Frei Vanildo Luiz Zugno
A “Amoris Laetitia” é resultado de um longo processo sinodal realizado pela Igreja nos anos de 2014 e 2015. Por isso, o documento se chama “Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família”.
Sínodos são grandes assembleias realizadas periodicamente pela Igreja Católica, com representações de todas as igrejas particulares, a fim de debater um tema de relevância da sociedade ou da Igreja. Normalmente, nas Assembleias sinodais, participam apenas bispos e especialistas no assunto a ser tratado. Para este Sínodo, devido ao tema, foram convidados casais de várias regiões do mundo para que, com sua presença e palavra, pudessem expressar as diversas realidades familiares nos diversos contextos sociais e culturais.
Outra grande diferença deste Sínodo, é que a ele não foi dedicada apenas uma Assembleia Sinodal como de ordinário. Tal é a importância do tema que a Igreja dedicou não apenas uma, mas duas Assembleias sinodais para refletir sobre a temática da família. De fato, uma Assembleia Extraordinária foi convocada no final de 1913 e realizada no mês de outubro de 2014. A outra, já Assembleia Ordinário do Sínodo dos Bispos, foi realizada em outubro de 2015. Tanto antes da primeira, como entre a primeira e a segunda, amplas consultas foram realizadas através das Conferências Episcopais Nacionais. Algumas conferências, inclusive, disponibilizaram questionários na internet para que todo e qualquer cristão pudesse expressar sua opinião. Foi a primeira vez em que um Sínodo da Igreja Católica teve tão ampla participação.
Depois da segunda Assembleia do Sínodo para as Famílias, o Papa Francisco recebeu o documento elaborado e complementou-o com outras observações, reflexões e orientações pastorais e elaborou o texto da presente Exortação Apostólica à qual nós dedicaremos este estudo.
Importante lembrar também que o trabalho sinodal foi desenvolvido durante o Ano da Misericórdia. Com efeito, todo o documento tem como pano de fundo a misericórdia de Deus Pai retratado na parábola do Pai de Bondade. Inspirado em Deus Pai que acolhe e cuida do filho que retorna à casa, o Papa Francisco também nos convida a ter um olhar misericordioso para com as diversas realidades familiares. Mais do que buscar culpados ou estabelecer punições para aquelas famílias que vivem situações de dor e sofrimento, o Papa convida a Igreja a ter um olhar misericordioso para cada situação particular e, inspirada na alegria do Evangelho e na tradição da Igreja, ir ao encontro e fazer caminho com elas para que todos voltem a viver sua dignidade de filhos e filhas de Deus. Neste sentido, podemos dize que o documento é propositivo e otimista. Ele convida os cristãos a dar-se conta que as famílias, seja qual for a situação que vivam, “não são um problema, mas sobretudo uma oportunidade” (AL 7).
O texto final da “Alegria do Amor” é bastante longo. É um dos mais extensos textos papais dos últimos tempos. Ele está organizado em nove capítulos. No primeiro capítulo é apresentada uma fundamentação bíblica para a temática. No segundo, com o objetivo de “manter os pés no chão”, são abordadas as diversas realidades familiares presentes no mundo de hoje. É um capítulo importante pois, se a Igreja precisa se debruçar de novo sobre o tema da família, é porque, nas últimas décadas, o modo de viver em família mudou substancialmente. O terceiro capítulo é dedicado a resgatar a doutrina da Igreja sobre a família.
Os capítulos quarto e quinto são o coração da Exortação. Sua temática é o amor na família. O quarto fala do amor entre o homem e a mulher e o quinto é dedicado à abertura desse amor na geração e cuidado dos filhos e da ampliação do amor familiar para toda a sociedade.
O sexto capítulo tem como destinatárias principais aquelas pessoas que, na Igreja, estão encarregadas do cuidado pastoral das famílias. Já o sétimo aborda o tema tão delicado e exigente da educação dos filhos e, por isso, tem como destinatários privilegiados os pais e mães.
O oitavo capítulo é o que reúne os princípios e orientações pastorais para “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade” que é vivida em muitas situações familiares. Neste capítulo são abordadas as novas realidades familiares que, segundo o Papa, devem ser tratadas a partir da lógica da misericórdia pastoral.
Para concluir a reflexão, o Papa Francisco, no nono capítulo, nos presenteia com uma linda página de espiritualidade conjugal e familiar. É a culminância de todo o texto pois, sem uma fundamentação espiritual, de nada valeriam todas as normas e todas as iniciativas no âmbito da pastoral familiar.
Para concluir esta apresentação geral, é importante lembrar a intenção do Papa com o Sínodo e a Exortação Apostólica. Ele não quer colocar uma palavra final nas muitas discussões que, na Igreja, o tema desperta. Pelo contrário, ele quer convidar a que todos os cristãos continuem a aprofundar, com liberdade, as questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais relacionadas à família (AL 2), fazendo-o, cada um e cada uma, a partir da situação concreta em que está vivendo, a fim de que a Boa Nova de Jesus Cristo possa achar guarida e cuidado nas diversas culturas em que os cristãos vivem (AL 3).
A FAMÍLIA NA BÍBLIA
Pelo fato de sermos pessoas de fé, buscamos sempre analisar todas as realidades da vida que vivemos e do mundo que nos rodeia a partir da experiência de Deus. Para nós cristãos, um dos lugares privilegiados em que encontramos registrada a experiência que Deus faz da humanidade e que a humanidade faz de Deus, é a Bíblia. Por isso, a Bíblia é um lugar especial onde buscamos inspiração para o nosso ser e o nosso agir.
O Papa Francisco, ao iniciar a reflexão sobre a família, também busca na Palavra de Deus um ponto de apoio para dirigir-se às famílias de hoje. Com efeito, a Bíblia é o relato da experiência de um povo e, tanto no povo de Israel no Antigo Testamento como na Igreja no Novo Testamento, havia realidades familiares. Muito diferentes das que vivemos hoje, é certo, mas sempre inspiradoras para a nossa fé.
