Arquivo mensal: setembro 2020

Vestido para irmanar.

Existe roupa para tudo. Roupa para casar, para trabalhar, para jogar futebol, para dormir, para descansar… Sim! Ninguém descansa de terno e gravata ou de macacão. Para relaxar, bermuda, camiseta e chinelo é o ideal. Ou alguém já foi para a praia de roupa camuflada e bota de borracha? Só quem trabalha na limpeza da orla faz isso. Mas aí já não está descansando. Está trabalhando e com a roupa adequada para a tarefa que está desempenhando.

E para irmanar, para ser irmão, existe roupa adequada? Pergunta estranha. Mas ela tem sentido. Francisco de Assis, o irmão universal, nos mostra que sim. E num episódio muito conhecido de sua vida. A cena foi imortalizada no cinema pela obra “Irmão Sol, Irmã Lua”, de Franco Zefirelli. Francisco, diante do bispo de Assis, do pai e da mãe e de toda a cidade, despe-se das roupas e, completamente nu, proclama que, daquele dia em diante, não mais chamará de pai a Pedro Bernardone, mas seu único pai, será o Pai que está nos céus.

O detalhe, registrado pelos biógrafos do santo e que aparece no filme de Zefirelli, é que as roupas que Francisco despiu, eram coloridas. Tomás de Celano, o biógrafo oficial, é mais preciso no detalhe simbólico da cor. Segundo ele, no tempo em que morava e trabalhava com o pai, levando vida de burguês, Francisco usava roupas de cor escarlate.

Na sociedade medieval, a cor da roupa identificava o grupo social ao qual a pessoa pertencia. O vermelho ou escarlate, era a cor reservada à nobreza. Apenas os príncipes, entre eles os bispos, tinham condição e permissão para vestir-se com tal cor. Francisco era de família burguesa. E, para estes, a cor apropriada era o verde. Apenas na medida em que seu poder econômico e social avançava, aos burgueses era tolerado o uso das cores antes reservadas à nobreza. Esse era o caso de Francisco. Para os pobres, não havia coloração de roupa. As roupas que usavam tinham a cor da fibra natural, geralmente o terroso ou bege.

São Boaventura, na Legenda Maior, descreve Francisco abandonando as vestes finas e sendo revestido por um manto pobre que pertencia a um dos camponeses a serviço do bispo. Deixando o lugar de nobre, Francisco passa a viver como um camponês pobre. É a partir dessa nova posição social, mostrada simbolicamente pelas vestes que passa a usar, que Francisco encontra a possibilidade de tornar-se irmão de todos.

Para irmanar, para sentir-se e ser irmão de cada um e cada uma, é preciso colocar-se dentro do sapato do outro, dentro da roupa do outro, no lugar social e existencial em que ele habita. E perguntar-se: e se eu estivesse no seu lugar, como eu veria o mundo? E assim, com os novos olhos capazes de ver novas roupas e perceber outras cores, poderemos viver a fraternidade universal e rezar “Pai nosso que está nos céus”.

Pasolini e a Biblia

Enrique Irazoqui, o ator que viveu Cristo, e Pier Paolo Pasolini nos bastidores de O evangelho segundo Mateus | Imagem: reprodução http://cineugenio.blogspot.com

No dia 16 de setembro passado, na Itália, faleceu o ator Enrique Irazoqui. Sua morte pouco foi noticiada. Poucas pessoas sabem quem foi Enrique Irazoqui. Não é de estranhar. Ele atuou em poucos filmes. E o único que se tornou conhecido foi seu primeiro, no qual representou o principal personagem. E isso faz tempo. Muito tempo. Foi na década de 1960.

Enrique Irazoqui era estudante em Barcelona e, durante a ditadura de Franco, foi à Itália buscar apoio para o movimento estudantil espanhol. Em Roma, encontrou-se com o cineasta Pier Paolo Pasolini. Ateu, anticlerical, comunista e homossexual, Pasolini estava trabalhando num projeto controverso: produzir um filme sobre a vida de Jesus tendo como roteiro o Evangelho de Mateus.

Pelo seu perfil pessoal e pela sua proposta, ninguém se arriscava a financiar o projeto. Sem dinheiro, Pasolini buscava atores amadores que custassem pouco e dessem um tom realista à produção. O jovem Irazoqui lhe pareceu o ideal para representar a Jesus.

