Arquivo mensal: setembro 2022

Churrasco com coentro

Difícil ter nascido no Rio Grande do Sul. Cada vez e de novo ter que explicar que o fato de ter nascido no Estado mais ao sul do território nacional não faz de você, automaticamente, um gaúcho. Complicado explicar que “gaúcho” não é gentílico, mas identidade cultural. Que existem gaúchos no Rio Grande do Sul, sim. Mas também os nascidos em Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e em tantos outros estados do Brasil. Mas gaúcho mesmo, de verdade, é o índio pampeano e missioneiro – brasileiro, uruguaio ou argentino – que, expulso de suas terras pelos invasores espanhóis e portugueses, vagueia orellano pelas terras que um dia foram suas e hoje estão presas pelos fios de arame farpado, invadidas pelo soja ou assoladas pelo cruel eucalipto. É nas favelas, villas e barriadas que hoje moram os gaúchos, anelando em suaves milongas, seus dias de liberdade para sempre perdidos.

Nasci no Rio Grande do Sul. Bisneto de imigrantes italianos. Me criei na colônia italiana comendo polenta, fortaia e falando a língua vêneta. Fui aprender português na escola. Minha mãe tomava mate com erva seca no forno de barro e moída no bastão. Era costume de minha família materna. Um costume gaúcho que herdei e cultivo até hoje. Mas não por isso posso me considerar um verdadeiro gaúcho. Sou rio-grandense de origem italiano que, como em todo processo de integração, assimilou hábitos da cultura nativa.

Outra coisa difícil para quem nasceu no Rio Grande do Sul, é ter que explicar que é possível ser sul-rio-grandense sem ter que ser torcedor ou do Grêmio ou do Inter. A imprensa paroquial exportou a imagem de uma cultura esportiva bipolar, onde não existe alternativa entre o tricolor e o colorado. Ou é um, ou é outro. E eu não sou nenhum dos dois. Sou torcedor do Aimoré. Não o de São Leopoldo a quem muito respeito. É o Aimoré da Linha Quarta de Vila Flores. O time em que fui centroavante durante mais de 10 anos disputando amistosos, torneios e o Campeonato Municipal. O bom do Aimoré, entre outras coisas, é que, a cada quatro anos, a cor da camisa mudava conforme o uniforme doado por este ou aquele candidato a Deputado Federal da Arena ou do MDB. Deputado Federal doava o uniforme. Deputado Estadual a bola. Hoje o Esporte Clube Aimoré já não existe. Sobrou o campo com suas duas brancas goleiras metálicas e os restos da grade que o cercava. Em vez dos 22 atletas amadores correndo atrás da bola de couro costurada a mão, hoje nele pastam, de vez em quando, alguns cavalos e ovelhas da vizinhança. Gritos, só o dos quero-quero que insistem em elevar seus melancólicos piados no silêncio do fim da tarde. Mesmo assim, continuo torcedor do mítico time e de suas cores sempre cambiantes. Talvez o único e último.

Mas o pior de tudo de ter nascido no Rio Grande do Sul, é que aqui é muito difícil encontrar coentro. Muito difícil meeeeeeesmo! Até no Mercado Público de Porto Alegre é raro encontrá-lo. Em estado natural, verdinho, fresquinho, exalando seu típico perfume que enobrece qualquer receita, praticamente impossível. Só com muita sorte. O drama é que, quem aprendeu a gostar dele, não consegue abandoná-lo. Sem coentro, não há sabor! E, quando acham que sou gaúcho e me perguntam se sei assar churrasco, digo que sim, mas com uma condição: só se puder temperar com coentro! Sal grosso e coentro. E nada mais! É conditio sine qua non e não abro mão. Podem buscar outro assador! E não é absurdo, não! Se chimarrão combina com rapadura e doce de anis e se churrasco combina com salada russa, cerveja e cuca alemã, porque a carne da relês rês assada à moda pampeana não pode harmonizar com a apieaceae de perfume inconfundível , incomparável e insuperável?