A todos nos vem à mente a história da primeira família relatada no livro do Gênesis: Adão, Eva, e seus filhos Caim e Abel. Outra família que também é referência no livro do Gênesis é a família dos pais do povo de Israel: Abraão, Sara e seu filho Isaac e mais a escrava Agar, com quem Abraão teve um filho que foi chamado de Ismael. E da união de Isaac com Rabeca nasceram os gêmeos Esaú e Jacó que, desde o ventre materno, disputavam a primogenitura e morreram sem conseguir voltar a viver lado a lado um do outro. No tempo em que estava longe de sua terra para fugir da ira do irmão, Jacó casou com duas mulheres. Eram duas irmãs, Lia e Raquel. Com a primeira casou por obrigação. Com a segunda, por amor. Com as duas teve filhos. E, a pedido das duas, teve filhos também com as suas escravas. Ao todo, uma filha e doze filhos. E a história dos doze filhos de Jacó não foi tão tranquila: por ciúme dos irmãos, José, o penúltimo dos filhos, foi vendido como escravo aos egípcios…
Famílias bem diferentes das nossas, como todos podemos constatar. Ao nos darmos conta disso, podemos estranhar que a Bíblia tenha guardado estas histórias de famílias que parecem deixar atrás de si “um rastro de sofrimento e de sangue” (AL 20). E mais: que as tenha colocado como lugares de manifestação da vontade de Deus. Mas é isto mesmo! Com efeito, Deus se manifesta não apenas nos lugares e nos modos que nós julgamos os mais adequados. Deus se manifesta em todos os lugares, em todas as situações, tanto nas boas como nas ruins. E, muitas vezes, ele se manifesta de modo surpreendente e bem diferente daquele que nós imaginamos. Por isso, quando falamos de Deus e, no nosso caso, da vontade de Deus para as famílias, precisamos nos acostumar com o jeito de Deus ver as famílias. Ele vê as famílias reais, tais quais elas são, com suas virtudes e seus defeitos. Ele se aproxima delas e, com carinho e afeição, demonstra-lhes o seu amor e indica-lhes o caminho para o qual ele as quer conduzir.
Esse ponto de chegada é descrito de forma poética pelo Salmo 128: o pai, a mãe e os filhos, na comunhão, ao redor da mesa e do projeto comum de vida que não se fecha entre as quatro paredes do lar, mas se abre ao futuro de esperança de todo o povo de Israel.
O próprio Jesus, na sua experiência familiar, vive e expressa a dura realidade das famílias de seu tempo. José e Maria eram migrantes que saíram de sua terra natal, a Judeia, para buscar trabalho e esperança na Galileia. Viviam sozinhos, longe, isolados da família. Quando Maria soube que sua familiar mais próxima, sua prima Isabel, estava grávida, fez uma longa viagem para visitá-la. E, pelo que vemos na Bíblia, quando José e Maria voltaram a Belém para o recenseamento, não encontraram apoio na família. Ninguém lhes quis dar pouso e Jesus nasceu numa gruta que servia de estrebaria, em meio aos animais. Quando perseguidos por Herodes, ninguém os apoiou e protegeu. Tiveram que fugir para o Egito.
O próprio Jesus, aos doze anos, ao ser declarado adulto, deixa de lado seu pai e sua mãe e passa a dedicar-se às coisas do Reino. Mais adiante, ele diz claramente que a sua família vai além dos laços familiares de sangue: “Minha mãe e meus irmãos são estes: os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). De Maria, diz o evangelho que ela guardava todas estas coisas em seu coração. Mas, e como teria reagido José à afirmação de Jesus de que “a ninguém na terra chameis de Pai, pois um só é o vosso Pai, o celeste” (Mt 23, 9)? Certamente, uma espada de dor também transpassou o coração de José…
Mas, na verdade, o que Jesus faz é ampliar o conceito de família. Para Jesus, todas as pessoas são parte da mesma família, pois o Pai é um só e “todos vós sois irmãos” (Mt 23,8). E Jesus comprova essa sua palavra com gestos: ele entra em todas as casas, em todas as famílias, sem importar-se com normas, regras, leis, costumes, proibições… pois quem faz a experiência da irmandade é capaz de aproximar-se de todos. Paulo, que fez a experiência de abrir-se ao diferente e às realidades estranhas ao seu mundo farisaico, afirma que, para além da família de sangue, existe a Igreja, “a família dos filhos de Deus” (Ef 2, 19).
É com este olhar aberta à experiência que Deus faz com as famílias, que o Papa Francisco nos convida a buscar na Bíblia inspiração para iluminar os caminhos das famílias de hoje. Conforme o Papa, ao ler as histórias das famílias na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, “podemos comprovar que a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas em alguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus enxugar ‘toda lágrima dos seus olhos. A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem grito, nem dor” (Ap 21, 4).
Tenhamos a coragem de fazer esta viagem junto com as famílias da Bíblia e, com elas, no final do caminho, vencendo “todo rastro de sofrimento e sangue”, encontrar os braços carinhosos de Deus Pai, a mão companheira de nosso irmão Jesus e o Amor do Espírito Santo que nos acolhem no regaço materno de Deus.
A FAMÍLIA: REALIDADES E DESAFIOS
Toda ação pastoral, para ser consistente e pertinente, começa sempre por compreender a realidade sobre a qual se quer agir. Ver, escutar, sentir, abrir-se à realidade e deixar que ela se nos mostre tal qual é. Este é sempre o primeiro passo para compreender como a vontade salvadora de Deus nela se manifesta. Essa dinâmica nasce da própria maneira como Deus escolheu para salvar a humanidade. Deus não realizou a salvação do mundo e do gênero humano a partir de fora. Ele se encarnou, fez-se um de nós, sentiu o mundo como nós o sentimos e, a partir da condição real dos homens e mulheres, a partir da carne humana, realizou, de uma vez por todas, a salvação.
A mesma dinâmica vale para a ação evangelizadora da Igreja. Se ela quer ser concreta e efetiva, precisa acercar-se respeitosamente da realidade e, tentando compreendê-la em seus dinamismos próprios, buscar, a partir da revelação divina, os modos mais eficazes para dinamizar aquilo que nela há de bom e transformar o que vai contra a Boa Nova do Reino.