Diante da insistência de Pasolini, o estudante aceitou a proposta. Enfrentando muitas dificuldades e a oposição da Igreja, o projeto foi adiante. Na sua estreia no Festival de Veneza, em 1964, o filme recebeu o Prêmio Especial do Júri. Sucesso em todo o mundo, em 2004, L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, considerou a produção de Pasolini o melhor filme sobre Jesus Cristo de todos os tempos.

O que havia de diferente neste filme que o fez tão especial? Dentre as muitas qualidade da obra, uma foi fundamental. Ateu, anticlerical, comunista e homossexual, Pasolini leu o texto do Evangelho de Mateus e o transportou, literalmente, para a tela, despido de qualquer preconceito religioso. O Jesus de Pasolini interpretado por Enrique Irazoqui é tal e qual o apresentado pelo Evangelho de Mateus: um Jesus humano, simplesmente humano, profundamente humano, tão humano que criava o espaço pleno para que Deus nele se manifestasse totalmente.

Além de uma excepcional obra de arte, o Jesus de Pasolini interpretado por Irazoqui é uma magistral lição de como ler a Bíblia. Para entender os Evangelhos e todo o texto sagrado, o caminho adequado é deixar que o texto nos leia no seu realismo humano. E isso tem sua razão. A Bíblia é a Palavra de Deus dita nas mais diversas situações humanas. Situações de alegria, de esperança, de desespero, de dor, de desolação e desilusão. É nelas, no mais humano do humano, que a presença de Deus faz nascer a fé e, através da caridade, alimenta a esperança.

Como bem lembrou o Concílio Vaticano II e insistentemente reiterou o Papa Bento XVI na Exortação Apostólica Verbum Domini, a palavra de Deus por excelência não é o texto que lemos. A mais concreta e verdadeira palavra divina está na humanidade de Jesus que os textos escritos e transmitidos nos permitem reconhecer e constrói o caminho que nos conduz a Deus. Se não reconhecemos na humanidade de Jesus e na humanidade dos humanos a presença viva de Deus, a Bíblia não passa de um simples texto, letra morta, que em nada edifica. Assim como Pasolini o fez através do personagem de Enrique Irazoqui, para reconhecer o verdadeiro rosto de Jesus presente na Bíblia, é preciso muitas vezes despir-nos dos preconceitos religiosos e deixar que ela nos fale e nos leia em nossa própria humanidade. Então, sim, ela será palavra viva e vivificante para o mundo.

 

A economia da graça.

Graça é aquilo recebemos sem dar nada em troca. Em outras palavras, um presente. Ninguém paga por um presente. Se pagamos por ele, deixe de ser presente e passa a ser uma compra, negócio, troca, comércio. E aí perde a graça… Já pensou se, no dia do aniversário, tivéssemos que pagar pelos presentes que recebemos dos familiares e amigos? Ia ficar meio estranho. A festa viraria mercado.

Mais do que pensamos, em nossas relações cotidianas, a graça está presente. Já pensou o quanto recebemos das outras pessoas? Dos pais recebemos a vida e o cuidado na infância, adolescência e juventude. Nenhum pai, nenhuma mãe, cobra por criar os filhos. O carinho dos avós: não tem preço que pague! O afeto dos tios, primos, sobrinhos. A amizade dos vizinhos, colegas de trabalho, de esporte… Ninguém nos cobra nada. É de graça.

Da sociedade também recebemos muito. Herdamos a cultura, a ciência, a tecnologia, os bens civilizacionais que as gerações anteriores produziram e nos legaram e nós utilizamos sem ter que pagar por isso. Ainda bem que não precisamos pagar pelo uso do alfabeto que os fenícios fizeram dois milênios antes de Cristo!

Mas, a grande fonte de graça, sem dúvida, é Deus. Toda a criação, o Planeta Terra, a própria humanidade, cada um de nós em particular, somos frutos da graça de Deus. Ele nos criou sem exigir nada em troca. Em seu amor, apenas nos pede que, assim como tanto dele recebemos, sejamos generosos, pois tudo o que temos, não é mérito nosso, mas dom a ser repartido entre todos.

Jesus apresenta este princípio numa fala desconcertante. É a parábola do homem que contratou trabalhadores em diversos horários do dia e, no final, diferente do que esperavam, fez igual pagamento a todos, independente do tempo trabalhado por cada um. Quem iniciou às cinco da manhã recebeu a mesma remuneração dos que começaram ao meio dia ou às seis da tarde.

