Arquivo mensal: junho 2020

Não basta ser doutor…

Ter um doutorado é importante. Tão importante que até quem não tem faz questão de dizer que tem. E alguns, infelizmente, até mentem e inventam falsos diplomas para dizer que são doutores.

Deixando de lado estes casos bizarros, no mundo real e normal, o doutorado é importante por ser o ponto culminante do processo de educação. Ser doutor é demonstrar a capacidade de produzir conhecimento em benefício da sociedade. E, hoje, mais do que nunca, está provado que as nações só passam da pobreza ao bem estar através da produção de conhecimento. A China, o país que mais progrediu economicamente nas últimas décadas e lidera a economia mundial, ultrapassou os Estados Unidos e a União Europeia em número de doutores formados e pesquisadores em atividade.

Basear a atividade econômica na exportação de matérias primas, manufaturados e produtos agrícolas é aceitar um posto subalterno na economia mundial. Nenhum país saiu da situação de pobreza sem um maciço investimento em educação. Processo que abarca desde a pré-escola até o ensino superior. Alfabetizar com qualidade é importante. É a base. Mas não basta. É preciso mais.

A miséria da educação no Brasil tem uma razão muito simples: falta de investimento público. Dentre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), somos o que menos investe, per capita, no sistema educativo. Três dados mostram as consequências desta opção: o número de alunos em tempo integral nas escolas públicas baixou de 18 para 10% entre 2014 e 2018; o salário das professoras do Ensino Básico brasileiro está entre os mais baixos do mundo (em média, 10% do que ganha um professor europeu!); o ingresso no Ensino Superior continua estagnado em 18% dos jovens entre 18 e 24 anos, e só se mantém neste nível graças ao ensino à distância, de duvidosa qualidade.

Por que tanta desatenção com a educação? A resposta é simples: falta de sabedoria. No Brasil, acesso à educação é visto como luxo para poucos. É uma reserva para as elites que se auto reproduzem em seus guetos sociais e educacionais. Nos poucos momentos em que se ensaiou uma ruptura deste ciclo através de programas de inclusão educacional como o PROUNI, o FIES e o sistema de cotas, a reação da minoria privilegiado foi violenta e levou à ruptura e destruição dos processos educacionais em andamento e do próprio sistema democrático. Uma triste opção da qual toda a nação pagará as consequências no longo prazo.

Conhecimento é importante. Mas ele só é possível quando nos rendemos à sabedoria de Jesus. Em sua oração, ele louva o Pai que revela o seu saber aos pobres e pequeninos e o ocultou aos ricos e poderosos. Esta é a sabedoria de Jesus. Se não nos rendermos a ela, nunca haverá conhecimento, nunca haverá educação e nunca, como nação, sairemos da situação de pobreza econômica e miséria moral da qual a ostentação de títulos nunca alcançados é apenas uma deprimente manifestação.

Viva São Pedro, Santo Antônio e São João!

Junho é o mês das festas dos santos do povo. Começa com Santo Antônio, passa por São João e termina com São Pedro.

Santo Antônio é o casamenteiro. Arruma namorada para o pior dos encalhados. Para outros, é o “pão dos pobres”, aquele que convida a partilhar o pouco que temos com os que menos ainda têm. João Batista é o profeta. Ele anuncia uma sociedade de justiça onde os poderosos terão que prestar contas de suas prepotências. Ele prepara o caminho e batiza o Messias que veio realizar a justiça para os pobres.

São Pedro, o último a ser celebrado, é o braço direito de Jesus aqui na terra. No céu, ele tem as chaves da porta e controla quem entra e quem fica de fora. É o líder, o chefe. E talvez por isso sua figura não seja tão popular como a dos outros dois. Aliás, até nos evangelhos sua fama é duvidosa. Jesus o chama de Satanás quando o discípulo quer que ele seja um chefe poderoso que vai esmagar os opressores judeus e romanos. O Mestre o repreende por ter tomado a espada e cortado a orelha de um escravo do Sumo Sacerdote e o adverte de que todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão! Na hora do lava-pés, Pedro se recusa a entrar na fila e deixar-se lavar. No dia da prisão, nega três vezes conhecer o nazareno. Depois da ressurreição, Jesus lhe pergunta se é capaz de dar a vida por ele. Pedro titubeia e Jesus tem que repetir a pergunta três vezes.

Perguntamo-nos então: quando foi que Pedro mudou a ponto de se tornar a liderança da comunidade? Segundo o livro dos Atos dos Apóstolos, foi a experiência da prisão que levou Pedro à mudança. Ele sempre pensou a liderança como um exercício do poder. Olhava para cima e pensava em como chegar ao alto. Ao passar pela cadeia, experimentou que o verdadeiro poder só se alcança quando se desce até os últimos da sociedade. Foi convencido a deixar de sonhar com o principado e passar a pensar nos humilhados. Foi isso que aconteceu com Jesus. Pedro, ao passar pela cadeia, assumiu essa forma de liderança.

É uma experiência que se repetiu com Francisco de Assis, Mahatma Ghandi, Martim Luther King, Nelson Mandela, Dom Hélder Câmara, Tereza de Calcutá, Irmã Dulce e outros tantos e tantas que fizeram suas as dores, sofrimentos e prisões dos leprosos, dos párias, dos segregados, discriminados e empobrecidos da sociedade.

O Papa Francisco, atual sucessor de Pedro no serviço à Igreja, lembra que a verdadeira liderança precisa se despir não apenas das roupas de príncipe, mas da “psicologia de príncipe”. Uma conversão difícil que implica em mudar de lugar social e eclesial: sair dos palácios e misturar-se ao povo nas festas da esperança da volta da fogueira que aquece a convivência dos pequenos e humilhados. Mas uma conversão possível e necessária para uma nova humanidade que possa viver a alegria da festa da vida.

