Arquivo mensal: junho 2022

As chaves de São Pedro

Depois das noivas, dos pães e dos peixes de Santo Antônio e dos fogos de São João, é hora das chaves de São Pedro. Com ele, encerram-se as festas juninas e a vida volta ao normal.

A razão de São Pedro carregar as chaves é simples. Está lá no Evangelho de Mateus, no capítulo 16, quando Jesus diz que, sobre a pedra de Pedro edificará a Igreja e a ele dará as chaves do Reino com o poder de ligar e de desligar tanto na terra como nos céus.

A frase pronunciada por Jesus não era original. Era uma velha conhecida de todos os judeus piedosos. Ela fazia parte da tradição e era usada em toda disputa política. Quem a pronunciou pela primeira vez foi o profeta Isaías, lá no Antigo Testamento, no tempo do rei Ezequias. Era um tempo difícil. Judá estava sendo atacado pelo rei da Assíria e, Jerusalém, cercada, soçobrava. Sobna, o ajudante mais próximo do rei, ao invés de se preocupar com a fome e as doenças que matavam os pobres, gastava seu tempo e os recursos públicos na construção de um mausoléu onde queria ser enterrado com a glória dos faraós do Egito.

Chamado para intervir, o profeta Isaías manda que Sobna seja retirado do cargo e a chave da casa de Davi seja entregue a Helcias, filho de Eliacim. Na prática, o profeta destituía o arrogante Sobna e colocava em seu lugar um humilde servidor público. Para simbolizar a troca de mando, a túnica, o cinto e as chaves – três símbolos do poder – passam de Sobna a Helcias. Mas o símbolo que ficou na memória popular, foi o das chaves. Afinal, desde que surgiram, em torno ao 4.000 a.C., no Egito ou na China, as chaves sempre simbolizaram poder. Desde o mordomo do rei até o carcereiro, quanto maior o molho das chaves, maior o poder que aparenta.

Mas, voltando ao episódio de Mateus, de quem Jesus estava tirando as chaves para entregá-las a Pedro? O texto não explicita. Podemos encontrar uma dica no capítulo 23, quando ele fala dos fariseus que bloqueiam a entradas das pessoas no Reino dos céus: eles não entram e nem deixam ninguém entrar! Se essa conexão for procedente, a entrega das chaves a Pedro não teria como objetivo fechar as portas como faziam os fariseus, mas abri-las para que todos pudessem entrar.

A história se complica mais ainda quando, avançando um pouco na leitura de Mateus, no capítulo 18, encontramos que Jesus não entrega esse poder apenas a Pedro, mas a todos os discípulos. A mesma concessão coletiva aparece no Evangelho de João (capítulo 20) e também é adotada pelo apóstolo Paulo na Carta aos Coríntios.

Como vemos, a história das chaves de São Pedro não é tão simples. E a interpretação deste episódio, na história da Igreja, foi motivo de muita discussão. As chaves significam poder. Entregá-lo a uma só pessoa, é uma coisa. Compartilhá-lo entre todos, é outra muito diferente.

No primeiro milênio da Igreja, a interpretação comum era a de que o poder das chaves deveria ser exercido de modo coletivo. Todos os bispos teriam o poder concedido por Jesus de ligar e desligar. As disputas de poder, no entanto, fizeram com que, no final do séc. XII, Inocêncio III, o bispo de Roma mais poderoso de toda a Idade Média, reclamasse para si a exclusividade das chaves petrinas. E com a força das armas e do saber, impôs esse modo de pensar aos outros bispos e aos príncipes e reis. As Igrejas orientais jamais aceitaram essa imposição e se afastaram ainda mais de Roma. Os príncipes e reis, não tendo alternativa, submeteram-se até aparecer a ocasião para se rebelar.

