Arquivo mensal: agosto 2021

Raiana ou uma janela para a liberdade

Janela, fenestra ou ventana. Uma abertura, geralmente a meia altura, nas paredes externas de uma construção. Um buraco protegido. Por vidro, tela, grade, persiana, veneziana. De muitos materiais: madeira, ferro, alumínio, plástico. Em muitos formatos. Pequenos buracos, de parede inteira, panorâmicos, quadrados, redondos, alongados, hexagonais, verticais, horizontais, ogivais como as das góticas catedrais. Janelas de correr, de bater, basculantes.

Em muitas formas, uma só função: permitir, proibir, inibir. De entrar ou de sair. A janela é um regulador. De luz, de ar, de som, de frio ou calor. Na justa medida. De dentro para fora. E do exterior para o interior. Um excelente engenho controlador. Conforme a necessidade. Conforme a curiosidade. Há janelas discretas de cortinas repletas que impedem a vista do interior. E há as indiscretas que do alto contemplam tudo o que passa no exterior.

Janelas não são para pessoas. Gente passa por uma janela de um tipo diferente. Uma janela que chamamos de porta. Uma designação meio torta. Um buraco na parede que vai até o chão. Igual a uma janela. Só que até o chão. Regula a entrada de luz, ar, som, frio e calor. Igual a uma janela. Só que até o chão. Em muitos materiais e formas. Assim como as janelas. Só que até o chão. Com diferente função. Portas são para gente. Para entrar e sair. Ou para impedir.

Raiana Ribeiro da Silva entrou pela porta. Bairro Boca do Rio, Salvador, Brasil, agosto de 2021. A porta cumpriu sua função. Raiana entrou. Melina Esteves França fechou. Gente do bem a patroa. Anúncio na internet. Pouco trabalho. Bom salário. Comida boa. A porta não mais abriu, sua função cumpriu. Raiana de sair impediu. Ela não pode mais sair. O apartamento virou prisão. Cuidar de três crianças a servidão. Sem descanso. De noite e de dia. Todo dia. Todos os dias. Sem comida. Sem água. Sem descanso. Sem salário. Esse seu trabalho diário. Dormir no chão. Ao primeiro pedido de socorro, cortada a comunicação.

A janela trancada. De alto a baixo fechada. Encadeada. A liberdade cerceada. A servidão dos avós, bisavós, trisavós rememorada, revivida, renovada. A África-Brasil reescravizada. Patroa branca não pode viver sem escrava. Babá. Ama-de-leite. Cozinheira. Copeira. Faxineira. Lavadeira. Patroa branca tem mais o que fazer. Cabelereiro, manicure, pedicure, whatsapp, instagram, facebook, as amigas, reais e virtuais, cinema, teatro, shopping, praia e tudo mais.

Vivemos em outro mundo. Corremos em outra raia. Se reclamar bate, espanca, fere, deixa manca. No banheiro tranca. Pequeno cubículo. Escuridão. Uma pequena ventilação. Uma janela. Pequena. Mal entra o ar apenas. Basculante. Raiana olha hesitante. Como escada a pequena estante. Uma janela de oportunidades. O caminho para a liberdade. Desliza seu magro corpo no estreito vão. Três andares. A rua embaixo. Carros, gente, confusão. Arriscar a morte é melhor que a escravidão. Fecha os olhos. Lança o corpo. Tombo no chão. Saiu na televisão. Brasil século XXI. Cinco séculos de escravidão.

Um Corpo Que Cai

Um corpo que cai não é apenas um corpo que cai. Um corpo que cai é toda a humanidade que cai. Estrepitosamente. Fragorosamente. Absurdamente. Ensurdecedoramente cadente. Do alto de um avião em ascensão. Um avião que não é apenas um avião. É uma nação. Um império sem noção. Um império que fez da opressão o seu modo de ação. Vietnã. Coreia. Camboja. Irã. Nicarágua. Panamá. Síria. Iraque. Afeganistão. Até onde irão? Insensatos. Sem razão. Servidão das armas da destruição. Da fome a consorte. Indústria da morte.

O corpo cai. O império cai? Talvez seja cedo demais. Mas há sinais de que cai. Ou é apenas um tombo para subir ainda mais? Por enquanto ouvimos apenas os “ais” dos que caem do sonho de partir para um lugar onde não entrarão jamais. A porta está fechada. A fronteira está fechada. A amizade é apenas fachada que se esvai, se esfumaça, disfarça, trapaça. Aqui o afegão não passa. O turco não passa. O negro não passa. O chicano não passa. Se passa cai. Tomba do muro. Por tontura, altura, arame farpado ou bala. Muitos muros. Duros. Escuros. Berlim é passado. Virado. Desmanchado. Envergonhado. Agora é Ceuta, Melilla, Palestina, Evros, Coreia, El Paso, Ciudad Juarez. Em cada porto. Em cada aeroporto. Em cada cabeça. Em cada corpo. Em cada rosto o muro está escrito, restrito, dito.

