O Voto de Obediência: Reflexões a partir do Magistério do Papa Francisco

Frei Vanildo Luiz Zugno[1]

Uma temática sensível

O voto de obediência toca um dos temas mais caros à sociedade moderna: a busca por liberdade. Pode-se dizer que todas as transformações sociais acontecidas nos últimos séculos trouxeram em seu bojo esta demanda por autonomia, pela possibilidade de ter iniciativa própria, por organizar a própria vida conforme os sonhos e não de acordo com a ordem de outrem. A Revolução burguesa, em seu ideário liberal, estabeleceu a liberdade das amarras do feudalismo, principalmente  a vinculação da pessoa à terra e seu senhor, como condição primeira para que a igualdade e a fraternidade fossem possíveis. Na sociedade capitalista, a livre iniciativa é vista como o motor de toda transformação social. O comunismo de Marx, por sua vez, sonhava com o “reino da liberdade” no qual o trabalho não fosse mais uma imposição da necessidade de sobrevivência ou da dominação por outra pessoa. Ser livre, na concepção marxista, é trabalhar sem nenhum constrangimento externo, apenas como uma expressão da subjetividade criadora.

A Igreja teve muita dificuldade em dialogar com esta dimensão da modernidade. Ancorada no princípio da autoridade de Deus que exige obediência incondicional, ela via na afirmação e na busca da liberdade um atentado contra a ordem divina das coisas e, por consequência, à ordem social e eclesial. Isso porque, na concepção pré-moderna, tanto a autoridade civil como a eclesiástica, tem seus fundamentos e emanam de Deus. Buscar a liberdade afrontando a autoridade, civil ou eclesiástica, era um atentado contra Deus que os havia constituído nesta condição. Dentro desta lógica, o ateísmo é visto como fonte da anarquia social e, por outro lado, as revoluções sociais são vistas como caminho para a negação de Deus. Por isso, a Igreja, na intenção de defender a autoridade de Deus, sempre se posicionava contra toda reivindicação libertária.

No interior da Igreja, contestar uma autoridade era visto como a forma mais grave de heresia, a fonte de todas as heresias, o maior perigo para a Igreja. Roma locuta, causa finita, foi usada muitas vezes neste sentido: a autoridade não pode ser contestada, apenas obedecida. Autoridade que, de Roma se estendia pelos diversos degraus do escalão hierárquico – Cardeias Epíscopos, Cardeais Presbíteros, Cardeais Diáconos, Arcebispos, Bispos, Monsenhores, Cônegos, Párocos, Vigários, Capelães, Coroinhas… – cada um tendo em sua própria cabeça uma imaginária Roma que lhe dava autoridade para estabelecer a sua vontade como definitiva a todos os que lhe eram considerados “inferiores”.

A Vida Religiosa Consagrada (VRC) pré-conciliar, ao compreender-se e ser compreendida como “estado de perfeição”, elevava tal noção de obediência a seu nível máximo. A perfeita obediência era a entrega absoluta da própria vontade nas mãos do superior ou da superiora que recebia a autoridade de Deus. E, do mesmo modo que na Igreja, tal representação obedecia às diferentes escalas hierárquicas, desde o Ministro Geral até o superior local. Cada um, no seu devido escalão, através de suas decisões, emanava para seus súditos a vontade divina. Para as religiosas mulheres, a situação era ainda mais complexa pois, além da autoridade interna à congregação, havia a submissão a uma autoridade externa clerical masculina.


O Concílio Vaticano II estabeleceu as pazes com o mundo moderno e, nele, com a busca por liberdade como um valor fundamental para qualquer ser humano. O Concílio também redefiniu a compreensão de Igreja. Ela não mais se define como uma sociedade hierárquica mas como Povo de Deus. A VRC passa de “estado de perfeição” a testemunho profético da presença do Reino de Deus neste mundo (LG 44). Todas as mudanças estruturais exigiram uma redifinição do voto de obediência.

Estabelecendo novas bases

Ao estabelecer os princípios para a renovação da VRC, a Perfecta Caritatis desloca o voto de obediência da relação vertical súdito-superior e o reposiciona numa rede de relações com vários polos que configuram complexas relações.