No segundo capítulo da “Amoris Laetitiae”, depois de, no capítulo primeiro, ter situado a realidade familiar na continuação da ação amorosa e salvadora de Deus testemunhada no Antigo e no Novo Testamento, o Papa Francisco nos convida a debruçarmo-nos sobre a realidade das famílias e tentar compreendê-las tal qual elas são.
Isso é importante porque muitas vezes o discurso da Igreja sobre a família ficou muito distante do que realmente se vive no seio dos lares. Isso gerou, muitas vezes, um moralismo no discurso eclesial que, como última consequência, gerou uma desmobilização em torno ao tema. Em outras palavras, o ideal apresentado estava tão distante da realidade que muitos, com uma quase certeza de falhar diante da enormidade de desafios apresentados, acabavam por desistir de formar uma família. Ou então, sentindo-se incompreendidos em suas realidades de dor e sofrimento quotidiano na sua condição de pai, mãe, filhos, acabavam afastando-se da Igreja para não entrar em conflito com os preceitos por ela estabelecidos para a convivência familiar.
Essa deficiência do discurso da Igreja sobre a família deveu-se, conforme o Papa Francisco, a que durante muito tempo, ao falar sobre a família, a Igreja se fixou “em questões doutrinais, bioéticas e morais” (AL 37), sem prestar atenção às realidades concretas das famílias e à ação da graça de Deus que nelas, em meio a tantos desafios e contradições, assim mesmo se oferece e acontece.
Isso é ainda mais forte quando pensamos a rapidez com que aconteceram e ainda acontecem as mudanças nas realidades familiares. Se nós lembramos de como era as famílias há vinte, trinta, cinquenta anos atrás e as comparamos com as famílias de hoje, vemos que elas mudaram radicalmente. Muitos são os fatores que nelas contribuem: econômicos, políticos, culturais, científicos, sanitários… E cada um deles interage com os outros gerando um ciclo de mudanças que é impossível de deter.
Muitos veem estas mudanças como uma catástrofe, como um fracasso e falência da família. É verdade que as transformações provocaram muita dor e sofrimento nas famílias. Mas é verdade também que, todas estas mudanças provocaram novas oportunidades para que, nas famílias, se viva de forma nova e inovadora aquilo que é fundamental no anúncio cristão: o amor de Deus que nos convida a amarmo-nos uns aos outros.
Apenas um exemplo: há pouco mais de cem anos, mais precisamente até o ano de 1888, mais da metade da população brasileira era legalmente impedida de constituir família. Talvez muitos se espantem com isso! Mas, até a abolição legal da escravidão, quem fosse negro, não podia constituir família, pois, conforme a lei da Igreja, os escravos que recebessem o sacramento do matrimônio, se tornariam livres. Por essa razão, os donos dos escravos os impediam de casar e constituir família. Como consequência, os filhos e filhas de mães escravas, eram vendidos e criados longe de seus pais, fora de qualquer ambiente familiar. E lembramos de novo: era a metade da população brasileira que vivia nessas condições. Há pouco mais de cem anos…
Como vemos nesse exemplo, a história das famílias é uma realidade muito importante a ser tomada em conta quando falamos das realidades e desafios da família hoje. É apenas um exemplo de como os discursos saudosistas de um passado ideal que nunca existiu muitas vezes, ao invés de clarear, ocultam os reais problemas que as famílias vivem.
É verdade que, como muitas vezes se afirma, a situação da família é grave. Mas, nos lembra o Papa, não devemos ver nisso apenas um problema e “limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa” (AL 35). Com os pés bem no chão das muitas realidades familiares, somos convidados a dar “graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam caminham, embora muitas caiam muitas vezes ao longo do caminho” (AL 57). O desafio para a Igreja é aproximar-se das famílias caídas, tomá-las pela mão e, com carinho e ternura, ajuda-las a levantar-se para experimentar, no perdão e na reconciliação, o amor misericordioso de Deus que a todas elas se estende.
A FAMÍLIA NO ENSINO DA IGREJA
Depois de, no primeiro capítulo, ter situado a temática da família dentro do âmbito da história da salvação através do resgate de tantas histórias de famílias presentes tanto no Antigo como no Novo Testamento e, no segundo capítulo, ter chamado a atenção para as diferentes realidades familiares presentes no mundo de hoje, o Papa Francisco, no terceiro capítulo da Amoris Laetitiae, traz presente a longa tradição eclesial de reflexão sobre a família.
Com efeito, ao longo dos séculos, a família sempre esteve no centro das preocupações da Igreja. Em todas as épocas e em todos os lugares, tanto a comunidade eclesial como seus pastores, voltaram a sua ação e a sua reflexão sobre esta realidade social básica que é a família. Podemos encontrar reflexões sobre a família tanto nos Santos Padres da Igreja como nos grandes teólogos da Idade Média como, por exemplo, Santo Tomás de Aquino.
Nas últimas décadas, a Igreja emitiu uma série de documentos sobre a realidade familiar. No Concílio Vaticano Segundo, a Constituição Apostólica Gaudium et Spes dedicou um longo parágrafo à temática familiar no contexto de progresso e desenvolvimento da sociedade. Logo após o Concílio, no ano de 1968, o Papa Paulo VI publicou a Encíclica Humanae Vitae que tinha como tema principal a regulação da natalidade. Em 1981 foi a vez do Papa João Paulo II, também numa Exortação Apostólica, pronunciar-se sobre a família na Familiaris Consortio.
No terceiro capítulo da Amoris Laetitiae, o Papa Francisco relê toda esta tradição eclesial a partir do princípio fundamental do “amor e ternura” que nasce da presença de Jesus junto às famílias de seu tempo (AL 59). Primeiramente na família de Nazaré onde, junto a Maria e José, Jesus viveu sua própria experiência familiar. Depois, na sua pregação e ação, desde a Galileia até Jerusalém, Ele tomou contato com as muitas e diversas realidades familiares e, nelas, por palavras e ações, foi presença do amor de Deus.