As pessoas que ouviam Jesus ficaram de boca aberta. Percebiam que ele tinha razão. Mas não podiam aceitar tal argumento. Ele corroia a lógica da meritocracia, ou seja, de que cada um deve ser recompensado pela capacidade e contribuição individual. Essa não é a economia de Jesus. A economia de Jesus é a da graça, ou seja, de que tudo provém de Deus e deve ser repartido entre todos conforme a sua necessidade. E quem necessita mais, deve estar em primeiro lugar nas preocupações de todos. E Jesus vai ainda mais longe ao afirmar que os últimos devem ser os primeiros e os primeiros, ficar por último.

Como aplicar esse princípio cristão numa sociedade complexa como a nossa? Mais simples do que se imagina! Já tem nome e experiências consolidadas. É a Renda Básica de Cidadania. Cada pessoa, independente da condição social, recebe os recursos necessários para suprir suas necessidades fundamentais e assim poder contribuir com toda a liberdade para com a sociedade. Muitos não acreditam nesta proposta. Não é de estranhar. Afinal, como o profeta diz, os pensamentos de Deus estão muito longe dos pensamentos humanos e os pensamentos dos homens, muitas vezes, longe dos pensamentos de Deus. Tão longe quanto a distância entre o céu e a terra!

Mas, para quem acredita na graça de Deus, não custa sonhar. Sonhar como Jesus sonhou: com uma sociedade em que cada um contribuía com as suas possibilidades e receba, de graça, conforme suas necessidades. Essa é a economia da graça, a economia de Deus.

Assista o vídeo e inscreva-se em nosso canal no YouTube:

 

O atalho dá trabalho

Quem de nós já não fez a experiência de, num dia em que tem pressa para chegar a um lugar, ao invés de tomar o caminho costumeiro, tentar um atalho para chegar mais rapidamente ao destino? E, quem também não fez a experiência de, ao tomar o atalho, ter que andar o dobro e gastar muito mais tempo do que se tivesse tido paciência para seguir na rota que, mesmo sendo longa, leva com certeza ao destino? É! A sabedoria popular tem razão: o atalho dá trabalho!

Mas, convenhamos: o atalho é uma tentação. E não só nas ruas e estradas. Em muitas situações da vida. Quem já não sonhou em ganhar na loteria? Ou encontrar um pote de ouro enterrado no pátio? Ou receber uma herança de um tio-avô do qual nunca tinha ouvido falar? Ou resolver a miséria do país com um plano econômico mirabolante?

Para muitos, as mazelas sociais e a disputa política só serão resolvidas por uma ditadura. O caminho da democracia é lento, exige empenho, dedicação, resiliência, informação. O atalho da ditadura é tentador. Parece resolver a curto prazo. Mas suas consequências, como todos sabemos, são duradouras e difíceis de superar.

No que se refere à religião, o atalho também é uma tentação.  Percorrer o caminho que leva a Deus é exigente. Configurar a vida pessoal, familiar, comunitária e social segundo o amor daquele que nos amou, exige abandonar o ódio, o rancor, a vingança, o egoísmo e voltar suas preocupações para a dor de quem caminha ao nosso lado. É difícil. É demorado. É suado.

E aí os atalhos aparecem tentadores. São muitos. Alguns antigos, outros renovados. No passado, tivemos o atalho das indulgências. Bastava pagar um tanto e o céu estava garantido. Mais recente, o atalho das promessas: se este ou aquele santo me der o que eu preciso, em troca, dou tanto ou faço tal coisa. E o atalho de levantar as mãos e aceitar Jesus sem o compromisso de mudar de vida. Mais moderno é o atalho do boleto. Prático, simples, tecnológico: basta imprimir o boleto no site desta ou daquela devoção, pagar no banco, e está tudo resolvido com Deus.

O Papa Francisco nos lembra: a verdadeira santidade nunca busca o atalho. Ela trilha o caminho do cotidiano. É a santidade do pai e da mãe que cria seus filhos em meio às dificuldades, dos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, dos doentes que enfrentam a dor com coragem e serenidade, dos idosos e idosas que, do alto da sabedoria acumulada, continuam a sorrir para a vida que se vai. A santidade, segundo o Papa Francisco, não está apenas sobre os altares. Ela é nossa vizinha. E por isso, talvez, tenhamos tanta dificuldade em enxergá-la.

As soluções estão ao nosso lado, na partilha e na cooperação econômica, no diálogo e na busca conjunta de soluções, na comunidade de fé que nos ajuda a sustentar os momentos difíceis. É preciso voltar a trilhar os caminhos ordinários. Buscar atalhos, só atrapalha, só dá trabalho.