Valha-nos Santo Espírito!

No fim de semana passada a Liturgia da Igreja nos convidou a celebrar a presença do Espírito de Deus em nós, na Igreja e em toda criação. Uma das mais belas festas do ano! Aliás, uma das mais importantes. Mais propriamente, ao lado da Páscoa cujo ciclo acabamos de encerrar e da Santíssima Trindade que celebraremos no próximo domingo, é a mais importante do Calendário Litúrgico. Páscoa, Pentecostes e Santíssima Trindade celebram o próprio ser de Deus em sua diversidade de pessoas e unidade de ser.

Meu Pentecostes deste ano foi marcado por uma certa preocupação teológica. Quem foi professor de Teologia Trinitária e, nela, de Cristologia e Pneumatologia durante 23 anos, ficou com o vício de estar atento ao que se fala sobre o Espírito Santo, que, depois de, por séculos na Igreja Católica Romana, ficar relegado da teologia, da espiritualidade, da liturgia e da pastoral, nas últimas décadas, na vaga pentecostal assimilada de outras Igrejas, passou a um lugar central.

Meu primeiro choque pneumatológico deste ano foi na missa de sábado de manhã. Ainda não era a liturgia de Pentecostes. Mas o padre, um senhor de uns quarenta anos, iniciou a Missa lembrando da festa que se acercava e convidando a comunidade a fazer o sinal da cruz “Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo e da Virgem Maria”. Estranhei… Afinal, eu não sabia que a Virgem Maria tinha passado a fazer parte da Trindade que, com ela, não seria mais Trindade, mas Quaternidade. O interessante é que, em várias das saudações trinitárias da Liturgia Eucarística, o acréscimo se repetiu. Relevei o fato considerando que era sábado e muitos católicos tem a devoção de, neste dia, lembrar de modo especial da Virgem Maria. Continuei no entanto a estranhar a inovação teológica radical do tal padre.

Domingo de manhã, o rádio ligado em uma emissora pública que transmitia um programa mantido por um movimento católico pentecostal, o apresentador – um leigo de muito boa prosa e pouca consistência doutrinal – depois de muitas exortações a afastar-se das coisas do mundo e de muitos “aleluias”, encerrou sua peroração exortando os ouvintes a “pedir à Virgem Maria que envie o Espírito Santo para que ele aqueça nosso coração para que ele se entregue a Deus”.

Minha memória teológica não podia deixar de sobressaltar-se com tal afirmação e lembrar que, por muito menos que isso, tivemos o cisma entre as Igrejas do Oriente e a Igreja Latina ou Romana. Os orientais, seguinte o Credo Nicenoconstatinopolitano, diziam e continuam até hoje a afirmar que o Espírito Santo procede do Pai. É o chamado “Patreque”. Os latinos, movidos pela teologia trinitária de Agostinho de Hipona, a partir do Século V, passaram a dizer que o Espírito Santo “procede do Pai e do Filho”. Foi o famoso caso do “Filioque” que levou ao primeiro grande cisma na Igreja que perdura até hoje. E agora, na manhã de Domingo de Pentecostes, fico informado, através de um programa de rádio, que o Espírito procede de Maria! Seria o caso de um “Marioque”? Todo respeito e devoção a Maria! Mas ela não merece ser envolvida nessa polêmica e pagar a conta de nossa vã teologia que pretende compreender como são as relações em Deus e sua ação no mundo.

Para minha preocupação, minhas surpresas teológicas do dia de Pentecostes não tinham terminado. Na Missa da Paróquia que costumo frequentar, o padre que presidia, em seu sermão, depois de falar muitas coisas sobre o Espírito e tantas outras coisas mais que não tinham nada a ver com o Espírito, pronunciou uma pérola eclesiológica relacionada ao Espírito Santo que me fez mais uma vez tremer. Para descrever o modo de agir do Espírito, ele se reportou ao Concílio Vaticano II afirmando que só o Papa tem a plenitude do Espírito Santo e que em virtude disso, tudo o que ele diz é verdade. E, para demonstrar sua afirmação, fez referência a um Papa já falecido dizendo que tudo o que ele dizia era verdade, “bem diferente de outros por aí que andam fazendo afirmações que são completamente falsas e que mostram que esses não têm a presença do Espírito Santo”.

