Arquivo mensal: outubro 2021

Sobre reformas e concílios.

No próximo dia 31 de outubro celebramos o Dia da Reforma. Nesta data, no ano de 1517, o monge agostiniano Martilho Lutero expôs, como era de costume para as coisas importantes, na porta da Igreja de Wittenberg, 95 teses para uma sessão de Quaestiones Disputatae.

Frei Martinho era professor titular de Bíblia na Faculdade de Teologia da Universidade daquela cidade. Discutir publicamente posições teológicas era uma prática comum na época. O tema central das 95 teses eram as indulgências. Era um tema sensível que mexia com duas questões fundamentais: a salvação da alma e o dinheiro no bolso. Mas não era uma questão simples. Ela mexia com dois tópicos fundamentais da fé cristã e da organização da igreja: a graça salvadora de Deus na cruz de Jesus Cristo e a autoridade do Papa em declarar a salvação em troca de dinheiro.

Lutero sabia que estava mexendo com fogo. Mas ele nunca se propôs a dividir a Igreja. Ele, como tantos outros em seu tempo, queria uma reforma. E o caminho para alcançá-la, como era a tradição mais antiga, se daria com da realização de um concílio. Quando o incêndio se alastrou pelo Sacro Império Romano Germânico e alcançou toda a Europa, ele insistiu na necessidade de um grande diálogo a fim de resolver a questão. O jogo de força entre o Papado, o Imperador, os príncipes alemães e o rei da França tornaram o Concílio impossível. Cada um defendia seu interesse e os ideais do Evangelho ficaram em segundo plano. A crise prolongada pela não vontade de dialogar desaguou na tragédia. Quando Paulo III, em 1546, finalmente aceitou a realização do Concílio, já era tarde. A divisão do cristianismo no Ocidente estava consolidada e perdura até hoje. Trento erigiu uma das posições teológicas em dogma e declarou todos os que pensavam diferente como excluídos da Igreja.

Cincos séculos depois, no mesmo mês de outubro, quem convoca um Sínodo para a reforma da Igreja é o Papa Francisco. É o Sínodo sobre a Sinodalidade que se estenderá até outubro de 2023. A abertura já foi dada no dia 10 passado. O caminho foi aberto com uma chamada à ampla participação de todos os católicos, cristãos de outras igrejas, pessoas de outras religiões e também de quem não expressa nenhuma profissão religiosa. É um convite à escuta e ao discernimento para um caminhar conjunto de todos e todas. Um caminho sinodal aberto e inclusivo e esperançoso na direção de uma Igreja servidora do Evangelho.

As respostas até agora vista são variadas. Alguns aderiram com entusiasmo e já se puserem a trabalhar. Um número significativo reagiu com resignação, entrando no processo sem muito entusiasmo, mais por conveniência do que por convicção, numa mal disfarçada resistência passiva. Outros se opuseram abertamente à proposta recusando-se a participar e estimulando outros a boicotar o Sínodo numa clara atitude sectária.

O que acontecerá com a Igreja Católica Romana no decurso destes três anos de processo sinodal? Qual será o resultado final de tudo isso? Conseguirá o Papa Francisco romper com a inércia das instituições e a resistência das corporações eclesiásticas?

Nada é previsível. Tudo está em aberto. Neste cenário de incertezas, é bom lembrar que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem”. Se há decisões pessoais, como as do Papa Francisco, em promover o diálogo, sobre elas pesam as circunstâncias que não são de sua escolha e com as quais são confrontadas as vontades individuais. E, no quesito de tentativas de diálogo e conciliação, a Igreja tem um pesado legado de contradições, fechamentos, agressões e rupturas.

Tendo isso presente, aos que acreditamos na proposta sinodal de Francisco, só nos cabe agir e rezar para que a tragédia do séc. XVI não se repita como farsa neste início do séc. XXI.

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Nossa bandeira nunca será vermelha!

Talvez você lembre da Rosângela. O vídeo dela viralizou. Foi em novembro de 2018. O contexto era uma manifestação no Congresso Nacional a favor de um golpe militar. A jovem senhora parou diante de uma bandeira do Japão ali presente e, com seu celular, gravou um vídeo. Com voz rouca e aos gritos, ela apontava para o “símbolo comunista” que, segundo ela, havia substituído a verde-amarela brasileira.

Jogado na internet pela própria Rosângela, o vídeo rodou o mundo e inspirou dezenas de memes. Dias depois, Rosângela se retratou da confusa identificação entre a bandeira do Japão e uma suposta bandeira comunista. Mas continuou a insistir que “nossa bandeira jamais será vermelha”.

O “equívoco” visual de Rosângela não foi único naqueles dias. Houve carros vermelhos apedrejados pelo simples fato de serem vermelhos. Amigos meus evitavam sair às ruas com roupas vermelhas. Nos parquinhos das praças, os brinquedos vermelhos foram repintados em verde ou amarelo. A tinta vermelha sumiu das lojas de materiais de construção. Lojista nenhum arriscava ser tachado de comunista por vender qualquer item com a perigosa cor.

Mas Rosângela não foi a única “cidadã de bem” em ver por todos os lados a ameaça comunista. Ela foi apenas uma entre milhões de brasileiros e brasileiras que, levados pela velha teoria da conspiração do “marxismo cultural”, a ver comunismo por todos os lados: na bandeira vermelha do Japão, nas ciclovias de São Paulo, nas cores dos semáforos, nos direitos humanos, na defesa da Amazônia, na Campanha da Fraternidade da CNBB, nos materiais didáticos das escolas primárias, nas Universidades… Até as novelas da Globo e os filmes do Netflix eram vistos como propaganda esquerdista. Ah! E houve os casos de ameaças imaginárias como a nunca localizada “mamadeira de piroca” e o jamais encontrado “kit gay”. Se alguém, por acaso, tiver algum exemplar desses itens, favor enviar. E aí, sim, teremos finalmente a comprovação da materialidade da ameaça do “marxismo cultural”.

