Arquivo mensal: janeiro 2021

Urbanos Insanos e Humanos

Tirar férias faz bem. Para a saúde da alma, do corpo e do coração também. Férias, por muito tempo, foi um direito negado até que duramente conquistado. Isso não pode ser olvidado. Não é presente. Não é regalo. É conquista, benquista e espero que resista a todas as reformas trabalhistas. Por mais que o capital insista!

Para quem mora e trabalha na cidade, férias implica necessariamente uma saída para o interior ou para o litoral. Não que férias sejam incompatíveis com a cidade. Ela tem suas belezas. Com certeza! Tantas que a gente se acostuma e precisa ir em busca de vistas que ficaram no passado – no meu caso que nasci no interior – ou que fazem parte do sonho futuro – morar no litoral! – para, depois voltar e redescobrir tudo aquilo que o dia a dia oculta da vista.

Mas as férias não são o ano todo. São apenas “férias”! Alguns dias e nada mais. Com sorte uma ou duas semanas. E depois lá voltamos nós para a cidade com suas ruas, carros, ônibus, metrô, prédios, escolas, universidades, hospitais, bares, restaurantes, fábricas (cada vez mais ausentadas das cidades), shoppings, praças e seus típicos barulhos, cores, odores, calores, sabores e pavores. Sim! A cidade tem seus prazeres. Mas também tem seus horrores.

Mas a cidade não são apenas suas construções e espaço. A cidade é gente. São homens e mulheres. Não apenas amontoados, juntados, justapostos, expostos. São homens e mulheres relacionados. Cidade é relação. É o bem maior da humanidade. Está acima da família e da aldeia. Isso dizia Aristóteles, trezentos anos antes de Cristo. Dizia o filósofo grego que a cidade faz o ser humano ser político, polido. Quem não mora na cidade é bruto, rude. Em latim, a “polis” de Aristóteles virou “civitas”. Morar na cidade é ser civilizado. Fora da cidade está o selvagem.

Descendo a Elevada da Rodoviária e mergulhando no caos do túnel da Conceição me pergunto se Aristóteles tinha razão. Sei não. Acho que não. E o meu não se faz ainda mais negativo quando vejo em cada rua, em cada esquina, um monte de mendigos e milhares de pessoas morando na rua em frente a prédios desabitados e gente passando fome ao lado de supermercados abarrotados. A civilização virou insana, desumana. A cidade perdeu a humanidade. É apenas um intrincado de prédios, ruas e espaços onde perambulamos sem saber para onde vamos.

Ligo o rádio e a filosofia brasileira toma o lugar de Aristóteles. Cada cidade brasileira – incluída a Porto Alegre em que vivo – é uma “Rio quarenta graus”, uma cidade de cidades misturadas, uma cidade de cidades camufladas, com governos misturados, camuflados, paralelos, com governos sorrateiros ocultando comandos do submundo oficial, bandidaço, classe média, camelô, com submáfias de todas as espécies – manicure, de boate, de madame, da TV, de deputado, aposentado, papai, mamãe, vovó, criancinha, dos filhinhos – e tantas outras que a lista cantada pela Fernanda Abreu não poderia jamais abarcar.

O funk tem razão. Toda cidade é um purgatório da beleza e do caos. Uma mescla da qual não podemos escapar. Um lugar que, com seus muitos donos – donos de becos, de ruas, de edifícios, de praças, de parques, de prefeituras e palácios – é também o nosso lugar, o meu lugar. Um lugar que, com nosso esforço e nossa palavra, precisamos a cada dia, voltar a civilizar. Aristóteles tem razão. O funk também tem. Mesmo insana, a cidade é humana, é o nosso maior bem! É o lugar que escolhemos para viver, para sofrer, ter prazer e amar.

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Um pequeno grande passo.

“Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade.” A frase é do astronauta norte-americano Neill Alden Armstrong, o primeiro ser humano a pisar na lua. O feito, como os mais velhos lembram e os mais novos seguramente vimos em imagens de arquivo, é um dos mais significativos da história. Pela primeira vez, em 20 de julho de 1969, um homem caminhava em outro solo que não o do planeta Terra.

O “pequeno passo” era a culminância do Projeto Apollo. A meta era colocar astronautas no solo lunar e, através deste feito científico e tecnológico, demonstrar a superioridade do capitalismo sobre o socialismo. Era a época da corrida espacial. Depois de vários fracassos e 200 bilhões de dólares consumidos, o objetivo foi alcançado e devidamente mediatizado. Mais de um bilhão de pessoas acompanharam ao vivo, pela televisão ou pelo rádio, a efeméride que culminou com a frase de efeito devidamente preparada para a ocasião.