A relação primeira e fundante de todas as outras é a que se estabelece entre o/a consagrado/ e Deus: “Pela profissão da obediência, os religiosos oferecem a plena oblação da própria vontade como sacrifício de si mesmos a Deus, e por ele se unem mais constante e seguramente à vontade divina salvífica” (PC 14). O modelo de obediência é Jesus Cristo que veio ao mundo para fazer a vontade do Pai (Jo 5, 30b) tomando a forma de escravo (Fl 2, 7) ou seja, daquele que não tem vontade própria, mas faz a vontade de seu senhor.

Nesta relação, sob a moção do Espírito Santo, os superiores são estabelecidos como “vigários de Deus”. O detalhe é que sua função vicária não é a de intermediar a relação entre o/a religioso/a e Deus, mas a de levar os irmãos/irmãs a fazer o mesmo que Jesus Cristo fez: “serviu os irmãos e deu a sua vida para a redenção de muitos” (PC 14). Isso fazendo, os/as religiosos/as “unem-se mais estreitamente ao serviço da Igreja e procuram chegar à medida da idade plena de Cristo” (PC 14). Nesta configuração, estabelece-se um segundo polo e uma segunda relação: aqueles e aquelas que precisam do serviço do/da religioso/a para alcançar a salvação. Da obediência a Deus, nasce a obediência àqueles e àquelas que precisam da presença do consagrado/a. O papel do/da superior/a não é dizer o que Deus quer do consagrado/a, mas velar para que o irmão/ã seja obediente à missão que o Pai lhe confiou. Desse modo, na obediência, além de escutar a voz de Deus, é necessário estar atento às vozes que clamam desde a humanidade e desde a criação e a elas obedecer porque nelas também pode estar o chamado de Deus. A missão de “servir a todos os irmãos em Cristo” é realizada no espaço eclesial em que o religioso/a vive.

No final do parágrafo, o decreto introduz uma outra instância obediencial: “Os Capítulos e os Conselhos cumpram fielmente a sua função no governo, e, cada um a seu modo, exprimam a participação e a solicitude de todos os membros no bem da comunidade inteira”. A vontade de Deus à qual o/a consagrado/a deve estar atento/a e pronto/a, passa também pelas instâncias comunitárias.

Dentro dessa complexa teia de relações, o objetivo último da obediência não é que o/a religioso/a submeta a sua vontade à do/a superior/a. A devida obediência ao superior/a é apenas uma mediação para a “edificação do Corpo de Cristo segundo o desígnio de Deus”. Quando assim vivida maneira, a obediência “longe de diminuir a dignidade da pessoa humana, leva-a à maturidade, aumentando a liberdade dos filhos de Deus” (PC 14).

 O papel do/a superior/a é o de mediador da liberdade de cada religioso/a diante de Deus. Tarefa nada fácil, pois o/a superior/a “deverá dar contas das almas que lhes foram confiadas”. Mais do que mandar, os/as superiores/as devem estar “dóceis à vontade de Deus no cumprimento do seu cargo” e, ao mesmo tempo, exercer “a autoridade em espírito de serviço a favor de seus irmãos, de tal maneira que sejam a expressão da caridade com que Deus os ama” (PC 14).

Nesta compreensão, o papel do/a superior/a não deixa de ser ativo. Pelo contrário, deve ser permanentemente provocador no sentido de convocar cada religioso/a a comprometer-se no projeto de Deus. E a obediência, vivida no espírito de liberdade, deixa de ser uma obediência passiva  para ser uma “obediência ativa e responsável no desempenho das funções e na aceitação das empresas” (PC 14).

João Paulo II, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Vita Consecrata, ao abordar o voto de obediência, reafirma que a “cultura da liberdade é um valor autêntico, ligado intimamente ao respeito da pessoa humana” (VC 91). A verdadeira liberdade, segundo ele, precisa fundamentar-se em dois pilares. Primeiro, seguindo o comportamento do Filho, o/a religioso/a é verdadeiramente livre quando se mantém atento e fiel à vontade do Pai (PC 92). Em segundo lugar, quando a comunidade religiosa “é o lugar privilegiado para discernir e acolher a vontade de Deus e caminhar juntos em união de mente e coração” (PC 92). Desse modo, “na fraternidade animada pelo Espírito Santo, cada qual estabelece com outro um diálogo precioso para descobrir a vontade do Pai, e todos reconhecem em quem preside a expressão da paternidade divina e o exercício da autoridade recebida de Deus ao serviço do discernimento e da comunhão” (PC 92). Conforma-se assim, na sequência do Vaticano II, um modelo trinitário de obediência.