Vertigem. A humanidade rodopia qual turbina do C-17 que decola deixando para trás um rastro de corpos que caem. Estamos todos tontos de tanto girar sobre nós mesmos sem saber para onde ir. Para que lado vamos cair na hora em que a piorra de nossos desejos insanos não mais rodar? Para o sul, o norte, o leste ou o oeste? Os corpos caem para baixo. Sempre é bom lembrar. Vertigem de humanidade. Quando um corpo cai, é toda a humanidade que se vai.

Vertigo. Luzes se apagam. Está escuro. Estamos num lugar chamado Vertigem. Isso é tudo o que não queríamos saber. E a noite é cheia de buracos abertos pelas balas douradas que rasgam o céu de Cabul, de Caracas, de Manágua, do Vigário Geral, da Cidade de Deus, do Jacarezinho, do Alemão, de Paraisópolis. Os corpos caem. Corpos árabes, afganis. pashtuns, filipinos, marroquinos, argelinos, indonesianos, chicanos, peruanos, humanos. Jovens. Negros. Pobres. A humanidade cai. Vamos cair. Um buraco sem fim.

Um corpo que cai. Hitchcock não troca mais os corpos. Madeleine não é Judy. “Scottie” Ferguson não está tonto nas alturas. Os corpos que caem são reais. Únicos em suas realidades carnais. Do avião que sai não é apenas um corpo que cai. É um filho, um irmão, um esposo, um namorado, um pai. É amado. Esperado. Chorado. Talvez nem seja enterrado.

O mundo está louco. Aloprado. Alucinado. Não é a papoula. Não é o ópio do talibã. É o ópio do povo. A religião do dinheiro, do negócio, do capital, do lucro. Os aviões vão e voltam. As lágrimas vão e não voltam. As vidas vão e não voltam. As balas e os canhões voltarão? Nossa humanidade voltará? Vertigem. Um corpo que cai. A humanidade que cai.

Madrugadas Olímpicas

As Olimpíadas de Tóquio terminaram. Jogos estranhos. Em meio à pandemia. Sem público. Sem torcida. Silenciosos. Tão silenciosos que podíamos ouvir o som dos golpes do boxeador no ringue, as passadas do atleta na pista, o suspiro da ginasta antes do salto final, o gemido do corredor de longa distância em seu esforço derradeiro para alcançar o pódio.

O congraçamento esperado, adiado e por fim realizado, se transformou em apreensão, medo, tensão. Os atletas foram testados em seus limites físicos. Deram o máximo de suas possibilidades corporais. E também das mentais. Diferente dos jogos anteriores, o desafio físico foi acompanhado pelo psicológico. Mesmo na elite mundial do esporte, alguns sucumbiram à tensão e desistiram da competição. Atletas não são super-heróis. São pessoas de carne, osso e sentimentos.

Em meio a tudo isso, os jogos de Tóquio foram generosos para o Brasil. Nunca o esporte nacional conquistou tantas medalhas. E em modalidades tão variadas. Coletivas e individuais. Novas e tradicionais. Com atletas fazendo subir ao pódio a imensa diversidade dos muitos brasis que somos. Brilharam atletas de ambos os sexos e de muitos gêneros não mais escondidos. Procedentes de todos os recantos e estratos desta imensa nação de muitas nacionalidades e imensas potencialidades. Nordestinos e sudestinos. Pampeanos e amazônidas. Cabeças chatas, redondas e quadradas. De todas as raças, de todas as cores, de todos os sabores e de todos os humores. Urbanos, suburbanos e interioranos. Sem medo de mostrar e dizer suas diversas identidades de um povo que quer, acima de tudo, a felicidade de brilhar e amar.

As noites insones de Tóquio mostraram que, apesar dos ventos contrários que por aqui sopram, o Brasil quer voltar a ser brasileiro. O Brasil com seus corpos atléticos que, diante do mundo, mantêm o bamboleio e sabem gingar, com suas cabeças livres que sabem pensar, capazes de tirar a mãe preta do cerrado e botar o Rei Congo no congado, o Preto Velho no tablado, nas pistas, quadras, ringues, ondas, piscinas, estádios, diante do mundo, sem medo de ser feliz, com ouro, prata ou bronze ou pelo simples orgulho de competir, de dizer “estamos aqui” e vamos comemorar.

Comemorar de muitos jeitos. Comemoração não tem uniforme. Comemoração tem coração. É coisa do coração. Tem silêncio, tem grito, tem soco no ar, tem choro avassalador, tem o olhar desafiador nascido da dor e dos muitos obstáculos superados até chegar a esse momento tão desejado e muitas vezes adiado. Um comemora sozinho, outro com os colegas, com o treinador e, sublimidade esportiva, festeja com o adversário derrotado ou com aquele que o venceu e passa a ser admirado sem ser invejado.

Alguns atletas já voltaram. Outros logo virão trazendo seus louros de bronze, prata e ouro. Já podemos voltar a dormir mais cedo e mais tarde levantar. E, bem descansados, continuar a pensar o país que somos, a nação que formamos e o futuro que sonhamos.