A Angústia e o Medo

Acabo de ler “A História do Medo no Ocidente”. Fazia tempo que estava na minha lista de espera. Agora, em tempo de pandemia, tirei-o do descanso da estante e me dei ao agradável trabalho de percorrer suas mais de 500 páginas.

Um grande livro do excepcional historiador Jean Delumeau. De forma concisa e profunda ele analisa os medos que percorreram a Europa do séc. XIV ao séc. XVII. Época do Renascimento da cultura clássica e aprofundamento dos medos da Idade Média. Medo da fome, da peste, da noite, do mar, da guerra, do fim do mundo, dos hereges, do diabo, dos judeus, dos turcos, das mulheres, das feiticeiras.

Medos que são organizados pelo autor em dois grandes blocos: o medo das classes populares e os medos das classes dirigentes. Os pobres têm medo daquilo que lhes ameaça a subsistência e a sobrevivência. As classes dirigentes, nobres e clero, têm medo dos pobres que, acossados pela necessidade, podem provocar o caos no qual os ricos serão submergidos com suas riquezas.

De onde nascem estes medos? Ao longo do texto e com sólida argumentação, o autor demonstra que estes medos só foram possíveis porque a sociedade europeia vivia um tempo de angústia. Com efeito, angústia e medo são coisas diferentes. Em termos sociais, a angústia nasce da situação de instabilidade que leva à incerteza do amanhã. As profundas transformações culturais, econômicas, políticas, sociais e religiosas porque passava o continente fazia com que ninguém tivesse segurança quanto ao futuro – imediato e mediato – que lhe caberia viver.

A angústia, enquanto fenômeno social, é indefinida e abrangente. Abarca o todo da vida e é de difícil solução pois não depende da vontade do indivíduo ou de um grupo. Para os que dominam a sociedade e a cultura, a melhor forma de superá-la é através do medo. Este direciona a angústia para um inimigo específico e apresenta-o como culpado de todos os males. Eliminando o fator de medo, a sociedade crê eliminar a angústia que a invade e assim garantir outra vez a estabilidade.

O grupo social apontado como aquele que deve ser temido e combatido, torna-se “bode expiatório” sobre o qual é jogada a angústia da sociedade. Sua morte é vista como um sacrifício necessário para a sobrevivência de todos. Aquele que o elimina, é um herói a ser exaltado. Tal lógica explica os massacres dos camponeses, dos judeus, dos muçulmanos, dos ciganos, dos hereges, das feiticeiras…

E, digo eu, talvez extrapolando Dellumeau, explica os medos que hoje são criados para desviar a atenção da angústia de nossa desigual sociedade. Sem curar a causa, não adiante tratar o sintoma. Medo é sintoma, muitas vezes falsificador da verdadeira causa da doença de nossa sociedade.

A Bolsa ou a Vida

bolsa

Segundo a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, “economia é o conjunto de atividades desenvolvidas pelos homens visando a produção, distribuição e o consumo de bens e serviços necessários à sobrevivência e à qualidade de vida”.

Uma bela definição a ser lembrada nestes tempos em que, segundo alguns, o distanciamento social, que ajuda a salvar vidas no contexto da Covid19, levaria à ruína da economia. Mas, nos perguntamos nós: que economia é essa que se opõe à sobrevivência e à qualidade de vida das pessoas?

Afinal, vale a pena produzir, distribuir e consumir bens e serviços se toda esta atividade não tem como objetivo maior salvar pessoas? Pode existir uma economia desvinculada da vida humana? Que economia é essa que não se importa com a vida dos homens e mulheres que produzem, distribuem e consomem bens e serviços?

Na Encíclica Laudato Sì, publicada lá se vão já cinco anos, o Papa Francisco chamava a atenção para o grande perigo de uma economia desvinculada das reais necessidades humanas. Segundo o Papa, quando a economia já não é pensada como a arte de suprir as demandas da sobrevivência e da qualidade de vida, cai-se num “vale tudo” em que a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras, o trabalho escravo, o tráfico de órgãos, pessoas e drogas, o comércio sexual de mulheres e crianças, o abandono dos idosos e a depredação do meio ambiente, são justificados como necessários para que a economia continue funcionando e dando lucros. Dá lucro? Então pode… parece ser o mote de alguns economistas.

Segundo o Papa Francisco, a hegemonia do sistema financeiro sobre a economia real é o sintoma mais claro da desvirtuação da economia. Segundo ele, “a finança sufoca a economia real”. Não é apenas uma frase bonita. Ela expressa o mundo concreto em que vivemos. Na medida em que as medidas de isolamento social são levantadas e, em consequência, o número de mortos pela Covid19 explode, a Bolsa de Valores retoma seu viés de alta.

Para dar vida à Bolsa de Valores, é necessário dar morte a milhares de brasileiros e brasileiras. Tal qual Baal, o sistema financeiro exige o sacrifício de vidas humanas. É um sistema idolátrico que se nutre do sangue das pessoas. E, no caso da pandemia que estamos vivendo, exige o sacrifício das pessoas mais frágeis da sociedade, os idosos e doentes.

Já dizia Jesus em sua crítica aos fariseus: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro!” Quando o lucro é colocado acima da vida, já não há lugar para o verdadeiro Deus. A religião se torna ideologia e a economia se transforma em uma máquina de morte que devora, primeiro os mais fracos, e depois aqueles e aquelas que pensavam dominá-la.

Palavras que precisam ser lembradas antes que nos tornemos todos vítimas. Alguns da Covid19. Outros, da ganância cega, surda e muda diante da vida que clama. Temos que escolher: ou a bolsa, ou a vida.