Uma obediência para uma Igreja em saída

A preocupação que guia o itinerário e o magistério do Papa Francisco é eminentemente pastoral. Mais do que preservar o depósito das verdades da fé, ele quer que a alegria do Evangelho chegue a todas as pessoas, principalmente àqueles e àquelas que, no mundo de hoje, sofrem a dor da pobreza e do esquecimento.

O Papa Francisco não elaborou, até o momento, nenhum texto específico sobre a VRC. Por isso, é no conjunto de sua obra e nas esparsas mensagens direcionadas aos religiosos e religiosas que buscamos elementos para tentar compreender o que seria a obediência vivida na perspectiva de uma Igreja em saída.

a) superar a auto-referencialidade

Um primeiro elemento a ser elencado – fundamental na estrutura da obediência – é a decisão de sair de si mesmo e colocar a própria vontade no querer de Deus. Citando o Papa Bento XVI, o Papa Francisco lembra que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (EG 7). Através do encontro com Jesus Cristo “somos resgatados da nossa consciência isolada e da auto-referencialidade” e “permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro” (EG 7).

A auto-referencialidade como o principal obstáculo para a obediência e, nela, a realização da nossa humanidade, é novamente abordado na Evangelii Gaudium quando o Papa fala das tentações dos agentes de pastoral. Entre elas, elenca o “mundanismo espiritual” que consiste em “buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal” (EG 93). A tentação do mundanismo espiritual se apresenta, na realidade da Igreja, de duas formas: o gnosticismo e o pelagianismo. Por caminhos e com expressões diferentes, ambos têm sua raiz no fechamento da pessoa sobre si mesma. Na “fé fechada no subjetivismo” que caracteriza o gnosticismo, “a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos”. Já o neopelagianismo, é o modo “auto-referencial e prometeico de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado” (EG 94).

Em ambas as formas, “este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes, aparentemente opostas, mas com a mesma pretensão de ‘dominar o espaço da Igreja’” (EG 95). A luta pelo poder, para decidir quem comanda, torna-se o único objetivo de quem vive centrado em si mesmo e é incapaz de escutar a voz de Deus.

Na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa dedica um capítulo inteiro (35-62) aos “dois inimigos sutis da santidade”, o gnosticismo e o pelagianismo. Depois de analisar detidamente cada uma das versões modernas destes dois inimigos da santidade, ele afirma que, para encontrar o caminho da santidade, a “primeira coisa é pertencer a Deus”. Ele explica essa afirmação de um modo que, cremos, indica o sentido primordial da obediência na VRC:

Trata-se de nos oferecermos a Ele que nos antecipa, de Lhe oferecermos as nossas capacidades, o nosso esforço, a nossa luta contra o mal e a nossa criatividade, para que o seu dom gratuito cresça e se desenvolva em nós: “por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus” (Rm 12, 1). Aliás, a Igreja sempre ensinou que só a caridade torna possível o crescimento na vida da graça, porque, “se não tiver amor, nada sou” (1 Cor 13, 2). (GE 56).

Na última frase desta afirmação, o Papa chama a atenção para a outra face nefasta da auto-referencialidade: ela torna incapaz de praticar a caridade. Além de fechar a pessoa à voz de Deus, ela também fecha os ouvidos do crente à voz do irmão que sofre. Com efeito, abertura à voz de Deus e abertura à voz do irmão que sofre são os dois lados da mesma disponibilidade à obediência:

Jesus abre uma brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflete em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de Deus. De fato, será com os descartados desta humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, o Senhor plasmará a sua última obra de arte. Pois, o que é que resta? O que é que tem valor na vida? Quais são as riquezas que não desaparecem? Seguramente duas: o Senhor e o próximo. Estas duas riquezas não desaparecem. (GE 61)

Na missa de encerramento do Sínodo para a Pan-Amazônia, o Papa Francisco, de forma forte e clara, lançou uma exortação na mesma direção e que serve como parâmetro para construir uma teologia do voto de obediência. Ele não usa aqui a expressão auto-referencialidade. Usa outra que nos parece ainda mais forte: “a religião do eu”.

