Arquivo mensal: fevereiro 2021

Sobre escrófulas e cloroquina

Cloroquina todo mundo já sabe o que é: um medicamente usado para prevenir ou controlar os efeitos da malária. Eu o conheço pessoalmente. Durante cinco anos tomei cloroquina como preventivo à malária e, até o fim dos meus dias, guardarei seus efeitos colaterais. O primeiro, pequenas coagulações no humor vítreo do olho direito. Elas fazem que, ao olhar para um fundo claro, eu enxergue pequenos pontos pretos movendo-se de um lado para outro. O outro é uma taquicardia que, graças aos medicamentos que tomo diariamente, está sob controle.

Tem gente que, contra todas as evidências disponíveis, acha que a cloroquina também serve para prevenir a Covid19. Resultado dessa crença é que, no final da pandemia – espero que seja para breve – haverá muitos brasileiros com problemas oculares, cardíacos e hepáticos (que eu não tive, graças a Deus!).

Já sobre as escrófulas, só fiquei sabendo delas ao ler as obras de Marc Bloch. No livro “Os Reis Taumaturgos”, o historiador francês faz um estudo sobre um curioso fenômeno medieval: a crença de que os reis da França e da Inglaterra tinham o poder de, com o toque das mãos, curar os doentes afetados por este terrível mal. Geralmente associadas à tuberculose, as escrófulas têm sua origem na inflamação dos gânglios linfáticos na região do pescoço. Nos casos graves, a inflamação chega à fistulização e o aspecto do paciente se torna deveras repugnante.

Do séc. XII ao séc. XVII, tanto na França como na Inglaterra, milhares de pessoas, anualmente, vinham até o rei para serem tocadas e curadas. Em ambas as nações, estabeleceu-se um ritual litúrgico que era praticado regularmente pelo monarca de turno.

Tal prática se baseava na afirmação de que o rei, pela unção recebida no dia da sua entronização, passava a ser uma pessoa sagrada e, como tal, tinha o poder de curar. Era o mesmo poder exercido por Jesus e pelos santos. E com uma vantagem: tal poder não dependia da santidade pessoal do rei, mas da unção por ele recebida na entronização.

A essas alturas você já deve estar se perguntando: mas, e as pessoas, realmente ficavam curadas? A resposta é “sim”! Quem vinha ao rei e recebia seu toque e sua bênção, efetivamente ficavam curado… Como? Simples: as escrófulas são uma inflamação cíclica. Após a supuração, elas, por si mesmas, fecham seu ciclo e cicatrizam. Tal processo era favorecido pelo fato de os doentes terem que aguardar perto do palácio por alguns dias à espera do ritual. E enquanto aguardavam recebiam boa alimentação. E, depois do toque, ainda recebiam do rei uma esmola que lhes permitia manter a boa alimentação. Com descanso e comida, a imunidade aumentava e as escrófulas fechavam seu ciclo até nova irrupção.

Naquela época, claro, não havia os conhecimentos médicos que temos hoje. E os milagres faziam parte do cotidiano. Aconteciam todos os dias e em toda parte. E isso não porque naquele tempo Deus interviesse mais que hoje no cotidiano das pessoas. Mas porque as pessoas estavam predispostas a acreditar neles. Dentro da compreensão medieval, não havia separação entre o sagrado e o profano. Deus e seus auxiliares, os santos e os anjos, bem como Satanás e seus diabinhos, conviviam lado a lado com as pessoas e intervinham no dia a dia e em todos os âmbitos da vida.

O que os reis fizeram – e nisso esteve a sua genialidade política – foi usar a ignorância e a crença nos milagres para consolidar a instituição real. Assim explica Marc Bloch essa jogada fenomenal dos monarcas franceses e ingleses: “Para que uma instituição destinada a atender a fins precisos indicados por uma vontade individual possa impor-se a todo um povo, é necessário ainda que ela seja sustentada pelas tendências profundas da consciência coletiva; e talvez, reciprocamente, para que uma crença um pouco vaga possa concretizar-se num rito regular, não seja indiferente que algumas vontades conscientes ajudem-na a tomar forma.”