Para o Papa Francisco, o grande desafio para a Igreja é superar a visão legalista que, no decorrer da história, foi-se formando do matrimônio. A verdadeira família cristã não se constrói com a simples aplicação de uma lei, mas através da experiência do amor que vai-se construindo no caminhar da pessoa e que se expressa no matrimônio onde cada um dos esposos decide livremente entregar-te totalmente ao outro.
Fundamentado na tradição da Igreja, o Papa Francisco convida a ampliar os horizontes e ter a capacidade de ver a realidade familiar de forma positiva mesmo lá onde ela ainda não está plenamente realizada. É o caso das famílias constituídas por pessoas que não compartilham o senso da fé ou vivem uma fé diferente da cristã. Nestas realidades, quando um homem e uma mulher se unem com o desejo de entrega e de cuidado dos filhos, aí já está “em germe”, o amor que Deus, na criação, colocou no coração humano e que leva à constituição da família.
O mesmo acontece naqueles casais que, mesmo conhecendo o valor cristão da família, por uma série de “fatores que limitam a capacidade de decisão”, não tem a possibilidade de formar uma família de acordo ao preconizado pela Igreja. Mesmo não podendo cumprir plenamente as normas eclesiais para o matrimônio, também nestas uniões está presente o amor de Deus e por isso a Igreja deve voltar-se com atenção misericordiosa respeitando e acolhendo-as para que possam caminhar cada vez mais em direção ao projeto de Deus.
No centro de tudo, conforme o Papa Francisco, está o amor de Deus. Ele é que ilumina as diversas realidades familiares que, cada uma a seu modo, reflete e realiza, na união dos dois e nos filhos, o desígnio de salvação conforme suas situações e condições.
O AMOR COMO BASE DO MATRIMÔNIO
Podemos dizer que os três primeiros capítulos da “Amoris Laetitia” que estudamos nas lições anteriores constituem como um grande “escutar e acolher”. No primeiro, tratou-se de escutar e acolher as narrativas bíblicas que falam de histórias de famílias e desafiam a pensar a nossa própria história família com seus rastros de amor e de dor. No segundo, o Papa Francisco nos convidou a escutar e acolher a realidade das famílias de hoje em suas diversas realidades e novidades que trazem novos desafios para a evangelização. No terceiro capítulo, tratou-se de escutar e acolher a tradição da Igreja que, no decorrer da história, buscou dar uma palavra de amor à realidade família.
O quarto capítulo pode ser caracterizado como o capítulo do “discernir”. É o mais longo, denso e instigante de toda a “Amoris Laetitia”. Trata-se de iluminar com a luz da fé as realidades familiares e o modo como a Igreja pensa e atua nessas realidades. Para tal, o Papa Francisco utiliza como categoria fundamental aquela que o Evangelho de João utiliza para definir o ser mesmo de Deus: o Amor.
Como texto inspirador para tal abordagem é utilizado o “Hino à Caridade” da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 13,4-7). Relacionando cada uma das palavras e dos versículos com outras passagens do Antigo e do Novo Testamento, o Papa Francisco faz a exegese do texto e o faz dialogar com as realidades do quotidiano familiar. Ter paciência, colocar-se a serviço do outro, livrar-se da inveja, não ser arrogante nem se orgulhar, ser amável e despreendido, não guardar rancor, saber perdoar, alegrar-se com o outro, tudo desculpar, confiar totalmente no outro, saber esperar e tudo suportar, surgem então como atitudes que edificam, mantém e levam à plenitude a relação do casal.
De maneira figurativa, o Papa resume, tanto na “Amoris Laetitia” como em outros pronunciamentos, que todas essas atitudes que ajudam a construir um relacionamento familiar harmônico se expressam em três palavras que revelam, no quotidiano, a capacidade de conviver de forma amável com os outros: “com licença”, “obrigado”, “por favor”.
Tal abordagem pode soar estranha. De fato, na Igreja, muitas vezes a realidade familiar e o matrimônio que a consolida em sua forma sacramental, foi tratada em uma perspectiva mais legalista do que caritativa. Se olharmos o Direito Canônico e outros documentos e discursos e mesmo muitas práticas pastorais, o que mais aparece é a lei: “pode ou não pode”, “é permitido ou é proibido”. O Papa convida a olhar a perspectiva do amor. Acolher a graça de Deus que nos criou no Amor e, espelhando-se nela, fazer da convivência conjugal e familiar a imagem e semelhança de Deus, é o caminho para sanar todas as dificuldades que, com certeza, surgem no decorrer de um percurso familiar e, na fidelidade mútua, leva-lo à plenitude.
Depois de ter discorrido sobre o amor como o marco no qual, enquanto cristãos, somos convidados a discernir as diversas realidades familiares, o Papa Francisco apresenta, em três passos, o percurso pelo qual toda experiência conjugal passa: a) da amizade ao enamoramento até o compromisso total e definitivo para com o/a outro/a; b) a vivência apaixonada do amor e; c) a maturidade no amor.
Na primeiro passo do percurso, o grande desafio é aproximar-se do outro e contemplá-lo em sua realidade própria, sem desejo de posse ou dominação. Conhecer o outro tal qual ele é e, respeitando-o em sua identidade, sentir a sua beleza. Interessar-se pelo outro naquilo que é em si mesmo e não apenas naquilo que é para mim. O verdadeiro amor cristão não é aquele que busca o outro para satisfazer uma necessidade ou carência própria. O verdadeiro amor consiste em buscar a felicidade do outro, mesmo às custas do sacrifício da própria vontade e dos sonhos pessoais. Nesta etapa da preparação ao matrimônio, o diálogo é o grande desafio. Diálogo que implica em expor-se ao outro e acolher a palavra do outro em sua verdade. E, nos lembra o Papa, a verdade de cada um se manifesta não apenas por palavras, mas principalmente por gestos que demonstram a real acolhida e capacidade de entrega de um ao outro.