Alguém pode estar se perguntando o porquê de estar cavoucando estas histórias. Primeiro, claro, por causa das chaves de São Pedro, o último dos santos juninos. Segundamente, por causa da crise de poder que vivemos tanto na sociedade como nas Igrejas. E nisso, toda essa discussão pode nos ajudar. Assim como as chaves, o poder é simbólico. Dependendo do modo como o imaginamos, ele recai sobre nós. Se nós o pensamos monocraticamente, encontraremos um tirano para exercê-lo de forma autoritária. Se o pensamos coletiva e circularmente, teremos a possibilidade de construir uma democracia e caminhar para a fraternidade e a amizade social.

Nesta última festa junina, ao ver São Pedro com as chaves na mão, fiquemos atentos! Será que elas não estão também nas mãos dos outros discípulos? Não custa imaginar…

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O SEQUESTRO DE JESUS

Calma! Não foi bem um sequestro. Falando com mais propriedade, foi uma tentativa de sequestro. Melhor dizendo: conforme os evangelhos, foram três as tentativas. E, felizmente, as três falharam.

A primeira está descrita no Capítulo Três do Evangelho de Marcos. Uma tentativa estranha. Foram os próprios familiares de Jesus que tentaram tirá-lo de circulação à força. Ele apenas havia começado sua missão na Galileia e sua ação e pregação provocavam as reações mais controversas. Uns afirmavam ser ele o Messias esperado. Outros viam no pregador ambulante e curandeiro uma ameaça para a estabilidade religiosa e social. Quando ao redor dele começou a formar-se um grupo de seguidores, os familiares ficaram apreensivos com o que poderia acontecer. Aproveitando uma ocasião em que ele estava perto de casa, saíram para detê-lo à força sob o argumento de que enlouquecera. A tentativa de sequestro de Jesus por parte dos familiares não teve êxito pois ele, desconsiderando até os argumentos da mãe e dos irmãos, continuou a pregar e a curar à beira do Lago da Galileia.

A segunda tentativa de sequestro sofrida por Jesus é narrada no Evangelho de João. O objetivo aqui não era o de tirá-lo de circulação, mas buscá-lo para fazê-lo rei. Está no Capítulo Seis, no episódio da distribuição dos pães e dos peixes. A multidão estava faminta e, contra todo cálculo, os pães e os peixes que alguns traziam foram distribuídos e houve para todos e ainda sobraram doze cestos. O Evangelho diz que, vendo tal sinal, as pessoas o aclamaram como profeta e queriam que Jesus se tornasse o rei deles. O texto não diz exatamente quem queria fazê-lo rei. Supomos que seria a multidão antes faminta e agora saciada. No pano de fundo da memória de todo judeu fiel, estava o profeta Elias que fizera o punhadinho de farinha da viúva de Sarepta bastar para ela e sua família e o próprio Elias durante três anos. Diante desta segunda tentativa de tomá-lo pela força, Jesus se retira para as montanhas a fim de não ser sequestrado e obrigado a fazer o que não queria.

A terceira é a mais terna e a que mais faz pensar. Também é descrita por João. E a sequestradora é uma mulher, Maria Madalena. Ao reconhecê-lo ressuscitado, a discípula quer retê-lo para si. Jesus reage com um “não me detenhas” e se vai, segundo ele, para junto do Pai. Maria parte correndo contar tudo o que aconteceu aos companheiros de discipulado. A tentativa de sequestro termina em missão para a intencional sequestradora!

Em cada uma das tentativas, um motivo bem diferente para detê-lo e uma razão para ele não se deixar. Em todas, Jesus mostrou-se cioso de sua liberdade e da originalidade de seu projeto libertador. Nunca se deixou sequestrar. Até quando vieram prendê-lo para matá-lo, segundo o Evangelho de João, ele só se entregou porque quis.

Jesus sempre foi e continua livre! É bom saber e é preciso repetir essa verdade. Ainda mais nestes tempos em que tantos tentam prender Jesus dentro de seus esquemas teológicos, religiosos, eclesiásticos, litúrgicos, morais, canônicos e, ultimamente de maneira acentuada, tenta-se tornar a pessoa de Jesus refém de projetos políticos e sociais idolátricos. Nem seus familiares, nem seus amigos e muito menos os inimigos poderão detê-lo. Sua mensagem sempre foi e sempre será libertadora de todas as prisões e de todos os grilhões. Podem tentar prendê-lo e até apoderar-se de seu nome por um tempo. Mas nunca poderão prendê-lo para sempre porque ele é libertação!