Voltando à nossa conhecida cloroquina e outras crenças sem evidência científica, devemos nos perguntar não apenas sobre as intenções dos que as querem impor à população. Devemos nos perguntar também quais são as “tendências profundas da consciência coletiva” que tornam essas mentiras aceitáveis para uma parcela significativa da população.

A Covid19 é um desafio à medicina. No Brasil, tornou-se uma questão política. Mas o mais profundo e grave, é que ela está revelando muito sobre as profundezas culturais de nossa nação.
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Ecumenismo e Libertação

O título desta postagem é uma homenagem a um livro que li pela primeira vez no final da década de 1980, quando cursava a Graduação em Teologia. Era a época da disputa em torno à Teologia da Libertação, um movimento de intelectuais cristãos que queria pensar a fé a partir das lutas dos povos do continente para superar a pobreza e a opressão.

A Teologia da Libertação, desde as suas origens até hoje, sempre se entendeu como um movimento transeclesial, ou seja, constituído por homens e mulheres que, identificando-se com uma comunidade cristã específica, não fica restrito a esta ou aquela comunidade, mas pensa o cristianismo no seu todo, para além dos limites institucionais. Claro que, sendo o Brasil um país naquela época ainda majoritariamente católico romano, a tensão se expressava de maneira mais viva dentro da Igreja Católica Romana. O “caso Leonardo Boff” tornou-se emblemático desta disputa pelo sentido da fé no contexto brasileiro e latino-americano.

O autor do livro “Ecumenismo e Libertação” que motiva esta reflexão é o teólogo uruguaio Júlio H. de Santa Ana. De formação metodista, Júlio fez-se, por opção, amplamente ecumênico e, como tantos uruguaios de seu tempo e de hoje, girou pelo mundo a serviço da causa em que acreditava, a unidade das Igrejas e do Povo de Deus. Atuou em vários organismos ecumênicos internacionais, inclusive no Conselho Mundial de Igrejas.

Neste livro que é, sem dúvidas, um clássico no tema, o autor discorre sobre as causas das diversas divisões que, ao longo de dois mil anos, afetaram a desejada unidade do Povo de Deus. Houve causas dogmáticas, litúrgicas, canônicas, culturais, políticas, econômicas, pessoais… Muitas divisões com muitas causas e muitas causas em cada divisão. O cisma do séc. XI, por exemplo, que separou latinos e orientais, não teve como única causa a discussão sobre a procedência do Espírito Santo apenas do Pai ou do Pai e do Filho. A disputa de poder entre o Império Bizantino, o Papado e as repúblicas italianas também influíram no triste desfecho. Do mesmo modo, não foram as “Cinco Sola” de Lutero que suscitaram as rupturas na Igreja do Ocidente. Sem os interesses econômicos e políticos dos príncipes alemães, de Carlos V e dos Papas Imperadores e de sua corte, a crise das reformas não teria tão triste desfecho.

Mas a razão que sempre me faz voltar ao livro de Júlio de Santa Ana é a parte conclusiva em que, olhando o presente e as perspectivas futuras para os que sonham com a unidade das Igrejas e do Povo de Deus, o autor, citando Emílio Castro, também uruguaio, metodista e apaixonado pelo ecumenismo, afirma que Ecumenismo é Solidariedade. Solidariedade na busca do Reino, solidariedade no serviço aos pobres.

Para Emílio e para Júlio, assim como para muitos outros cristãos e cristãs que buscam ser fieis ao projeto do Reino de Deus, a unidade cristã se constrói não apenas na discussão sobre princípios dogmáticos, litúrgicos, canônicos, sacramentais, ministeriais… O que une ou separa os cristãos, é a atenção que é dedicada aos pobres. Isso não é novo. É muito antigo. Já Paulo o afirmou na Carta aos Gálatas. Segundo o Apóstolo dos Gentios, para quem tem fé no Deus de Jesus, tudo é relativo, menos o cuidado para com os pobres. Estes nunca podem ser esquecidos.