Na segunda fase, a vivência apaixonada do amor se manifesta na convivência e entrega total de um ao outro. Nela jogam um papel profundo as emoções e afetos que nascem do encontro quotidiano de um com o outro: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. Cada uma destas emoções é muito próxima do seu par que se apresenta aparentemente oposto. E, para que a vida a dois alcance o objetivo de que, da união dos dois se faça uma só carne, é necessário educar-se para viver essas paixões. Nessa convivência, a sexualidade não é algo periférico ou acidental. Ela é uma dimensão profunda e consolidadora da união conjugal. Se, por um lado, urge superar a compreensão de que a sexualidade e o erotismo são consequência do pecado e, ao mesmo tempo, pecaminosas, não podemos cair na tentação da objetivação e instrumentalização do outro para a satisfação dos impulsos pessoais. Com efeito, “a sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o outro é levado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável” (AL 151). Com isso, torna-se inaceitável qualquer forma de violência, seja moral, física ou sexual, de um dos cônjuges sobre o outro.
Por fim, na terceira fase, o casal, muitas vezes com quatro, cinco ou seis décadas de convivência, é convidado a descobrir uma nova forma de amor que já não tem como pilar principal a paixão, mas a memória corporal e afetiva de uma longa história vivida a dois que se abre para novas formas de sensibilidade e enamoramento.
Todas estas reflexões tem como pilares duas afirmações fundamentais que não podem ser esquecidas ao se falar do amor como fundamento do matrimônio. A primeira, é a de que o amor humano, por mais transparente e maduro que seja, nunca alcança igualar-se ao amor de Deus e ao amor que Cristo teve pela Igreja. Se, em Deus, o amor é pleno, nos casais, o amor é “um processo dinâmico que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL 122). O segundo, derivado deste primeiro, é de que o casal, mesmo contando com a Graça de Deus, sempre viverá dentro dos limites da realidade humana e isso “implica em aceitar que o matrimônio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimento e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres” com os quais é necessário aprender a conviver a cada dia e todos os dias da vida a dois.
AS RELAÇÕES FAMILIARES
Depois de, no quarto capítulo, ter apresentado o amor como fundamento da união entre os cônjuges, no capítulo quinto, o Papa Francisco fala dos outros membros da família que se constitui a partir desta relação amorosa. E se o amor que constitui a família se espelha no amor divino, a família não pode ser uma realidade fechada. Além do amor entre os membros da família, ela também se abre para aqueles que não são membros da família. Ela se abre para toda a sociedade.
Claro, que, como primeiro fruto do amor entre o homem e a mulher, estão os filhos. Eles são, ao mesmo tempo, frutos do amor de Deus e da realização concreta desse amor divino no encontro humano de um homem e uma mulher. Diante da vida nova que se anuncia, duas atitudes são apresentadas como necessárias. Em primeiro lugar, a acolhida carinhosa que, desde antes do nascimento, vai preparando o lar em que a criança será abrigada e cuidada para que cresça e se desenvolva. Em segundo lugar, o respeito ao filho como um ser que tem um valor em si mesmo e não apenas naquilo que preenche as expectativas dos pais.
Tanto na acolhida como no acompanhamento dos filhos, é importante a presença tanto do pai como da mãe. Na sociedade atual, a mulher não mais se conforma à condição de mãe e ama do lar. Ela participa da vida econômica, política e cultural em sua plenitude. É preciso, nessa situação, encontrar uma forma de conciliar a maternidade com a atividade social. Por outro lado, os homens, que tradicionalmente se ausentam da criação dos filhos, precisam aprender a cooperar e estar presentes em todas as fases do crescimento da criança. Na diferença e complementariedade da figura materna e da paterna, os filhos encontram os elementos necessários para constituir sua própria identidade e crescer com liberdade e autonomia.
Fruto da insegurança ou do egoísmo há também, em alguns segmentos da sociedade moderna, um temor em ter filhos. Diante desse fato, o Papa Francisco chama os cristãos a abrir-se ao dom de Deus e à novidade de uma vida que se fazer presente.
Mas também há de se evitar uma fecundidade irresponsável que não se preocupa com as condições nas quais os filhos serão criados. Perigosa também é aquela atitude, fruto do egoísmo e da incapacidade de ver os filhos como pessoas que tem um valor em si mesmas, que gostaria de, desde antes do nascimento, projetar os filhos para satisfazerem as expectativas e desejos dos pais.
Nos muitos casos em que, por diversas razões, o casal está impossibilitado de gerar filhos, o Papa Francisco aponta dois modos através dos quais a paternidade e a maternidade podem ser vivenciados. Em primeiro lugar, está a adoção. Assim como há muitos pais e mães que não podem ter filhos, há muitas crianças que carecem de um pai e uma mãe que lhes propiciem um lar. As duas carências se complementam e podem levar à realização de uma família nova e plena.
A outra possibilidade que se apresenta para exercer a paternidade e a maternidade, é através da dedicação àquelas pessoas que, na sociedade, vivem sem a proteção de um lar. É a dimensão social da família que pode e deve ser vivida tanto pelos casais que tem filhos como pelos que não tem filhos. Com efeito, a família não é uma realidade fechada em si mesma. Ela está aberta à sociedade e com ela contribui na construção de condições de vida para toda a sociedade. Envolver-se em projetos sociais de proteção da vida, também é uma forma de viver a experiência de ser pai e mãe daquelas pessoas que vivem sem lar e sem proteção.
As relações familiares, observa o Papa, não se resumem na direção dos pais para com os filhos. Enquanto membros da família, os filhos também tem sua responsabilidade para com os outros membros da família. Em primeiro lugar, com os outros irmãos da família. É na convivência dos irmãos e irmãs que se exercita a fraternidade que, no decorrer da vida, vai se alargando e abrange toda a sociedade. Nas muitas famílias em que há só um filho, os pais devem preocupar-se para que o filho, desde a infância, tenha a experiência da convivência com outros iguais a ele e assim poder exercitar a vivência da fraternidade.
Há também a responsabilidade para com os pais. E não apenas no período em que estão com eles convivendo. Também depois, quando constituem um lar próprio, permanece a condição filiar que precisa ser cultivada no cuidado e carinho para com os pais.