Não sei se a comunidade, já cansada de um sermão de mais de quarenta minutos e pouca lógica, entendeu o que ele quis dizer. Eu, que acompanhava o discurso com atenção devido ao seu viés ideológico . marcado, entendi perfeitamente. E não estranhei. Aliás, com aquela frase, tudo se encaixava e se tornava completamente compreensível naquela liturgia. Nem precisava ter dito. Mas, sendo dito, ficou explícito.

Tempos preocupantes para quem é católico. Quando a performance teatral substituiu a liturgia, a estética toma o lugar da teologia e a religião se assume como ideologia, tempos lúgubres se anunciam. Ou, sendo um pouco mais realistas, já assomam no horizonte e nos cobrem com seu gélido ar hibernal.

Que o Espírito nos proteja e dê forças para continuar caminhando.

Brasília – Asa Sul

Eu ainda não havia nascido quando Brasília foi inaugurada. Em 1960 o Brasil ainda respirava ares democráticos e sonhava com mais cinquenta anos em cinco. A nova capital foi inaugurada. O “avião” de Lúcia Costa decolou na esperança de com ele alçarem-se tempos novos para todo o país. Mas veio 1962. E, depois, 1964 e o golpe militar consumado.

Meus olhos viram a luz no final de 1965. Criado no sul do sul do Brasil, só vim conhecer o Planalto Central em 1986 em meio à transição da ditadura para a democracia. O Presidente era o ex-arenista José Sarney que foi empossado sem nunca ser eleito nem diplomado. Era a transição negociada com os militares que largavam o governo mas continuavam com muito do poder. Depois daquele primeiro encontro, várias vezes tive a oportunidade de visitar a cidade que nasceu da vontade desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, foi planejada na prancheta de Lúcia Costa e adornada pelas obras do comunista Oscar Niemeyer.

Morar aqui, nunca passou pelas minhas mínimas cogitações. Mas eis que, 36 anos depois, cá estou eu morando numa das avenidas identificadas por letras e números da Asa Sul do Plano Piloto e trabalhando no ponto de encontro da Asa Sul com a Asa Norte e delas com o Eixão. Da janela da sala do trabalho vejo, ao leste, vejo a Esplanada dos Ministérios no lado em que o último prédio é o Palácio do Planalto e, à sua direita (no sentido físico e também político do termo), o Congresso com as duas torres e as cúpulas, uma na posição normal e a outra, invertida. Ao oeste ergue-se a Torre de Comunicação e o setor hoteleiro norte.

Como diz a música da banda que aqui surgiu na década de 1980, aqui, no coração da capital, “as ruas tem cheiro de gasolina e óleo diesel” como as de qualquer outra cidade grande. Diferentemente do planejado por seus idealizadores que a queriam com trezentos mil habitantes, nestes sessenta e poucos anos, Brasília se tornou uma cidade de três milhões de moradores. As “cidades satélites” não são mais satélites. Têm vida própria e espelham a realidade brasileira não apenas quanto à origem de seus moradores. Brasília, no seu todo, é um reflexo exacerbado da nação que somos. Aqui convivem, lado a lado, a maior renda per capita com a maior favela do país. O sol que nasce para os que vivem nas mansões do Lago Sul é muito diferente daquele que brilha na Sol Nascente. No Lago Sul, o astro aquece as piscinas. Na favela, ele seca a pele, o chão e toda esperança.

Morar em Brasília é uma experiência particular. É uma viagem entre o que foi planejado, o que deu certo e o que deu errado. O Parque da Cidade, as alamedas nas entrequadras, as praças, as árvores frutíferas por todos os lados, as flores, os amplos espaços ajardinados chamando à convivialidade… são o lado bom da cidade que busco aproveitar nos pouco tempo de folga que a atividade me permite. As distâncias, o privilégio ao automóvel, a frieza do cimento, a segregação por faixa de renda concretizada gráfica e geograficamente são o lado que dói e faz pensar que a utopia, quando esquece o lugar onde é gestada, pode se tornar distópica.

