Arquivo mensal: julho 2021

O skate, o estetoscópio e a sombra nazista.

Durante muito tempo, no Brasil, o skate foi considerado coisa de marginal, de vagabundo e de maconheiro. Na cidade de São Paulo era proibido. Era crime. Até que veio uma mulher prefeita, a Luiza Erundina, e não só descriminalizou a prática, mas a incentivou como uma forma de promover as expressões culturais e esportivas juvenis.

Algumas décadas depois, o Brasil inteiro festeja a Fadinha que, com seus treze anos, buscou a prata olímpica em Tóquio. Os únicos que não se unem à alegria talvez sejam aqueles e aquelas que sentem saudades dos tempos em que o jovem ou a jovem que andasse de skate nas ruas e praças de São Paulo era recolhido por uma viatura discreta da ROTA e acabava espancado em uma delegacia ou coisa ainda pior.

Mas, além do show de skate, a pequena Rayssa também deu uma profunda demonstração de cidadania. Na volta de Tóquio, pediu a todos seus conterrâneos de Imperatriz que não a esperassem no aeroporto. Pediu para não aglomerar, manter o distanciamento social, sempre usar máscara e procurar a vacina para logo vencer a pandemia que nos assola.

Algumas horas depois desse show de cidadania, em rede nacional de rádio e televisão, o Ministro da Saúde também falou sobre a pandemia. Falou de tudo aquilo que o governo não fez como se tivesse feito. Em outras palavras: mentiu descaradamente. Todos sabem e a CPI, espero, vai demonstrar com provas cabais, que o atual (des)governo fez de tudo para impedir a vacinação. Ela só está acontecendo por pressão dos prefeitos, governadores e da sociedade. E mais: o governo não só não fez nada como fez tudo o que podia para impedir que a vacinação avançasse. E, criminosamente, criou canais para que a corrupção se instalasse em todos os escalões da saúde pública com pastores, cabos e coronéis intermediando a compra superfaturada de vacinas que sequer existiam.

O detalhe que talvez muitos não observaram, é que o Ministro, que é médico cardiologista, em nenhum momento pediu para a população continuar usando máscara e mantendo distanciamento, medidas que, todos sabem, são as únicas que podem colaborar para que a vacinação tenha de fato o efeito esperado. Vacinar é a solução. Usar máscara e manter o distanciamento é prevenção, antes e depois da vacinação.

Tudo o que uma menina de 13 anos soube dizer com toda a propriedade, o doutor ministro esqueceu em sua necedade. Hipócrates deve estar rolando desde ontem no túmulo.

A que se deve tal omissão por parte da maior autoridade sanitária do país? À ignorância com certeza não. Ele sabe muito bem a importância destas duas atitudes. Suspeito que a causa de tal disparate se deve “às ordens que vem de cima”. Afinal, como bem disse o “presidoente”, no seu governo, “uns mandam e os outros obedecem”.

Imagino também que o Ministro, assim como outras autoridades deste governo, principalmente aqueles que costumam receber delegações nazistas, lembrem dos julgamentos de Nürenberg e de Jerusalém. Diante dos tribunais, os oficiais nazistas se declaravam inocentes e argumentavam que estavam apenas cumprindo ordens que vinham de cima. Talvez o Ministro Queiroga também esteja apenas cumprindo ordens que vem de cima ao omitir a necessidade do uso da máscara e distanciamento social. Mas isso não o isenta de responsabilidade e das consequências judiciais que um dia, espero, recaiam sobre aqueles que, por sua ação ou omissão, fazem com que a pandemia, no Brasil, tenha se transformado em um verdadeiro genocídio.

Mas uma coisa é certa e deve preocupar a todos e todas: a sombra nazista paira cada vez mais sobre o nosso país. É preciso denunciá-la. É preciso combatê-la com todas as formas.

Por mais skatistas e mais Rayssas. Por mais médicos e mais estetoscópios. É o compromisso de cada um e de cada uma em defesa da liberdade e da vida.

Extraterrestres e astronautas

Existe vida fora da Terra? É uma pergunta que todos nós, mais cedo ou mais tarde, rara ou frequentemente, nos fazemos ou nos foi feita. Alguns se interessam mais pela questão, outros menos.