Observa o Papa que, um dos problemas de nossa sociedade, é o abandono dos anciãos presentes nas famílias na figura do avô e da avó. Eles são a memória viva da família que perpassa as gerações. E na memória do passado está muitas vezes o sentido da vida que possibilita a união no presente e a projeção do futuro.
Para além do núcleo familiar próximo, da família de sangue – pai, mãe, irmãos, irmãs, avôs, avós – está toda a família ampla que se constitui a partir da união dos dois – sogros, sogras, tios, tias, cunhados, cunhadas, primos e primas… – que não devem ser vistos como “concorrentes, como pessoas perigosas, como invasoras” (AL 198). Elas são a possibilidade para expandir e irradiar o amor vivido na família.
E, mais uma vez lembra o Papa, se o amor desta família ampliada se espelha no amor de Deus, ela não se contentará em vivê-lo entre os parentes mas “ela deveria acolher, com tanto amor, as mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e proximidade, os jovens que lutam contra uma dependência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela mesmo os mais desastrados comportamentos da sua vida” (AL 163). Em outras palavras, passar do amor da pequena família ao grande amor da família de todos os filhos e filhas de Deus.
PERSPECTIVAS PASTORAIS PARA A FAMÍLIA
A “Amoris Laetitia”, assim como os dois Sínodos que a precederam e prepararam, tem uma finalidade eminente pastoral. Ou seja, a preocupação dos Padres Sinodais e do Papa Francisco não era a de rever os princípios teológicos e a doutrina da Igreja sobre a família e o Sacramento do Matrimônio, mas o de dar orientações e impulsionar o afã da Igreja no serviço à família.
Depois de, nos cinco primeiros capítulos, ter apresentando as orientações gerais sobre o tema, a partir do sexto capítulo, passa o tratar de questões específicas que devem ser objeto de atenção por parte daqueles encarregados de levar a Boa Nova do Evangelho nas diferentes situações familiares.
Coerente com o estabelecido nos capítulos anteriores, o Papa Francisco insiste que, junto com a doutrina da Igreja, é preciso ter muito presente as diferentes necessidades e desafios locais que se apresentam às diversas comunidades cristãs. Ou seja, não há uma normativa universal que deva ser aplicada a todas as situações. Mas, em cada situação concreta, é preciso buscar a melhor resposta para aquela situação (AL 199-201).
Como conhecedores das situações concretas vividas pelas famílias, os principais agentes da Pastoral Familiar devem ser os próprios casais. Em várias momentos do capítulo, o Papa insiste para que, os casais mais experientes, tornem-se e orientadores dos casais mais jovens e em crise. Esse acompanhamento tornar-se-á mais fecundo quando, junto com a experiência pessoal, for agregado o conhecimento e as técnicas das várias ciências humanas que podem compreender as situações familiares e, com conhecimento de causa, dar uma orientação segura.
A ação pastoral da Igreja no serviço à família precisa estar atenta aos três momentos do percurso do casal: a) o período que antecede o casamento, ajudando os jovens, enamorados e noivos no mútuo conhecimento e na compreensão do sentido do compromisso que irão assumir; b) o período imediatamente pós-matrimônio, quando os dois se deparam com situações que lhes são totalmente novas e com as quais não estavam acostumados a lidar e c) os momentos de crise na relação familiar. Quanto às crises dos casais, diz o Papa Francisco que, quando elas aparecem – e isso é inevitável – , “é preciso ajudar a descobrir que uma crise superada não leva a uma relação menos intensa, mas a melhorar, sedimentar e maturar o vinho da união” (AL 232).
Os instrumentos pastorais para acompanhar as famílias devem ser fruto da criatividade pastoral de cada Igreja local. Não há uma receita única, válida para todos os lugares e situações. Os responsáveis pastorais – bispos, párocos – junto com os casais organizados em pastorais, movimentos, associações…, precisam discernir sobre qual o melhor modo para organizar o apoio às famílias, tanto em situações normais como naquelas de crise.
Além da situação de casamento de pessoas católicas com cristãos de outras igrejas e de católicos ou católicas com cônjuges de outras religiões, o documento trata de duas situações que foram objeto de muita reflexão no processo sinodal e ganharam muito destaque na imprensa: o divórcio e a homossexualidade.
Segundo a “Amoris Laetitia”, o divórcio é “um mal” que deixa feridas tanto nos cônjuges que se separam como nos filhos que, muitas vezes são envolvidos na crise do casal e até usados como objeto de barganha entre os dois. A comunidade de fé deve fazer tudo o que é possível para evitar que os casais chegam a uma tal decisão. No entanto, diz o Papa, “em alguns casos, a consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crônica. É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença” (AL 241).
Quando tal acontece e as pessoas estabelecem uma nova união, a Igreja não deve trata-las como “excomungados”, mas acompanhá-las com respeito, “evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e promovendo a sua participação na comunidade” (AL 243).
Quanto às pessoas homossexuais, o Papa Francisco afirma que, pelo fato de Jesus Cristo ter dado sua vida para a salvação de todos, “cada pessoa, independente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar todo sinal de discriminação injusta e particularmente toda a forma de agressão e violência” (AL 250).
A EDUCAÇÃO DOS FILHOS
Uma das tarefas fundamentais e irrenunciáveis das famílias é a educação dos filhos. Tarefa difícil, hoje, quando as famílias e a sociedade passam por transformações tão rápidas e radicais. Muitos pais sentem-se perdidos e, no afã de dar uma resposta aos novos desafios, caem em um dos extremos. Ou renunciam ao seu papel de educadores e deixam os filhos crescer e educar-se por sua própria iniciativa ou – outro extremo – querem controlar de forma absoluta toda a vida dos filhos e filhas.
Para o Papa Francisco, “a educação envolve a tarefa de promover liberdades responsáveis, que, nas encruzilhadas, sonham optar com sensatez e inteligência” (AL 262). E essa tarefa é da família e não pode ser delegada nem à escola ou a qualquer outra instituição pois, “o desenvolvimento afetivo e ético de uma pessoa requer uma experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança” (AL 263).