Minha residência aqui é transitória e ligada à atividade específica que me fez vir para este lugar do Brasil. Vivo a cada dia que estou aqui esta cidade que estou aprendendo a gostar na esperança de, nela e com as pessoas que aqui vivem e com as quais convivo, muito possa me ensinar.

Ano passado eu morri…

…mas esse ano eu não morro! Assim cantava Belchior na música “Sujeito de Sorte”, gravada primeiro por ele, na sequência por muitos intérpretes e ultimamente tornada outra vez famosa na voz de Emicida que a regravou pensando no povo negro do Brasil – especialmente os mais jovens – que estão sempre sob o risco de serem mortos pela polícia pelo simples fato de serem negros e, em sua maioria, pobres.

A música me veio à mente ao pensar no Evangelho do Quinto Domingo de Quaresma em que Jesus faz seu amigo Lázaro voltar à vida. Lázaro, assim como o compositor a que nos referimos, é um “sujeito de sorte”. Ele teve a sorte de ser amigo de Jesus e por isso, depois de morto, voltar à vida. O Evangelho de João não diz de que Lázaro morreu. Provavelmente por alguma “doença de pobre” tão comum na Palestina naquela época: tuberculose, hanseníase, esquistossomose, malária, helmintíase, tracoma… Ou então foi vítima do trabalho exaustivo e da fome, da violência da polícia do Templo ou das forças de ocupação romana. As mesmas causas que provocam, a cada ano, milhões de mortes não só nos países empobrecidos, mas também nos países ricos.

Lázaro foi um sujeito de sorte. Jesus, avisado por Marta e Maria, veio e mandou que tirassem a pedra que tapava o sepulcro e ordenou que Lázaro viesse para fora. Mas Lázaro ainda estava amarrado pelos laços da morte e não podia caminhar. Ele estava vivo, mas ainda preso pela morte. Como diz Belchior, ele ainda sofria o sofrimento do ano passado. A morte do passado ainda dominava o presente daquele que tinha voltado à vida. Era preciso não apenas fazê-lo reviver, mas livrá-lo do que tinha causado sua morte para que não voltasse a morrer. Imagino que, se Lázaro conhecesse Belchior ou Emicida, ele também cantaria com Jesus: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” porque fui libertado daquilo que causou a morte “e assim já não posso sofrer no ano passado”.

A morte pode ser, no seu acontecer, um evento pontual. Mas, na maioria dos casos, tem causas estruturais que enraízam no passado de nossa sociedade e se expressam em nossa história familiar e pessoal. Há laços mortais que perpassam gerações e gerações e continuam matando hoje como matavam no tempo de Jesus. Laços fatais que mataram nossos pais e que continuarão a matar nossos filhos e netos se nós não tivermos a coragem de tirar as pedras, cortar as cortas da morte e queimá-las para que não voltem a amarrar a ninguém mais.

Não tenho a certeza, como a tinha o cantor nordestino, de “Deus é brasileiro”. Mesmo assim, com ele compartilho a constante sensação de que Ele “anda sempre a meu lado” e, na Sua Páscoa, tivemos removida a pedra que nos matava e desatados os laços que nos impediam de caminhar.

Por isso olho sempre e cada vez para diante na certeza de que, se no ano passado quase morremos, esse ano e no futuro, temos o compromisso de deixar que ninguém morra.

A pior cegueira.

O pior cego não é aquele que não vê. Também não é aquele que não quer ver. O pior cego é aquele que não quer que os outros vejam o que ele vê. Sim! Essa é a conclusão do longo diálogo entre Jesus e os fariseus no episódio do Evangelho de João do Quarto Domingo de Quaresma.

Jesus cura um cego e os fariseus, questionados em seu senhorio religioso, querem convencer o curado e seus familiares de que o fato de o rapaz agora enxergar é algo pecaminoso diante de Deus. Os fariseus não se importam com a mudança radical na vida daquela pessoa que passou da cegueira à visão perfeita e das consequências positivas que isso tem na vida de seus familiares.