Segundo o Papa

a “religião do eu” continua, hipócrita com os seus ritos e as suas “orações”: muitos dos seus praticantes são católicos, confessam-se católicos, mas esqueceram-se de ser cristãos e humanos, esqueceram-se do verdadeiro culto a Deus, que passa sempre pelo amor ao próximo. Até mesmo cristãos que rezam e vão à Missa ao domingo são seguidores desta “religião do eu”. Podemos olhar para dentro de nós e ver se alguém, para nós, é inferior, descartável… mesmo só em palavras. Rezemos pedindo a graça de não nos considerarmos superiores, não nos julgarmos íntegros, nem nos tornarmos cínicos e vilipendiadores. (2019). 

 Escutar a Deus e escutar o irmão pobre e sofredor: é o início da verdadeira obediência capaz de superar o gnosticismo e o pelagianismo.

b) o serviço ao outro como caminho para a felicidade

Escutar a voz do outro é o primeiro passo para a superação da autorreferencialidade. Na sua sequência, está o segundo passo: pôr-se a serviço do outro. O próprio Jesus, no episódio das bodas de Caná, é o modelo da escuta que se transforma em serviço. Diante da necessidade assinalada por Maria – a falta de vinho para que a festa fosse completa – Jesus não se contenta em escutar. Ele se põe a agir e chama aos que estão ao seu redor para, com Ele, encontrar a solução para a necessidade que aflige o casal (FRANCISCO, 2019).

Para o/a religioso/a, colocar-se a serviço do outro é fazer seu o caminho quenótico do Filho de Deus que, para a nossa salvação, assumiu a condição humana:

Jesus não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade do Pai; e isso – disse Ele – era o seu “alimento” (cf. Jo 4, 34). De igual modo, quem segue Jesus, abraça a via da obediência, imitando a “condescendência” do Senhor, abaixando-se e assumindo a vontade do Pai até ao aniquilamento e à humilhação de si mesmo (cf. Flp 2, 7-8). Para um religioso, progredir significa abaixar-se no serviço, isto é, fazer o mesmo caminho de Jesus, que “não considerou como uma usurpação ser igual a Deus” (Flp 2, 6). Abaixar-se, fazendo-se servo; abaixar-se para servir. (FRANCISCO, 2015).

Tal rebaixamento não leva à negação da liberdade. Pelo contrário, leva à realização pessoal e à alegria evangélica do/a religioso/a como “consequência do caminho de abaixamento com Jesus” (FRANCISCO, 2015).

Citando o Documento de Aparecida, o Papa lembra que, “de fato, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais” e que “a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros” (EG 10). Na VRC, tal realização é consequência do voto de obediência pelo qual o/a religioso/a coloca sua vida nas mãos de Deus para servir aos que precisam de vida.

Assim como todo evangelizador, o/a religioso/a que vive o voto de obediência na perspectiva quenótica “não deveria ter constantemente uma cara de funeral” (EG 10). Pelo contrário, será sempre uma pessoa que irradia a alegria de estar na “dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além” (EG 21).

c) entre a observância e a profecia

Na homilia por ocasião do XVIII Dia Mundial da Vida Religiosa, o Papa Francisco chamou a atenção para uma relação muitas vezes tensas, para não dizer difícil, na prática da obediência na VRC. Trata-se da relação entre a observância da lei e o chamado à profecia. Comentando o episódio do Evangelho de Lucas em que Maria e José levam o menino Jesus ao Templo para ser apresentando e, na entrada do Templo, encontram os anciãos Simeão e Ana, o Papa traça um paralelo entre os dois casais. De um lado, os jovens José e Maria que vão ao Templo para cumprir o que estava prescrito pela Lei. Do outro, estão os anciãos Simeão e Ana que irrompem com cânticos proféticos que desestabilizam tanto os que estão no Templo como a José e Maria que vinham apresentar o menino.