Eu sou dos que pouco ou quase nada se preocupam com ela. E não por não acreditar na possibilidade. Pelo contrário. Racionalmente pensando, é muito provável – quase certo eu diria – que em algum planeta ou satélite dos muitos que giram em torno a uma das bilhões de estrelas que compõem o universo, haja as condições necessárias para a existência de vida. Na forma em que a conhecemos ou em outras que sequer imaginamos. Incluso vida inteligente. Sim! É de todo possível que outros seres, talvez nada semelhantes a nós, tenham desenvolvido a habilidade de raciocinar de forma semelhante à nossa ou em outra totalmente diferente e incompreensível para os humanos que somos. Afinal, em um universo tão amplo e variado, tudo é possível.

Meu desinteresse pelo assunto se sente incômodo quando surgem nos noticiários reportagens sobre supostas tentativas de contato de seres de outras paragens siderais com nós os humanos. O que me deixa desconfiado é que estas “matérias de gaveta”, como se diz no jargão jornalística, sempre são publicadas em momentos de crise política, econômica, militar. Não por coincidência, na crise do fim do governo Trump, o Pentágono liberou imagens e arquivos de OVNIs caçados pela Força América estadunidense. Para quem pensa fria e racionalmente, é claro que o objetivo é distrair a opinião pública e tirar o foco dos problemas do momento.

Essas eram minhas convicções até poucas semanas faz. Um fato veio abalar minha inabalável confiança na desimportância da preocupação pela existência ou não de vida fora da Terra. Um fato de conhecimento público. No curto espaço de uma semana, dois multimilionários – Richard Branson e Jeff Bezos – deram-se ao luxo de uma viagem espacial. Alguns dizem que não foi bem espacial. Apenas teriam chegado à beira do espaço. E durou poucos minutos. A “passagem” numa nave de Richard Branson – diversão já disponível ao público – custa a bagatela de 1,3 milhões de reais. Para acompanhar Jeff Bezos em seus quatro minutos de viagem suborbital, houve quem estivesse disposto a pagar 28 milhões de dólares, ou seja, cento e oitenta milhões de reais. E a fila de espera para os novos voos já programados é longa. Até o ano de 2030, o mercado do turismo espacial espera movimentar a soma de 8 bilhões de dólares.

Mas quem são essas pessoas dispostas a pagar essa soma exorbitante para ter o deleite de tão curta viagem? Muitos devem estar a se perguntar isso também. Eu tenho a resposta, fruto da nova convicção elaborada no choque de ver na TV as naves indo e voltando do espaço com seus turistas sorridentes. Na verdade, esses viajantes não são “pessoas”. São extraterrestres que, por acidente, acaso ou opção, vieram parar no Planeta Terra. Aqui eles vivem disfarçados esperando as condições para voltar ao seu lugar de origem. E, enquanto elas não chegam, aproveitam para subir e, lá de cima, dar uma espiadinha em direção ao lugar para onde desejam voltar.

Afinal, se fossem humanos, com certeza estariam se preocupando com os cinco ou mais milhões de mortos pela Covid19, os milhões de mortos pela fome e pelas guerras, os 70 milhões de deslocados e refugiados, as cidades caóticas em que vivemos, a Amazônia e o Pantanal em chamas, os oceanos inundados por plásticos, os lunáticos que governam tantos países. Quem não se interessa por esses problemas e se dá ao luxo de uma viagem de turismo espacial, só pode ser extraterrestre. Com certeza, humano não é.

Ah! E outra descoberta que fiz: aqueles extraterrestres que nos visitam em seus reluzentes OVNIs, são super-ricos de outros planetas que vieram dar uma voltinha por aqui, só prá se distrair. Oxalá não percam suas naves e possam voltar logo ao seu lugar de origem. Já temos extraterrestres demais por aqui!

A boca fala o que o coração está cheio.