A preocupação dos senhores da lei é deslegitimar a ação de Jesus que colocava em crise seu domínio religioso sobre a comunidade judaica. Para isso, eles tentam ocultar a verdade que salta aos olhos: Jesus curou o cego! E se a vida do jovem mudou para melhor, é obra de Deus. Essa é a lógica da tradição judaica. Quem quer a cegueira é o diabo e seus sequazes. Se fosse obra do diabo, o jovem continuaria dependendo em tudo de seus pais.

Tão óbvio que somos tentados a pensar que isso é coisa de um passado remoto. Ledo engano! A situação é muito mais atual do que imaginamos. Talvez nunca antes na história da humanidade houve tantos videntes tentando impedir os cegos de verem. Talvez nunca antes a mentira foi utilizada tão amplamente como estratégia política para criar cegos e convencê-los de que a melhor condição par eles é a de não ver o que na verdade acontece ao seu redor.

Apenas a título de exemplo, um ex-presidente norte-americano dizia que ele não mentia, mas que apenas apresentava uma “verdade alternativa”. Um ex-presidente brasileiro, emulando seu tutor do norte, afirmava que nunca mentia, mas que apenas dizia uma verdade que os outros não reconheciam como tal. E os dois fizeram multidões se negarem a tomar vacinais e a devorar cloroquina e primaquina para combater a Covid-19. E o pior da história é que milhões de pessoas os seguiram e milhares morreram por se negarem a aceitar o que a ciência indicava e insistirem com os tratamentos inócuos recomendados pelos cegos que sabiam que não estavam vendo e queriam manter seus seguidores na escuridão para que não se dessem conta do precipício para o qual estavam sendo conduzidos.

Não querer ver é um modo terrível de conviver com a cegueira. Até aceitável em certos casos. Mas não recomendável como regra geral. Não querer que os outros vejam é uma opção satânica diante da cegueira de outrem. A primeira pode se dar por ignorância ou por acomodação. A segunda, por maldade ou ganância. Para a primeira pode haver perdão. Para a segunda, o fogo do inferno é a única solução.

Por que falas com ela?

Acabamos de celebrar o Dia Internacional da Mulher. Uma data para comemorar as lutas e conquistas e para sonhar e abrir caminhos na construção de sociedades em que o machismo e o patriarcado se tornam apenas tristes lembranças exibidas em museus. Estamos longe ainda desta utopia. Mas não podemos deixar de caminhar em direção à igualdade de gênero e a novas relações onde as diferenças não sejam oposição, mas feliz diversidade e complementariedade.

O dia Internacional da Mulher faz lembrar o encontro de Jesus com a samaritana narrado no Evangelho de João e lido na liturgia do Terceiro Domingo da Quaresma. Uma acena tão forte que ultrapassa a liturgia e faz parte do imaginário popular cristão. Há muitos detalhes na narrativa. Atenho-me aqui apenas a um. É a pergunta que os discípulos, ausentes no momento em que Jesus encontra a mulher na beira do poço, não fazem ao regressar da cidade e ver o nazareno e a samaritana a conversar. É um detalhe curioso e, talvez, o mais interessante da narrativa. Como o mostra o evangelista com sua fineza estilística habitual, um judeu normalmente não admitiria jamais que um homem, ainda mais um mestre, falasse com uma mulher em público e – horror dos horrores! – com uma mulher estrangeira e de má fama.

Na pergunta, não feita pelos discípulos, mas que normalmente seria feita por um “homem de bem” judeu, está embutido todo um leque de preconceitos. Preconceitos étnicos, culturais, religiosos, de gênero. Preconceitos que nasciam do medo do outro, do diferente e, ao mesmo tento, ajudavam a alimentar e aumentar esse medo. Ao não fazer a tradicional pergunta, os discípulos demonstram já estar a caminho da superação desse medo.

A narrativa mostra um Jesus sem medo de dialogar com a mulher. E mais: ele quer beber do poço da mulher. Não apenas da água do poço cavado por Jacó. Mas do poço da tradição samaritana, da sabedoria samaritana, da experiência de Deus no monte Garizim, do modo daquela mulher sentir e expressar sua fé em Deus. Por sua vez, ela tampouco demonstra qualquer temor em dialogar com Jesus. Não se assusta com aquele galileu que chega e puxa conversa como nenhum outro o faria. Não tem medo da tradição judaica, da sabedoria judaica, da experiência de Deus no monte Sion. Ela está disposta a beber do poço onde Jesus bebe.