Mais do que a transmissão de conhecimento ou a imposição de obrigações ou proibições, a educação afetiva e ética precisa de métodos ativos e de um diálogo constante entre pais e filhos. Tendo presente as possibilidades e limites de cada fase do crescimento dos filhos, os pais devem dialogar com eles sobre as suas possibilidades e limites e, quando necessário, também criar situações para que os filhos tenham a ocasião de confrontar-se com a liberdade e com as consequências dela provenientes.
Nesse sentido, “é preciso saber encontrar um equilíbrio entre dois extremos igualmente nocivos: um seria pretender construir um mundo à medida dos desejos do filho, que cresceria sentindo-se sujeito de direitos, mas não de responsabilidades; o outro extremo seria leva-lo a viver sem consciência de sua dignidade, da sua identidade singular e dos seus direitos, torturado pelos deveres e submetido à realização dos desejos alheios” (AL 270).
Dentre as muitas situações que requerem um cuidado educativo especial no mundo de hoje, o Papa Francisco, neste capítulo VII, dá especial atenção a três. A primeira, é a das tecnologias da informação e entretenimento. Elas são, sem dúvida, um grande bem para a humanidade. No entanto, quando usadas de forma equivocada, podem levar à exacerbação do imediato, do tempo presente, e à perda do senso da necessidade da espera, da paciência, do tempo, da história. Elas também podem levar a um ensimesmamento das pessoas e à incapacidade de comunicação e diálogo direto, rosto a rosto, frente à frente. É preciso utilizá-las, sim, mas fazê-lo com o devido senso do tempo e da comunicação pessoal de modo que elas levem à convivência social e à consciência do cuidado com a “casa comum” que é a criação de Deus.
Um outro grande desafio é o da educação sexual. Segundo o Papa, no mundo de hoje e também na Igreja, “não se leva a sério a educação sexual” (AL 284). Se, por um longo tempo, o tema da educação sexual foi tabu, principalmente no ambiente eclesial, hoje caminha-se em direção a uma banalização da sexualidade. Ela não pode ser reduzida a um mero componente biológico do ser humano e a educação sexual a uma simples transmissão de informações sobre a reprodução ou as relações sexuais. A sexualidade, além dos aspectos biológicos, é expressão da intimidade e do relacionamento profundo que se estabelece entre dois seres humanos. Se há nela uma expressão objetiva, há também uma dimensão subjetiva que transmite o mistério do ser humano.
Há, sim, na sexualidade, um dado biológico inegável. No entanto, conforme o Papa, “também é verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira flexível à condição laboral da esposa; o fato de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como normais estes «intercâmbios» sadios que não tiram dignidade alguma à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições reais do matrimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas potencialidades” (AL 287).
Por fim, o terceiro desafio à educação na família apresentado pelo Papa: a transmissão da fé. Não é uma tarefa óbvia no mundo atual em que a experiência religiosa não se transmite mais de forma automática dos pais para os filhos. A educação na fé deve ser uma preocupação consciente dos pais. Assim como os outros aspectos da educação, ela deve ser cuidadosa da evolução dos próprios filhos. Mais do que imposição de obrigações e preceitos religiosos, os pais educam pelo exemplo da oração, da participação comunitária e de colocar sua vida nas mãos de Deus. Junto com essa educação indutiva, no momento adequado, os pais devem enunciar, no própria ambiente familiar, a fé na qual creem e introduzir os filhos e filhas num caminho de iniciação cristã eclesial.
ACOMPANHAR, DISCERNIR E INTEGRAR A FRAGILIDADE
A união matrimonial com a constituição de uma família onde os dois se complementam e, da união dos dois nascem os filhos que são educados em humanidade e fé para contribuir na construção da Igreja e da sociedade, é o ideal apresentado pela Igreja a partir da proposta de Deus revelada em Jesus de Nazaré.
Tal ideal, no entanto, nem sempre é realizado de forma plena e, muitas vezes, se apresenta até inalcançável. O que fazer diante de tantos casais de católicos que, por diversas razões, convivem sem nunca buscar o sacramento do matrimônio? Ou então, aqueles que, depois de assumirem o compromisso matrimonial não conseguem conviver e optam pela separação? E aqueles que, depois de casados e separados, constituem uma segunda união? Pode a Igreja abandoná-los ou cabe a ela ainda uma ação evangelizadora que cuide destas situações concretas de dor e sofrimento que tantos de seus filhos e filhas vivem?
Diante destas situações de imperfeição ou fragilidade, o Papa Francisco retoma a tradição eclesial baseada no princípio da misericórdia: “Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (…) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (…) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (…). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita” (AL 297).
Na prática do acompanhamento pastoral aos casais e às famílias, a opção da Igreja é a de aplicar, em primeiro lugar, o princípio da gradualidade. Nem todas as situações são iguais e cada uma deve ser tratada na sua relação específica com a norma proposta pela Igreja. Como exemplifica o Papa, “uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. […] Coisa diferente, porém, é uma nova união que vem de um divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusões que afetam os filhos e famílias inteiras, ou situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares” (AL 298).
Outro princípio a ser levado em conta em situações onde ainda não se realizou o ideal do matrimônio ou onde este ideal já não existe, é o das circunstâncias atenuantes. Conforme já ensina o Catecismo da Igreja Católica, em muitos casos, “a imputabilidade e a responsabilidade de um ato podem ser diminuídos, e até anulados, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1735; AL 302).
Dentro desta compreensão, as leis, normas e princípios, são importantes, mas não podem ser considerados como um fim em si mesmo. São importantes porque indicam o objetivo a alcançar. Mas, em circunstância alguma, podem ser transformadas em empecilho ou fator de exclusão. Como observou o próprio Jesus aos fariseus que queriam aplicar a lei a todas as pessoas a qualquer custo, “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Na prática do acompanhamento aos casais e famílias em situações em desacordo com as normas da Igreja, o Papa Francisco nos lembra que “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais aos que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (AL 305). Por causa dos condicionamentos concretos e considerando os fatores atenuantes, “é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente -, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL 305).