Os tristes dias de verborragia escatológica presidencial que somos obrigados a suportar, fazem-me lembrar com saudades da juventude, dos tempos de Faculdade de Filosofia e das aulas do querido professor Jandir JoãoZanotelli. A lembrança é boa, mesmo que suscitada pela contradição. Sim. Tudo o que ouvimos agora da Primeira Boca do Brasil, vai exatamente em sentido contrário do que o então professor e depois Reitor da Universidade Católica de Pelotas nos ensinava lá na metade dos anos oitenta, tanto na forma como no conteúdo.

Nas longas aulas noturnas que escorriam rapidamente sem percebêssemos os ponteiros girarem, o grande professor (tanto na forma como no conteúdo!), com sua fala mansa e bem elaborada, conduzia-nos pelos caminhos da amizade ao saber. E o fazia dando-nos a conhecer os grandes pensadores de todos os tempos, dos pré-socráticos aos existencialistas e latino-americanos. Suas explicações se tornavam claras e saborosas com as histórias do cotidiano e as citações musicais que iam da atávica música nativista aos irreverentes Demônios da Garoa. E claro, como não podia deixar de ser naqueles tempos de ditadura decadente, os comentários políticos correntemente se faziam presentes. Até porque o professor Jandir não era apenas um professor. Ele era um educador, um pedagogo no sentido freiriano, um homem engajado na reconstrução democrática, um político no senso estrito da palavra, uma pessoa comprometida com os pobres daquela cidade emprobrecida do sul do Rio Grande do Sul. E todo esse compromisso transbordava em palavras que nos cativavam e desafiavam a pensar, a falar, a agir.

Mas o conteúdo também era provocante no que se refere à palavra. Lembro em especial do Seminário de Metafísica em Autor onde o professor nos desafiou a ler Martin Heidegger. Leitura pesada, difícil, exigente para iniciantes no campo da Filosofia. Daquelas páginas árduas que muito valeram a dor e o sofrimento da leitura, uma das coisas que se gravaram na minha memória, é a descrição heideggeriana de que “a linguagem é a morada do ser”, ou seja, a identificação ontológica entre a linguagem e o ser. Em outras palavras, que a linguagem é o fundamento onde emerge o real.

Se a minha interpretação está correta – dizia-nos o professor que um pensamento sempre tem mais de uma interpretação plausível -, nós, seres humanos, somos aquilo que falamos a respeito de nós mesmos, dos outros e das coisas que nos rodeiam. Não que o nosso falar crie as coisas. Isso seria pretensão exacerbada. Nossa fala dá sentido às coisas e, como a condição humana é constituída pelos sentidos que dizemos, com as palavras desvelamos (para usar outra palavra cara ao pensador alemão) o nosso ser e o ser que damos àquilo que nos rodeia.

As complexas argumentações de Heidegger se tornavam nas aulas compreensíveis com as sábias explicações do professor e para mim se tornaram ainda mais convincentes quando prestei atenção nas palavas de outro pensador. Não era outro metafísico alemão… Trata-se de um judeu contador de histórias e fazedor de milagres que, ao ser interpelado pelos fariseus que o ofendiam com pesados impropérios e palavrões – eles que se consideravam os donos da palavra, não apenas a humana, mas também a divina – retrucou com uma frase contundente: “A boca fala daquilo que o coração está cheio”. Em outra discussão com os mesmos fariseus, voltou à carga: “Tudo o que sai da boca procede do coração”. Se, como nos mostrou o professor Jandir, no pensamento semita, o coração é o centro do ser, entre Heidegger e Jesus há mais proximidade do que aquilo que muitos admitem haver. E ambos nos fazem pensar e compreender as razões da verborragia escatológica presidencial.

Para finalizar, só quero assinalar que Jesus não disse nada de novo. Sua fala brota da ancestral sabedoria humana registrada nos provérbios populares judaicos, essa forma tão doce e forte de dizer as coisas. Apenas para efeito de amostra, no Livro dos Provérbios lemos: “A boca do justo é fonte de vida, mas a violência cobre a boca dos perversos. Os sábios entesouram a sabedoria; mas a boca do tolo o aproxima da ruina”.

Que assim seja, para que todos possamos clamar “Aleluiah”!

P.S.: Professor Jandir João Zanotelli reside atualmente em Pelotas, é Sócio Honorário do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, Acadêmico – cadeira 46 – da Academia Sul Brasileira de Letras e assessor do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras.

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