A mulher pede para beber a água da vida de Jesus. Jesus aceita beber da água do poço da Samaritana. Tanto ele como ela sabem e proclamam que Deus é espírito e é verdade e Ele se manifesta não apenas no poço com o qual cada um deles está habituado. Eles sabem que Deus está presente e se expressa em todas as profundezas da humanidade.

O diálogo de Jesus com a samaritana e o não questionamento dos que seguem a Jesus, faz-me pensar nas razões que ainda hoje levam muitos dos que se dizem discípulos e missionários de Jesus a ter medo de falar com elas. Elas, as mulheres. Mulheres que fazem parte da Igreja e também das que dela não participam. Muitos líderes religiosos cristãos, diferentemente de Jesus que fala com as mulheres e dos discípulos que veem com naturalidade a disposição dialogante de Jesus, ainda reagem como os judeus e perguntam: “por que falas com elas?” “Prá que ouvi-las?” “Elas não têm nada a dizer, seu poço não têm profundidade, suas águas não têm vida.” É assim que muitos cristãos ainda expressam seu sentir em relação às mulheres e sequer se dão ao trabalho de ouvi-las. Quanto mais de dialogar com elas.

“Fale com ela!” Falem com elas! Ouçam o que elas têm a dizer! É o que diz Jesus. É o que aprenderam e fizeram os discípulos. Não há razão para ter medo. Não há nada a temer. Suas águas são transparentes e vivas. É só falar e descobrir as riquezas do poço que elas cuidam e a vida generosa e multivariada que brota de suas águas.

Sobre figuras e máscaras

Nós somos nós e nossas mudanças. Sim! Ninguém é o mesmo sempre. Mudamos ao longo da vida. Basta olhar o álbum de fotos que guardamos no fundo do baú. Ou no arquivo digital do computador. Ou na linha do tempo de uma das redes sociais que utilizamos. As mudanças são visíveis, inegáveis, infalíveis.

A mudança mais perceptível é a do aspecto físico. Nosso corpo não é mais o mesmo. Há coisas que fazíamos quando éramos crianças, adolescentes, jovens e que agora, adultos ou velhos, não fazemos mais. Jogar futebol, por exemplo. Ou agachar-se para amarrar os sapatos ou cortas as unhas dos pés. Nossa coluna não se dobra mais como se dobrava antigamente. O corpo não mente. E o espírito também. Nosso modo de nos sentirmos no mundo também muda ao longo do tempo. Também mudam nossas ambições, nossas emoções e nossas relações. As listas de amigos e amigas mudam ao longo do tempo e mudamos nosso lugar na sociedade.

Enfim: mesmo continuando sendo as mesmas pessoas, mudamos nossa figura. Mudamos a forma como nos percebemos a nós mesmos e como percebemos as pessoas e o mundo que nos rodeia. Nós nos transformamos, nos transfiguramos. E não podemos esquecer que a ação do entorno também nos transforma e nos transfigura. E isso não é problema! Mais: é a solução. Quem não se transfigura nem se deixa transfigurar, se desfigura na rigidez de ser sempre o mesmo enquanto o tempo e a vida passam.

Ou se refugia n falsidade da máscara. Mascarar-se é uma opção para não mudar, para não transitar, para não aceitar que o tempo e as circunstâncias passam e nos transformam. A máscara é a opção pelo ridículo do eterno estático. Nada mais triste do que alguém de sessenta anos querendo aparentar trinta. Ou, o inverso, alguém de vinte e poucos anos comportando-se como se tivesse setenta. Ou um pobre querendo aparentar o rico.

Viver mascarado é árduo. Duas caras pesam o dobro que uma. Exige mentir o tempo todo para si e para os outros. Fingir cansa, desgasta, gera insegurança. Difícil também é viver com pessoas mascaradas. Nunca se sabe com quem se está a falar. Se a pessoa real ou a que pretende realizar. Máscaras são teatrais. Ninguém é ator durante toda a vida. Quem usa por opção ou é obrigado a usar por coação tem uma vida sofrida, dividida, partida.