Eu amento. Mas eu não minto. Eu só invento.  E neste 20 de setembro, eu digo e repito, viva o churrasco, viva o coentro!

E se Deus votasse?

Os mais jovens talvez não, mas os mais velhos, com certeza, lembram da seleção brasileira da Copa de 1970. Um time de “feras”, como dizia seu treinador João Saldanha. Foi ele que, depois da derrota na Copa de 1966 na Inglaterra, assumiu a seleção e, quando ninguém acreditava nela, conseguiu montar um time até hoje lembrado. Saldanha só não foi ao mundial porque era comunista. O Brasil vivia em pleno AI5 e o regime militar não podia arriscar deixar um vermelho comandando a canarinho. Saldanha foi dispensado e Zagalo dirigiu a equipe montada por Saldanha e até hoje temos que aguentar o bom velhinho e sua mania de ver 13 em tudo.

Entre as frases célebres de João Saldanha, está a de que “se macumba ganhasse jogo, campeonato baiano terminava empatado”. Comunista que era, teoricamente, não devia acreditar em Deus. Mas como os comunistas brasileiros, em sua grande maioria, são mais espiritualistas que materialistas históricos e dialéticos, a frase do ilustre treinador se torna ainda mais instigante. E ela me provoca exatamente neste momento de nossa história em que caminhamos para uma eleição em que temos a impressão que o grande eleitor é Deus ou que votaremos para decidir qual é a divindade que vai governar o Brasil nos próximos quatro anos.

O religioso tomou conta do espaço político e, alguns candidatos, ao invés de apresentar soluções para os problemas econômicos, sociais, ambientais e culturais do país, parecem estar dando catequese ou fazendo um sermão numa igreja. Aliás, há candidatos que frequentam mais igrejas do que palanques eleitorais e, quando vão a estes, os transformam em verdadeiros púlpitos. Ao invés de apresentar soluções para a fome que assola 70 milhões de brasileiros, propõem que estes façam jejum para que seu candidato vença a eleição! Como se a dor da fome real não fosse suficiente.

Mas, como sou teólogo, sou tentado a levá-los a sério e fazer uma pergunta: qual seria o/a candidato/a que se encaixa no perfil de alguém que faz a vontade de Deus? Para o cristão, há um parâmetro bem claro. São as bem-aventuranças. Lá estão, tanto no Evangelho de Mateus como no de Lucas: felizes os pobres, os mansos, os que te fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que choram, os limpos de coração, os que constroem a paz, os que são perseguidos por causa do Reino.

O Evangelho de Lucas apresenta o contraponto às bem-aventuranças. Lucas fala das mal-aventuranças, as maldições, os “ai de vós” os ricos, os que estão fartos, os que riem desprezando os que sofrem, os que se acham acima de todos e só querem aprovação e aplausos.

Tendo presente as bem-aventuranças e as mal-aventuranças nos perguntamos: se Deus votasse nessa eleição como alguns parecem desejar, em quem será que Ele votaria? Naqueles e naquelas que provocam a fome, a violência, a morte, que se mostram insensíveis à dor e ao sofrimento dos que perderam seus familiares e amigos na pandemia, naqueles e naquelas que promovem a destruição da vida dos humanos mais frágeis e das florestas, dos rios, do ar e dos animais que neles vivem? Ou Ele votaria naqueles e naquelas que defendem teto, terra, trabalho, educação e dignidade para todos, começando pelos que delas mais necessitam?

Nestes tempos de eleição, é bom lembrar a frase de Jesus: “Nem todo o que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” é que entrará no Reino dos Céus. E a vontade do Pai é que todos tenham vida, e a tenham em abundância. Que me desculpe João Santana. Mas, se Deus votasse, com certeza, a eleição não terminaria empatada. Seria uma goleada de 7 a 1, acachapante, inapelável, sem qualquer possibilidade de recurso ao VAR! Mas Deus não vota. Quem votamos somos nós. Com que critérios votamos? Esta é a pergunta a se fazer. Boa decisão!