Diante das famílias passando por situações de incompletude, dor e sofrimento, a Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ter uma atitude de acolhida incondicional. Fechar as portas, os olhos, os ouvidos e, sobretudo, o coração, a quem está sofrendo, não é uma atitude evangélica. O segundo passo, é ajudar as pessoas a formarem sua consciência e discernir os caminhos a tomar. Em terceiro lugar, é preciso integrar as pessoas e as famílias no seio da comunidade conforme a sua possibilidade e disponibilidade. Acolher, discernir e integrar: três atitudes fundamentais para revigorar a vida familiar.
Em todo este processo, duas virtudes são as norteadoras das ações eclesiais: a caridade e a misericórdia. A caridade, porque ela é a primeira lei dos cristãos (Jo 15,12; Gl 5,14). E a misericórdia, pois ela é o agir do Pai e o critério para entender quem são os verdadeiros filhos de Deus (AL 310).
ESPIRITUALIDADE CONJUGAL E FAMILIAR
Cultivar uma profunda e intensa vida espiritual não é um privilégio para poucos cristãos. Tudo pelo contrário: todos são chamados e tem o direito de viver no Espírito de Deus, ou seja, à luz e no seguimento do Deus que se encarnou em Jesus Cristo e continua atuando em nós na força do Espírito Santo. E, como Deus está presente em tudo e em todos, também a realidade familiar é habitada pela presença divina e é um espaço privilegiado onde é possível cultivar a espiritualidade cristã.
Neste nono e último capítulo da Amoris Laetitia, o Papa Francisco apresenta alguns elementos da espiritualidade cristã que são propícios para alimentar a experiência espiritual das famílias. Em primeiro lugar, ele nos apresenta o jeito trinitário de ser de Deus como inspirador para os relacionamentos familiares. Assim como Deus é Pai, Filho e Espírito Santo que se unem pelo amor mútuo de entrega e acolhida total de cada um pelos outros, os membros da família, em sua diversidade e especificidade, também são chamados a acolher e entregar-se uns aos outros de forma a, juntos, guardando cada um a sua identidade própria, formarem a unidade familiar à imagem e semelhança de Deus-Trindade. Segundo o Papa, “a comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida ordinária e de crescimento místico, um meio para a união íntima com Deus” (AL 315), pois ela imita a vida de Deus-Trindade.
Nos momentos de sofrimento e dor, a família encontra na Paixão de Cristo o sentido para as suas dores e sofrimentos. Assim como Cristo deu sua vida pela humanidade, cada um dos membros da família encontra o sentido de sua entrega pelos outros ao contemplar o crucificado. Mas também os momentos de alegria e felicidade encontram seu sentido em Cristo pois, depois da cruz vem a ressurreição. Em Cristo vitorioso sobre a cruz, a família Cristã sabe comemorar as pequenas e grandes vitórias de sua caminhada.
Assim como Cristo mostrou a presença do amor de Deus no quotidiano das pessoas com as quais ele convivia, a família cristã também encontra um sentido cristão para os pequenos gestos que, no dia-a-dia, vão construindo e solidificando os laços da atenção e do cuidado de um para com o outro. Palavras, gestos, silêncios que mostram que, na presença do outro, está também a presença de Deus. Segundo o Papa, “é uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele” (AL 323).
Experiência de Deus que se dá também no respeito pela autonomia do outro que ultrapassa até os momentos mais íntimos que podem existir entre os dois e do casal para com os filhos pois “ninguém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida” (AL 320). Por isso, cada um dos membros da família precisa da liberdade para viver e expressar sua intimidade com Deus também em momentos pessoais.
Mas, pelo fato de a família ser uma realidade aberta à dimensão comunitária e social, a experiência do encontro com Deus também se realiza através da hospitalidade que acolhe outras pessoas dentro do seio familiar. Assim como Abraão e Sara (Gn 18,1-15) receberam a visita de Deus na pessoa dos três forasteiros que se apresentaram frente a suas casas, a família cristã é convidada a abrir suas portas e acolher a presença de Deus nas pessoas que não fazem parte de sua família. A convivência e a comensalidade aberta para com todos é um modo eucarístico de experimentar a presença de Deus.
E, ao lado da hospitalidade que acolhe, está também a importância de sair ao encontro. Assim como o Filho e o Espírito saíram do seio aconchegante do Pai para caminhar em direção à humanidade e ao mundo, a família é convidada a deixar a segurança e o conforto de seu lar e sair em busca daqueles que estão caídos à beira do caminho e dar atenção especial às famílias e pessoas que estão precisando de ajuda e consolo. É neles que se encontra, de forma privilegiada, a presença de Deus que apela e interpela as famílias de hoje. Assim como a Igreja é convidada pelo Papa Francisco a estar sempre em saída, as famílias, que são verdadeiras comunidades domésticas, também são convidadas a serem famílias em saída.
Como sustento e culminância de todo percurso espiritual familiar, o Papa lembra que, do ponto de vista cristão, as realidades do tempo presente são sempre provisórias e serão plenificadas quando do encontro definitivo com Deus. Com essa certeza, as famílias cristãs são convidadas a não fazer de sua situação presente um absoluto, mas a abrir-se sempre a novas possibilidades. Nos momentos e circunstâncias em que a família está estável e tudo parece caminhar bem, isso ajuda a lembrar que, quando menos se espera, pode advir algum acontecimento que pode turbar a realidade familiar. E assim como é preciso saber a bonança, é preciso também preparar-se para a intempérie. E, nos momentos em que as dificuldades parecem não ter fim, a certeza de que o mundo presente não é o definitivo nos ajuda a viver com esperança as dores do tempo presente.
O Papa nos lembra que essa dimensão escatológica da espiritualidade familiar é importante para viver no Espírito as dificuldades nas relações interpessoais, pois “contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos fazendo como família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo” (AL 325).
Mas ela é boa também para colocar diante de Deus as dificuldades das outras famílias pois “impedenos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade” (AL 325).
Em outras palavras, olhar a família como uma realidade que se plenificará apenas no futuro, nos ajuda a viver o presente com paz e esperança.