Uma hora a máscara cai. A falsidade se esvai. A pessoa aparece em sua verdade que é a falsidade, o não ser, o aparentar. Não tem mais como fingir. É preciso assumir. Ou sumir para não ser o que se é. Transfigurar, sim! Sempre. Mudar continuamente para ser o que se é deixando o que se foi para assumir o novo que somos sempre chamados a ser.

O diabo e/é a fome!

Não creio em diabo. Creio em Deus. Deus é tudo. O diabo é o nada. O diabo é o não-Deus. Deus é em tudo. É Onipresente. O diabo é o ausente. É o não lugar, o vagar errante pelo mundo estando em tudo sem em nada morar.

O diabo não tem alma. É alma penada, anonadada, finada, extinta, acabada, aniquilada. O diabo é pelo que não é. Ele só existe pelo não existir. Se passa a ser, deixa de ser quem é. O diabo é morte, é destruição, é aniquilação, é mentira, é negação. É o humano quando toma o lugar de Deus e não deixa Deus ser Deus. Não que Deus não possa. O fato é que Deus não obriga, não impõem, não força. Deus oferece, faz proposta, espera resposta.

Deus é o Pão da Vida. Deus é a mesa cheia, farta, disposta e por todos composta. O diabo é a fome da morte. O diabo é a barriga vazia, roncando, gritando, fria. A fome é a antessala do diabo. Jesus a experimentou no deserto. Quarenta dias de barriga vazia. E veio a tentação. A fome  nutre a tentação. Se és Deu transforma estas pedras em pão. O diabo provoca. A fome sufoca. Faz perder a razão.

A fome é o diabo que come o homem. É o pobre diabo catando comida na lata de lixo. É o humano transformado em bicho. Bicho-homem com fome. Bicho-homem sem nome. Bicho homem que come o que sobra da mesa dos homens que comem.

O diabo é aquele que come sem se importar com os que têm fome. O diabo é o grão que deixa de ser pão para ser commodity. É a carne vendida no mercado sem se importar com os ossos desnudos e a pele seca dos que moram ao lado. É a carne nova da mulher jovem e pobre exposta, desfrutada, vendida. O diabo é o país do agro com o povo morrendo de fome, morrendo de magro.

O estômago vazio é razão para qualquer ação. O que não faz um pai diante de um filho com fome? O que não faz uma mãe com o peito seco e a criança a chorar? O que não faz um filho diante do pai e da mãe a morrer por não ter o que comer? Diante da morte como única sorte, não há mais nada a temer. Roubar, assaltar, matar, prostituir. Deixar de ser parar sobreviver. É o ser do não-ser. É o perecer.

O homem não vive somente de pão. Tem que ter pão, sim. Temperado com sonho, carinho, emoção. Sem pão, tudo é não, é triste, é malsão. Para curar a fome de pão-que-é-não, é preciso a Palavra e a ação. Partir o pão. Repartir o pão. Comprometer-se com a ação. Dai-lhes vós mesmos o pão. Não o que sobra. Mas o que temos em nossa mão. Para o que está ao nosso lado. Pão para a multidão. Pão da amizade de uma nova sociedade onde não falte o pão. O pão é caridade, é fraternidade, é uma nova humanidade, é divindade. Deus é pão, é irmã, é irmão, é coração, é carne, é coração. Estende tua mão e dá de teu pão.

O mês de 2.192 dias.

O mês de janeiro de 2023 talvez tenha sido o mês mais longo da história brasileira. Não porque um decreto estapafúrdio do novo governo tenha aumentado o número de dias do mês dedicado a Janus. Janeiro de 2023 teve os mesmos 31 dias dos janeiros dos anos anteriores e dos que virão no futuro.

O diferencial deste janeiro em que a democracia foi reinaugurada no Brasil é que ele foi de intensidade incomparável. Nestes 31 dias, eclodiram algumas das mais intensas crises gestadas durante os 72 meses de governos golpistas que o antecederam. Sim! Governos golpistas. O de Temer e o de Bolsonaro. Alguns não gostam que se lembre da verdade histórica tardiamente reconhecida pela justiça brasileira de que a Presidenta Dilma foi afastada sem nenhum motivo juridicamente sustentável. Foi um golpe em que não houve necessidade de militares. Foi um golpe jurídico e mediático que se revestiu do bufonesco teatro parlamentar. Um golpe orquestrado para conter os avanços democráticos e populares que vinham sendo construídos no Brasil.