Procuramos Independência

O mês de setembro inicia com a festa pátria maior: a Independência do Brasil. Literalmente, a não-depência. No caso, a do Brasil em relação a Portugal. O curioso desta data é que, olhando no detalhe, foi o contrário. Quando Pedro I, empurrado por José Bonifácio e Dona Leopoldina, decidiu ficar no Brasil, foi Portugal quem se tornou independente do Brasil. De fato, desde 1808, quando as tropas de Napoleão entraram em Lisboa e os ingleses evacuaram a Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, todas as decisões que necessitassem do beneplácito real eram tomadas no Brasil. Lisboa passou a ser periférica e dependente do Rio de Janeiro. O que os portugueses queriam – maiormente os lisboetas saudosos do fausto e das benesses da corte – era o retorno do rei a Portugal. Quem buscava a não-dependência era Portugal! Parece irônico, mas é assim que foi.

Com aquela cena que Pedro Américo, quase 80 anos depois, pintou numa colina que não existia à margem do Ipiranga no qual a água mal corria, Portugal e Brasil passaram a ser dois países independentes governados pela mesma família Orleans e Bragança. E, num regime monárquico, a nação é o rei, ou seja, a família real, como bem o expressara Luiz XIV: “L’état c’est moi!” Com o grito (ou seria um outro som inominável?) do Ipiranga, Portugal e Brasil estavam na estranha ficção de dois países governados pela mesma família e sob os mesmos interesses. Não os próprios, é claro, mas o da Inglaterra que, nos bastidores, tudo administrava, até os oficiais militares ingleses que dirigiam as tropas brasileiras nas batalhas contra os portugueses.

O mais famoso deles, foi o Lorde Thomas Cochrane. Nascido na Escócia, destacou-se nas Guerras Napoleônicas e, aproveitando a fama, inventou a notícia de que Napoleão havia morrido, o que provocou uma supervalorização na Bolsa de Londres de ações que ele comprara por um valor insignificante. Descoberto seu golpe, foi julgado, chicoteado em praça pública, preso e, na prisão, eleito para a Câmara dos Lordes. Os britânicos também têm gosto por figuras estranhas na política!

Para não ter que enfrentar outros julgamentos, partiu para a América do Sul onde, em troca de um bom dinheiro, chefiou a marinha do Chile, depois a do Peru. Tudo ia muito bem para ele até ser contratado, em 1923, para chefiar a marinha do recém proclamado Brasil. Junto com outro oficial inglês, John Taylor, através de uma série de blefes e mentiras e sem nenhum combate real, garantiu a adesão da Bahia, Maranhão e Pará ao novo governo do Rio de Janeiro. O novo Império, no entanto, tardou a reconhecer plenamente sua contribuição. Dom Pedro I jamais pagou o soldo acordado pelos serviços. Não pelo fato de Dom Pedro I ter decretado sigilo de cem anos sobre as suas relações com os militares ingleses.

O fato é que Dom Pedro I preferiu governar Portugal e retornou para o Velho Continente deixando esta parte dos territórios da família Orleans e Bragança sob o cuidado de regentes até que seu filho atingisse a maioridade. E, quando este assumiu o trono, decidiu não reconhecer a dívida contraída pelo pai.

Até a sua morte em 1860, Lorde Cochrane ficou esperando a recompensa que, afinal, só foi acordada aos seus dois filhos em 1875: 4,5 milhões de libras no valor atual, ou seja, algo em torno a 27 milhões de reais. Talvez seja por isso que, até hoje, as filhas dos militares recebem pensões vitalícias que todos nós pagamos mesmo contra a nossa vontade.

Como podemos ver, desde a sua proclamação, a Independência é um bom negócio para os militares. Por isso, talvez, eles gostem tanto de festejar a data. Independentemente de quem esteja no governo, mesmo que tardando, eles sempre ganham. Enquanto isso, o povo marcha…