A frase de Neil Armstrong que celebrizou o episódio me veio à mente esta semana quando o Papa Francisco, com um gesto pouco ou nada midiático, baixou um decreto modificando um parágrafo do Código de Direito Canônico. Trata-se do parágrafo primeiro do Cânon 230. Três palavras foram suprimidas: “do sexo masculino”. É o cânon que regula o acesso, na Igreja Católica Romana de Rito Latino, aos ministérios do Acolitato e Leitorado. Com a modificação, pela primeira vez na história moderna do catolicismo romano – vale sempre lembrar que além deste há outros cinco ritos na Igreja Católica Romana – o acesso a esses dois ministérios é aberto a mulheres.

Verdade que tanto aqui no Brasil como em outros lugares do mundo, desde o Concílio Vaticano II havia mulheres exercendo o ministério de acólitas e leitoras nas milhares de comunidades espalhadas por campos e cidades. Mas o faziam de forma extraordinária para suprir a carência de ministros homens ou na incapacidade ou não vontade deles em exercê-los. Era um ministério temporário, instável, passível de revogação a qualquer momento e visto como de caráter supletivo. Quando não mais necessárias, as mulheres que o exerciam eram dele dispensadas.

Agora a figura é outra: passam a ser ministérios permanentes, estáveis, instituídos pela competente autoridade eclesiástica. Como vai ser na prática, dependerá muito da dinâmica das comunidades que assumirão esta possibilidade canônica.

É um pequeno passo para as mulheres. Muitos gostariam de vê-las não apenas no exercício de ministérios auxiliares, mas na titularidade de ministérios ordenados e na direção das comunidades locais, paroquiais e diocesanas. Fato que, é bom lembrar, já é comum em outras igrejas cristãs. Mas talvez esse pequeno passo na longa luta feminina para o reconhecimento no espaço eclesial, se transforme num grande salto para a Igreja Católica Romana. Afinal, ter ou não a possibilidade de mulheres colocando os pés no espaço que circula o altar, é símbolo da corrida pelo exercício do poder na Igreja Católica Romana. Assim como, na década de 1960, colocar um homem a pisar na Lua era o marco da vitória na corrida espacial, ter mulheres ao redor do altar é sinal indicador de que o céu é o limite quando se pensa em uma Igreja aberta e participativa. Apenas um sinal, mas um sinal que desejamos promissor.

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FAROL DA SOLIDÃO

MOSTARDAS, RS, BRASIL, 24.01.12: Praia do Farol da Solidão. Foto: Claudio Fachel/Palácio Piratini

O nome é estranho. Para alguns, assustador. Quem gostaria de ir passar seu verão num lugar chamado Praia do Farol da Solidão? Poucos, com certeza. Diria mais: quase ninguém. A maioria, ao pensar em praia, busca um lugar de agitação, divertimento, badalação. Mesmo agora, em tempos de pandemia, os gaúchos urbanos e também os pampeanos insistem em ir para Torres, Imbé, Tramandaí, Capão e, correndo todos os riscos, fazer aglomeração. Parece fazer parte da idiossincrasia metropolitana que imita as aves de arribação. Estas passam pelo litoral sulino em maio e setembro. Os bípedes com o telencéfalo altamente desenvolvido e o dedo polegar opositor, para lá vão entre o Natal e o Carnaval.

Mas a Praia do Farol da Solidão existe. Está a meio caminho entre Palmares do Sul e Mostardas. De Porto Alegre, são 150 quilômetros. Duas horas e meia em carro. Saindo da capital pela RS 040, passando Viamão, segue-se para Capivari do Sul e daí em diante, pela 101 – a Estrada do Inferno já não é tão infernal! – até topar com a Estrada da Solidão, um pouco antes do Vilarejo Doutor Edgardo Pereira Velho. São oito quilômetros de areia que se move conforme os ventos de cada época do ano. Se tudo der certo, em meia hora o viajante tem à sua frente o edifício que dá o nome ao lugar: o Farol da Solidão.

Ninguém sabe exatamente quando o sinalizador foi construído. Diz-se que no início do séc. XX. A memória mais antiga é de uma estrutura de ferro. Mais tarde foi substituída pela atual torre em cimento que, do alto de seus 21 metros avermelhados, sinaliza aos navegantes que a costa está próxima.

O povoado são três avenidas com mais ou menos dez ruas transversais. Oitocentas casas, segundo o dono de um dos três mercadinhos que funcionam o ano todo. Armazém de secos, molhados, úmidos e todo tipo de gênero alimentício e não alimentício – da pasta de dente ao herbicida – que funciona ao mesmo tempo como boteco para otimizar a estrutura e garantir o faturamento. De março a dezembro, a vida gira ao redor da pesca que a cada ano se torna mais difícil. O peixe míngua e muitos residentes já se foram e outros pensam em partir. Em janeiro e fevereiro, a economia ganha impulso com os veranistas. As duas pousadas chegam nos fins de semana à lotação máxima: em torno de quarenta pessoas. Também há a opção de alugar – e aí os preços são muito favoráveis – uma das tantas casas de madeira disponíveis no balneário. Vem gente de Capivari do Sul, de Mostardas, Tavares, Viamão, Porto Alegre e, não raro, aqueles que fogem da badalação de Santa Catarina, Torres, Tramandaí, Imbé e Capão.  

