-o como uma metáfora do Brasil. Você se assustará com Hannibal Lecter e Buffalo Bill. Mas, o verdadeiro perigo, observe bem, está na Clarice Starling. Confira e, depois, me diga se sim ou se não.
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A Mãe do Dia das Mães

Anna Jarvis. Assim se chamava ela. É a mãe do Dia das Mães. Ela nasceu no dia 1º de Maio de 1864, na pequena cidade de Webster, na Virgínia Ocidental, Estados Unidos. Era filha de Ann Reeves, uma piedosa senhora que teve treze filhos, dos quais somente quatro chegaram à idade adulta. Durante a guerra civil americana (1861-1865), Ann dedicou-se a cuidar dos soldados feridos, tanto os do Exército Confederado como os do Exército da União. Além de cuidar de suas feridas e reconectá-los com suas famílias, ela criava situações para que os feridos de ambos os lados se encontrassem, se conhecessem e se reconciliassem.

Não foi esse o primeiro trabalho humanitário da Senhora Jarvis. Antes da guerra, ela organizava as mulheres de sua comunidade para melhorar as condições sanitárias do local em que viviam. Findo o conflito, ela continuou seu trabalho para que as mães tivessem melhores condições de vida e a família se tornasse um espaço de proteção e cuidado.

Em 1870, outra mulher propôs a criação de um “Dia das Mães pela Paz”. Assim como outras tantas mães traumatizadas pela experiência da guerra, a poetisa, abolicionista e feminista Julia Ward Howe (1819-1910), queria que fosse reconhecido o direito sagrado de as mães protegerem a vida de seus filhos e que jamais voltassem a ser trucidados em guerras para defender interesses que lhes eram alheios.

As décadas passaram e, no segundo domingo do mês de maio de 1905, Ann Reeves faleceu. Para sua filha Anna, o choque foi terrível. Entrou em depressão. Para tentar aliviá-la, suas amigas passaram a encontrar-se regularmente com ela para lembrar a mãe falecida. Em 1907, no segundo domingo de maio, na Igreja Metodista de Grafton, Anna organizou um serviço religioso para lembrar os dois anos da morte da mãe. No ano seguinte, no mesmo segundo domingo de maio, o culto foi realizado na importante cidade de Filadélfia, no Estado da Pensilvânia. Na ocasião, Anna distribuiu entre as mães e filhos presentes um cravo branco. Em 1910, a data foi oficializada como dia feriado no Estado da Virgínia Ocidental e os cravos brancos se tornaram o símbolo do evento. A partir de então, Anna dedicou todo seu tempo, energia e dinheiro para que o “Dia das Mães” tivesse reconhecimento nacional. Tal aconteceu em 1914. Rapidamente, a data ganhou adesão em vários países. No Brasil foi celebrada pela primeira vez em 1918, em Porto Alegre, na Associação Cristã de Moços Católicos. Em 1932, Getúlio Vargas incluiu a data no calendário oficial brasileiro.

Assim como os filhos que uma mãe gera, Anna Jarvis não sabia o que seria de seu rebento. E o rumo que a festa do Dia das Mães tomou foi bem diferente do pensado por sua genitora. A popularidade da data despertou a cobiça dos industriais e comerciantes que logo fizeram do comércio de flores, cartões e presentes um negócio lucrativo que substituiu o ideal de humanização e respeito pela maternidade.

“Não criei o dia das mães para ter lucro”, foi a resposta que Anna deu a um repórter quando este lhe perguntou se estava feliz ao ver a data tão festejada. Sua indignação foi ao extremo quando o Dia das Mães passou a ser utilizada pela campanha belicista que tomou conta dos Estados Unidos na década de 1930. As “Mães para a Paz” sonhado por Júlia Ward Howe, foi transformado em “Mães Americanas pela Guerra”.

Juntamente com sua irmã Ellsinore, Anna lutou de todas as formas e com todos os recursos para que a data retomasse sua intenção original. Sua batalha foi inútil. O mercado é implacável e tudo transforma em mercadoria, até a mais belas intenções e, se permitirmos, até as próprias mães. Anna terminou seus dias em 24 de novembro de 1948, pobre, endividada, internada como louca num asilo para idosos.

Hoje, o Dia das Mães é a segunda data que “mais vende”. Diante do fato, convém lembrar uma frase da sua criadora em sua luta contra a comercialização do sentimento materno e filial: Um cartão impresso não significa nada mais que você é muito preguiçoso para escrever para a mulher que fez mais por você que qualquer outra pessoa no mundo. E tortas! Você leva uma caixa para a Mãe – e então come tudo você mesmo. Um belo sentimento!

Neste Dia das Mães, pensemos na mãe do Dia das Mães. Siga o conselho dela. Seja um bom filho. Não dê um presente. Dê um abraço, diga seu obrigado, permaneça ao lado de sua mãe o tempo que ela desejar. E, se ela já partiu para sempre, tenha-a no silêncio do seu coração e abrace a mãe mais próxima. Há muitas que, como Anna Jarvis, não tiveram filhos ou não os têm por perto. Neste Dia das Mães, seja para ela um filho. O filho que ela desejou.

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