As eleições presidenciais de 2022 foram um plebiscito entre democracia e ditadura. Mesmo contra o uso descarado da máquina pública e da fábrica de mentiras, a democracia venceu. O povo brasileiro teve a coragem e a ousadia de votar pela esperança e contra o medo e o terror.

Mas não basta ganhar a eleição. Tem que consolidar o poder e desfazer as maquinações de dominação construídas durante os últimos seis anos. O dia da diplomação de Lula, – 12 de dezembro – foi uma amostra do que viria no dia 8 de janeiro, uma semana após a posse. Sem coragem de assumir a tentativa de golpe, os militares armaram a patacoada de uma “marcha sobre Brasília” que queria imitar a Marcha sobre Roma de Mussolini. Deu errado! Felizmente.

Quem arquitetou o ato terrorista da destruição da casa dos três poderes? Quem está preso são os “tios e tias do zap”. Os mandantes e financiadores ainda estão por deter, julgar e condenar. Será que vai acontecer?

A destituição do comandante do Exército por negar-se a cumprir ordens da Presidência veio mostrar onde estava firmado um dos pilares do governo golpista. Era nos quarteis. Não nas portas onde estavam acampados os terroristas. Mas dentro, nas salas confortáveis dos altos comandos. O governo que se findou em 31 de dezembro passado era um governo militar. Na forma e de fato. Além de ocuparem uma enorme quantidade de postos que seriam de civis, eles deram a linha e a forma da gestão. Exército, Marinha e Aeronáutica carregarão por muito tempo o peso de terem sustentado um governo antinacional.

Militares que, muitas vezes agiram como milicianos. A crise Yanomani veio mostrar isso. Ao invés de proteger os povos originários, fardados colaboraram com madeireiros, garimpeiros ilegais e outros bandos armados que manejam negócios ilegais na região Amazônia. Mais uma vez, o discurso nacionalista escondia uma prática entreguista e predatória das riquezas naturais e dos grupos mais fragilizados da população.

Por fim, apenas para lembrar dos episódios mais marcantes destes 31 dias, a estafa das Lojas Americanas. Três dentre os dez homens mais ricos do país deram um golpe de mais de 40 bilhões de reais. Como isso foi possível? É a pergunta que todos se fazem… Só no anarco-capitalismo brasileiro que teve em Paulo Guedes seu operador no governo passado, tamanha corrupção é possível. Corrupção no sistema privado existe, sim. Não é só no setor público. O uso pelo ex-presidente e seus familiares do cartão corporativo presidencial é um escândalo de corrupção, sim. Mas não chega nem perto da corrupção do capitalismo tupiniquim.

Mas o mês de janeiro passou. Fevereiro vem aí. E com ele o carnaval. Ao ritmo de quais crises se passará o mês das festas momescas? Aguardemos! Certamente virão. Resta confiar na sabedoria do povo brasileiro que sempre soube resistir e na habilidade do novo governo em construir consensos e voltar a dar comida e esperanças a tantas pessoas que delas necessitam.

Onde estava Deus?

Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013? É uma pergunta que muitos nos fazemos hoje. Uma data que desperta recordações. Quero eu também somar-me a tantos que estão registrando em suas redes sociais a memória desta data. Pessoas que viveram diretamente a tragédia ou que se deixaram por ela tocar e solidarizar.

Naquela manhã fatídica de domingo, eu estava saindo de Porto Alegre para Bento Gonçalves para visitar minha mãe internada em uma clínica. Uma viagem sempre difícil e marcada pela emoção. Naquela manhã saí de Porto Alegre com o rádio do carro ligado em uma estação que tocava música italiana. Música suave, gostosa, que recordava a língua materna e a presença da mãe que em breve eu encontraria.