Esse é o princípio que está hoje por trás de todas as discussões em torno à Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. Há cristãos que se preocupam com os pobres e há cristãos que, com argumentos supostamente religiosos, justificam sua desatenção para com os preferidos por Jesus Cristo. E isso não é privilégio desta ou daquela Igreja. São posturas que ultrapassam as barreiras confessionais e provocam uma divisão em todas as igrejas.

É a divisão mais radical, mais que as do séc. V, do séc. XI e dos séc. XVI-XVII. Uma divisão que recoloca o cristianismo frente à questão fundamental que temos sempre de novo responder: quem é o Deus em que acreditamos? É o Deus de Jesus que dá a vida para que todos tenham vida ou é um Baal que exige o sacrifício da vida dos pobres?

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Minha mentira de estimação

“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”, disse um dia Mário Quintana. Não sei o que levou o poeta a cunhar a expressão. Mas hoje, mais do que nunca, no contexto avassalador de notícias mentirosas, as ditas fake news, ela dá o que pensar.

Verdade que notícias mentirosas sempre existiram. A história da comunicação, comprova-o com facilidade. Desde as pinturas rupestres até as redes sociais. Nossos ancestrais das cavernas, para impressionar seus amigos e assustar os inimigos, exageravam no tamanho dos animais que caçavam ou na quantidade de mulheres que estavam sob seu domínio. Uma visita às grutas de Altamira ou à Serra da Capivara demonstra de forma cabal que as fake news estão no DNA da humanidade. O que os modernos meios fizeram – imprensa, rádio, televisão, internet – foi potencializar aquilo que antes se fazia no boca a boca, na cerca da vizinha, no boteco da esquina, no banco da praça, no púlpito da igreja, na sombra da figueira.

Um exemplo clássico são os jornais televisivos. Se, num mesmo dia, assistimos aos noticiários da noite das várias redes de televisão aberta, parece que cada uma delas vive uma realidade diferente. Na atual crise da Covid19, se você assiste à rede “A”, com certeza terá a impressão de que a pandemia não existe; na rede “B”, basta ir até a farmácia da esquina e comprar um vermífugo e tudo está resolvido; na rede “C”, a informação é de que a vacina já está disponível para todos; na rede “D”, depois do Boa Noite sorridente dos apresentadores, você liga para a funerária e encomenda o caixão porque a morte de todos os brasileiros, você incluído, é inevitável.

O rádio não foge deste paradigma. E os jornais tampouco nos oferecem uma verdade mais objetiva. Mas o que é verdade? Aí é que mora o problema… Tomás de Aquino, dizia que “a verdade é a adequação entre o intelecto e a realidade”. Podemos ler esta frase de duas maneiras. A primeira, é afirmando que, para chegar à verdade, a nossa mente deve adequar-se ao que está acontecendo ao nosso redor. A segunda, também possível segundo o filósofo e teólogo medieval, é a de que a verdade é a adequação da realidade à nossa mente.

Para o santo, a verdade só se alcança com o equilíbrio entre as duas perspectivas. Esquecer de um dos lados, induz inevitavelmente ao erro. As fake news são uma prova do acertado da análise do doutor da Igreja. Elas se limitam a adequar a realidade à mente humana. São construídas para oferecer às pessoas a versão da realidade que elas gostariam que fosse verdadeira. Em outras palavras, elas dizem às pessoas o que elas gostariam de ouvir. Por isso é tão difícil convencer o vizinho, o amigo, o tio, a tia, o primo, o irmão, o cunhado…, de que a notícia que eles receberam e passaram adiante no grupo da família ou do bairro é falsa: “Mas como é falsa, se é nisso mesmo que eu acredito?” E quando, com fatos e dados, você prova que aquilo não é verdadeiro, vem o argumento fatal: “Se não foi assim, poderia ter sido e, se não aconteceu, ainda pode acontecer”.

O propagador de fake news não tem a consciência de ser mentiroso. Ele simplesmente tem a convicção de que a realidade deve espelhar o que a sua mente pensa e deseja. Para o propagador de notícias mentirosas, a verdade é uma mentira que infelizmente aconteceu e deve ser negada. Ele tem sua mentira de estimação. Ele a ama. Vive para ela. E por ela é capaz de morrer e, se preciso for, capaz de matar.

Que nos salvem os poetas e os santos!

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