O futuro talvez não nos espere.

A frase que intitula este texto, pronunciado por um amigo em uma conversa em uma das recentes noites hibernais, caiu em mim como uma pedra em barra de metal. Depois do estalo do impacto, ficou ressoando, indo e vindo cada vez mais lentamente e mais profundamente até fazer-se silêncio. Um silêncio eloquente que não parava de clamar e de fazer pensar.

Nossa civilização ocidental tem entre seus fundamentos a ideia da temporalidade que tem na tradição judaico-cristã sua fonte principal. Ao fazer sua promessa a Abraão, Deus indica para ele e seus descendentes o caminho do futuro. O que importa agora é o amanhã e caminhar em direção a ele. Abraão põe-se a caminho. Um caminho geográfico. Mas também um caminho temporal à espera da descendência que virá.

Na promessa feita a Moisés e aos descendentes de Abraão escravizados no Egito, o futuro é outra vez evocado. Para entrar na Terra Prometida, é preciso vencer não apenas os longos caminhos entre as areias escaldantes do Sinai. É preciso também vencer o tempo. E este é cruel para os que saíram do Egito. Todos morrem no caminho. Apenas os frutos do tempo – os filhos e netos – logram ver as férteis terras de Canaã.

As sucessivas promessas feitas por Deus a Israel também o colocam na perspectiva do futuro que passa de temporal a atemporal. Mas não por isso menos futuro. No Exílio, os profetas apocalípticos afirmam que a Promessa de Deus se realizará quando o tempo for consumado. É preciso percorrer o tempo da história até o seu fim para entrar na Nova Terra Prometida celestial.

O cristianismo vê em Jesus ressuscitado a realização da promessa e o fim dos tempos. Mas é um fim provisório na espera da Segunda Vinda de Cristo que vai selar o fim definitivo dos tempos. Paulo de Tarso, o primeiro teórico do cristianismo, diz que somos convidados a viver no tempo como se não fôssemos do tempo. Uma estranha atemporalidade temporal é o que propõe o fariseu convertido. Nela, a atemporalidade é recebida, é dom, é graça. A temporalidade é compromisso, é tarefa, é obra.

As filosofias do Ocidente guardaram de Paulo a segunda parte. O capitalismo vê o futuro como resultado da capacidade de investimento no presente. Poupar hoje é a garantia da abundância do amanhã. O socialismo vê as contradições do presente como potencialidade inelutável para a construção da revolução futura. Quando mais acirrado o conflito no hoje, mais próximo está o amanhã glorioso.

Na disputa entre uma ideologia e outra, chegamos ao impasse atual. A crise ecológica que pode levar à extinção da humanidade; as guerras por disputa de mercado entre o império norte-americano e seus satélites norte-atlânticos e as potências emergentes do Oriente; a pandemia da Covid19 que colocou a humanidade de joelhos durante mais de dois anos e continua a fustigar; os 100 milhões de pessoas que vagam pelo mundo em busca de um lugar para morar; a fome que volta a assolar a humanidade; o fascismo que volta a espreitar os palácios públicos e privados… e tantos outros sinais estão aí a nos dizer que o futuro tão sonhado não só está distante, mas que é muito provável que nunca chegaremos a ele.

Em outras palavras, como dizia meu amigo João, o futuro talvez não tenha paciência para esperar por nós. Ou, quem sabe, ele queira nos dizer que, para deixar que ele venha a nós, temos que reaprender a, simplesmente, viver o presente que o tempo nos dá. Enquanto ele está lá. Antes que se vá. Antes que a ânsia pelo amanhã nos devore qual Cronos a seus próprios filhos.