Ao chegar na altura de Canoas, a programação foi interrompida e o locutor deu o primeiro informe do acontecido em Santa Maria: incêndio em uma boate com um total até então registrado de 25 mortos. Alguns quilômetros depois, quando eu passava por Portão, mais um informe: 44 mortos. Minha cabeça girava e eu procurava manter-me atento ao trânsito mas a imaginação não podia parar. Mais adiante, já em São Vendelino, o número de mortos havia passado de 80.

Chegado na clínica onde minha mãe estava internada, a pergunta direta, seca e dura da enfermeira: – Frei, onde estava Deus?

Minha lógica teológica lembrou-se imediatamente de Dietrich Bonhoeffer e de sua resposta diante dos mortos nos campos de prisioneiros: – Deus estava nos mortos. Deus era cada um dos jovens que foi morto naquela noite na Boate Kiss em Santa Maria. Guardadas as devidas proporções, assim como os milhões de judeus, ciganos, homossexuais, velhos, doentes e comunistas que foram mortos nos campos de concentração nazista foram vítimas do ódio nazista, as moças e rapazes que foram sufocadas pelo gás tóxico e do fogo da boate, foram vítimas da ganância de alguns empresários e da irresponsabilidade do poder público.

Dez anos se passaram. O julgamento foi adiado e, quando finalmente feito, anulado. Os réus continuam soltos e sob a proteção do dinheiro ou das relações políticas. Os jovens que estavam na boate e sobreviveram, continuam a penar com as sequelas físicas e psicológicas. Os familiares continuam chorando a dor da perda e da justiça ainda a tardar.

Como sociedade, cabe a missão de recordar, de memoriar, de consolar e de esperançar a memória de tantas vidas interrompidas. Que jamais se esqueça, para que nunca mais aconteça!

Viver é transitar

A vida é uma transição. Cada etapa dela, um conjunto de mutações. Umas curtas. Outras mais longas. Todas elas um caminho entre o início e o fim, entre a concepção e o apagão final que chamamos morte.

No início do percurso, elas são rápidas e facilmente perceptíveis. Crianças e adolescentes mudam a cada mês, a cada semana, a cada dia. Na juventude, as transições começam a diminuir sua velocidade. Ao chegarmos à vida adulta, temos a impressão de que somos sempre os mesmos. Ledo engano. Continuamos mudando, lenta, devagar, inexoravelmente. Sem volta.

A velocidade da transição entre a vida e a morte parece acelerar-se outra vez quando a velhice nos alcança ou quando, por contraditório que pareça, a alcançamos. É um encontro que não desejamos, mas que, quase sempre, buscamos e, a cada aniversário, até festejamos. A percepção da retomada da rapidez da transição nasce da certeza cada vez mais evidente de que não há como voltar atrás e que o fim está cada vez mais próximo e a mutação final nos levará ao desaparecimento. O tempo se torna cada vez mais curto e cada minúscula transição é vivida como uma terrível maldição. Ou não. Tudo depende da opção entre viver a vida como uma opção ou como uma ilusão. Escolhemos assumir a transição como um modo de vida ou a ela resistimos fingindo que o tempo não passa?

A vida é a mesma. O tempo é o mesmo. As mudanças são as mesmas. Queiramos ou não. Aí não está o problema. Aí está o dilema. Que não está fora de nós. Está dentro, na medula de nossos ossos, no fundo do fígado e no âmago das tripas. O tempo não é fruto dos astros que giram ao redor uns dos outros e nos ajudam a marcar as horas, os dias, os anos, os séculos, os milênios. Esse é o tempo cronológico que, como seu mito inspirador, pode nos devorar se não soubermos dele nos distanciar para viver. O tempo que realmente conta e mede nossas vidas e lhes dá sentido é aquele que mora dentro de nós. O tempo de Deus para quem um dia é como mil anos e mil anos podem ser como um dia. Um som tormentoso que não tem fim ou uma doce melodia.

Não é o tempo que faz as mudanças. São as mudanças que fazem o tempo no ritmo em que as vivemos, assumimos, compreendemos e completamos. É tempo de mudar de tempo, de fazê-lo mais lento, menos transitivo, mais instintivo e degustativo que quantitativo e numerativo. Tempo de fazer uma vida transitiva para que o tempo se torne lento e vivamos intensamente cada momento.