Mas o que leva alguém a um lugar tão distante e tão fora do padrão daquilo que se imagina em Porto Alegre como passeio de verão? O nome do local já diz: solidão! Quem vai para lá sabe aonde está indo: um lugar onde se pode estar sozinho. Está escrito por todo lado que o lugar é de solidão: na estrada, no farol e na vila. E também no nome de um dos botecos e de uma das pousadas. Não tem como errar e depois reclamar!

São poucos os cidadãos que fazem esta opção. É muito penoso em nossa civilização do contato superficial e da hiperconexão aleatória estar sozinho e encontrar-se consigo mesmo. O Farol da Solidão fica longe. E a estrada é difícil. Menos, porém, do que o caminho para dentro do interior de si mesmo onde podemos vagar na íntima solidão. Não custa tentar! E que tenhas uma boa viagem…

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Da pandemia à empatia.

2020 já terminou! Um alívio… Um ano tão rápido que demorou tanto a passar. Parecia que não acabava mais. A tradicional contagem regressiva dos 10 segundos finais foi antecedida pela contagem dos últimos dias, das últimas semanas, dos últimos meses. Todos desejávamos que passasse logo. E passou. Estamos em 2021. Um ano novo cheio de otimismo e sonhos.

Esperança de tempos novos que foi alentada pela chegada das vacinas que prometem a superação da pandemia. Alguns países já começaram a imunizar sua população. O Brasil ainda não. A cadeira presidencial está sendo ocupada por um ser que afirma “não estar nem aí” com os 200 mil brasileiros mortos em consequência da Covid19. Esse ser do qual declino pronunciar o nome e a equipe de tanatófilos que o rodeiam, não se sente nem um pouco afligido pela dor daqueles e daquelas que perderam seus familiares e dos milhões de brasileiros e brasileiras que vivem a angústia da proximidade da morte e das consequências da crise econômica que, há de se dizer, não tem na pandemia sua única causa. A pandemia apenas veio potencializar o projeto de morte da elite de sempre que, para mantê-lo, precisa dos tradicionais cães de guarda verde-oliva que arreganham suas garras e dentes a cada vez que a maioria pobre da população ousa alçar a cabeça e reivindicar o direito à vida e à dignidade mínima que nos faz humanos.

Projeto de morte que se expressa na maior desigualdade econômica do mundo, na fascistização da política, na violência grotesca contra tudo o que nos faz plurais (diferenças culturais, de raça, sexo, gênero, idade, lugar de moradia, religião…) e na destruição da Casa Comum. Estas expressões e outras tantas que poderíamos elencar, tem sua raiz no pecado original da sociedade brasileira: o elitismo individualista. É a ideia de “cada um por si” e “salve-se quem puder” que veio junto com as naus de Colombo e Cabral e se constituiu como eixo articulador das relações sociais. “Pecado original” expresso de forma grotesca e criminosa no ocupante da cadeira presidencial que diz não temer a Covid19 por ter “histórico de atleta”. E os milhões de brasileiros e brasileiras que não tiveram a oportunidade de serem aposentados aos 33 anos por insanidade e, durante 28 anos de mandato parlamentar improdutivo, ter o tempo e os recursos para desenvolver um “histórico de atleta”? “Esses podem morrer”, pensa o carregador da faixa presidencial.

Mas também é expressão do elitismo individualista o comportamento daqueles que, em plena pandemia, promovem e participam em festas e aglomerações de todo o tipo onde, além do risco de infectar-se a si mesmos, criam a ocasião para que outros o sejam. Eles pensam e dizem: “se eu me infectar, o problema é meu!” Só pensam em si mesmos. Não se preocupam com as consequências de seu comportamento para a sociedade. Pior: sequer são capazes de imaginar o que seja “viver em sociedade”. Foram ensinados que existe “o povão, a ralé, a chusma, a gentalha”, da qual eles não fazem parte. Eles são ou imaginam ser um outro Brasil. O Brasil que vive em Miami, em Nova Iorque, em Paris ou Londres. Uns residem fisicamente lá. Outros vivem aqui como se lá estivessem.

Para superar o caos sanitário a vacina certamente ajudará. É preciso que ela chegue a todos e o mais pronto possível. Mas só sairemos melhores desta se formos capazes de controlar o vírus do individualismo elitista que assola, há séculos, essa terra chamada Brasil. É preciso que apliquemos em cada um de nós e em cada relação social, da mais próxima até as mais complexas, o sentimento de empatia e de solidariedade. Sentir cada brasileiro e brasileira como um ser humano de plenos direitos – independente das diferenças e das “comorbidades” – e mover-nos e estender a mão para que todos vivam.

Então, sim, a passagem de ano não será apenas um marco no calendário. Será possível passar do ano da pandemia ao ano da empatia e preparar um 2022 de muitas aglomerações. E torcer para que 2021 passe rápido!

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