Efetivado o golpe parlamentar de 2016 e a trapaça judicial que tirou o candidato da oposição do páreo, um novo governo foi eleito em 2018 em base a fake news. E aí uma outra bandeira vermelha começou a aparecer pelo Brasil. Ela foi vista no fundo de uma piscina na casa de um professor em Santa Catarina. Foi riscada por três homens na pele de uma jovem em Porto Alegre. Foi estampada na logomarca de um supermercado na Bahia. Quatro homens a desenharam na testa de um jovem gay de Itaguara, na Grande Belorizonte. Foi pintada sobre um mural da campanha de prevenção ao câncer de mama em Dourados. Enfeitou a braçadeira de um jovem que passeava por um shopping em Caruaru. Outros jovens desfilaram braçadeiras com a mesma bandeira vermelha em Unaí e Curitiba. A mesma foi desfraldada por homens vestidos com as roupas rituais da Ku Klux Klan no Parque Moinhos de Vento em Porto Alegre. Membros do mesmo grupo invadiram, no último dia 20 de outubro, a Câmera de Vereadores de Porto Alegre, em protesto contra a vacina. Em suas mãos, outra suástica nazista.

Será que a bandeira vermelha nazista está substituindo a verde-amarela brasileira? Onde está a Rosângela para proclamar que “nossa bandeira nunca será vermelha”?

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Professor: um risco prazeroso

Ser professor é uma opção arriscada. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, em todos os países do mundo, é uma das profissões com os mais altos índices de stress. No Brasil, a pressão emocional vem acompanhada pela baixa remuneração. Num ranking de 48 países organizado pela OCDE, os professores e professoras brasileiros são os mais mal pagos. Junte-se a isso, a falta de reconhecimento social. São raros os docentes que já não ouviram a pergunta: “Você não trabalha? Só dá aula?” Como se “dar aula” não fosse trabalho!

Por que persistimos, então, nessa ocupação? Pelas razões de qualquer outra profissão: necessidade e satisfação. Por necessidade, porque todo ser humano, para sobreviver, precisa trabalhar. E ensinar é um labor como qualquer outro que busca a justa remuneração para a satisfação das necessidades básicas e dos prazeres que a vida humana merece.

E há também a satisfação como deveria haver em qualquer outra profissão. Uns sentem prazer em jogar futebol, em arar a terra, em esculpir ou desenhar, fabricar carros, cozinhar, limpar uma casa, vender… E nós sentimos prazer em ensinar, em transmitir conhecimento e em ver pessoas crescerem no saber e no ser. É neste último aspecto que está o maior prazer do professor e da professora.

Prazer que, há de se reconhecer, vem sempre acompanhado de uma dose de ansiedade. Afinal, o que vai ser desta criança, jovem ou adulto com o qual ocupamos nossas horas e dias?

Ser professor é viver a vida no futuro do pretérito. Quais vão ser as consequências futuras daquilo que ensinamos às pessoas do hoje que já é ontem? Pergunta difícil que, como diz o tempo verbal, mesmo sendo do modo indicativo, é sumamente dubitativo, marcam o dia a dia do professor e da professora.

Afinal, pessoas não são coisas nem máquinas. Não são determináveis. Não podemos moldá-las conforme nossos desejos e interesses. O êxito de nosso trabalho não depende, em última instância, de nós. Está assentado na acolhida e cultivo do que semeamos por parte de quem está à nossa frente. Ele é o sujeito. Nós, apenas os meios.

A maioria dos estudantes passa pelas nossas vidas e desaparece… Nunca mais os vemos ou temos notícias. Mesmo daqueles e daquelas que pareciam tão próximos. Outros aparecem muito tempo depois, quase sempre por acaso. Aparições que podem trazer alegria ou dor. Às vezes a notícia não é boa. Aquele ou aquela que um dia foi nosso aluno tomou um rumo na vida que o fez infeliz. Outras vezes a alegria explode ao descobrirmos que todo aquele potencial que apenas vislumbrávamos agora desabrochou e está a nossa frente uma pessoa realizada e transbordante de contribuições para a sociedade.

E a culminância do prazer do professor acontece quando um daqueles jovens que havia desaparecido da memória te encontra e diz: “Eu achava as suas aulas chatas e você muito exigente, mas agora me dei conta de como aquilo era importante e está sendo útil em minha vida”.

Mas há um degrau a mais, o suprassumo da razão de continuar na profissão de professor. É quando alguém chega e te diz: “As suas aulas me ajudaram a mudar o rumo da minha vida. Foi ouvindo a sua explicação que tomei uma decisão que foi decisiva para mim”. É uma frase que não tem preço. Ela compensa todas as horas mal pagas e arduamente trabalhadas. Ouvi-la, uma vez que seja na vida, justifica todos os esforços de quem se dedica ao ensino. É a realização antecipada de tudo o que sonhamos. É o presente do futuro.

Tenho o prazer de dizer que já ouvi essa frase. E foi  muito bom ouvi-la! Por ela e por todas as outras, agradeço a cada um e cada uma que, nestes 22 anos de magistério, partilharam a sala de aula comigo. Obrigado!

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