Tradicionalmente, a lei é, em todas as sociedades e em todas as religiões, uma instituição conservadora. Ela busca manter a estabilidade e a identidade de uma sociedade. Na VRC, os questionamentos que trazem a instabilidade e o risco, tanto para as instituições como para os indivíduos que dela fazem parte, podem ter duas origens. Uma, a das transformações do mundo e da Igreja que questionam o modo como se viveu e ainda se vive a VRC; outra, a dos/as religiosos/as que, no interior da própria instituição, levantam suas vozes e, com seu exemplo, apontam para novas possibilidades de viver a consagração. Há uma profecia que vem de fora e uma profecia que vem de dentro. Em ambos os casos, elas são vistas como desestabilizadoras e, muitas vezes caladas com o uso da lei.

No comentário, o Papa assinala que tanto o casal jovem, José e Maria, que são movidos pelo desejo de cumprir a Lei, como o casal de idosos, Joaquim e Ana, que é movido pela esperança profética, são movidos pelo Espírito Santo. Conclui o Papa, então, que entre a observância e a profecia, quando vistas sob a perspectiva da ação do Espírito Santo, não há oposição porque todo carisma religioso, na sua origem, nasce do sopro divino que inspirou fundadores e fundadoras. Para além das Constituições, dos Regulamentos, das tradições, há a profecia do Espírito que iniciou no passado um movimento de transformação que perdura até hoje. É falso, então, tentar calar o Espírito que sopra hoje com o argumento da obediência à lei e à autoridade.

Assim expressa o Papa a tensão obediencial entre observância e profecia:

Na vida consagrada vivemos o encontro entre os jovens e os anciãos, entre observância e profecia. Não as vejamos como se fossem duas realidades opostas entre si! Pelo contrário, permitamos que o Espírito Santo anime ambas, e o sinal disto é a alegria: o júbilo de observarmos, de caminharmos numa regra de vida; e a alegria de sermos orientados pelo Espírito Santo, nunca rígidos, jamais fechados, mas sempre abertos à voz de Deus que fala, que abre, que conduz e que nos convida a caminhar rumo ao horizonte. (FRANCISCO, 2014).

Na relação dinâmica entre observância e profecia, a obediência deixa de ser uma forma de anular a criatividade e a iniciativa dos/as religiosos/as e gera as condições para uma vivência criativa e renovadora da obediência. Com efeito, a obediência não apaga a liberdade. Pelo contrário, lhe dá suporte na medida em que estabelece pontos de referências claros para os novos caminhos a abrir.

Mais do que para o/a religioso/a, na relação entre observância e profecia, o peso recai sobre o/a superior/a que tem a responsabilidade de discernir entre o verdadeiro espírito profético. Por um lado, ele “deve aceitar a liberdade incondicional da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas” (EG 22). Por outro, precisa estar atento/a para que o/a irmão/a não se deixe levar pelos ventos da novidade que chegam e logo passam sem deixar nada de consistente. Cabe a ele, na função de mandar, ser obediente à voz de Deus e à voz da realidade. Nisto, como dizia a Perfecta Caritatis, está jogando a salvação do/a irmão/ e de si mesmo.

d) itinerante e missionária

Estar com jesus é pôr-se sempre de novo a caminho. Ele não tinha lugar fixo onde repousar a cabeça (Mt 8,20). Diante da proposta de Pedro para construir uma tenda no alto do monte, Jesus os convida a descer e peregrinar em busca dos que ainda precisam da Boa Nova (Mt 17,9).

A intimidade com Jesus buscada por toda pessoa consagrada, é uma “intimidade itinerante e a comunhão [com Jesus] reveste essencialmente a forma de comunhão missionário” (EG 23). Um religioso que vive a obediência que tem seu fundamento no encontro e na escuta atenta do chamado de Deus, não pode apegar-se a lugares, pessoas, coisas, cargos… Deve imitar a Jesus e estar sempre disposto a partir para novas realidades, novos encontros, ao desapego constante, a novos serviços.

Agarrar-se à estabilidade e às seguranças que ela propicia é, no dizer do Papa Francisco, um “relativismo prático” muito mais perigoso do que o relativismo doutrinal pois “tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de vida concreta” (EG 80), no nosso caso, a VRC.

O relativismo prático que nasce da negação da itinerância consiste em “agir como se Deus não existisse, decidir como se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não existissem, trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio não existissem” (EG 80). Isso pode acontecer com qualquer agente de pastoral. Mas é muito mais perigoso para os/as religiosos/as e religiosas que puseram suas vidas totalmente a serviço do Reino e que são tentados a “cair num estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças econômicas ou a espaços de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de dar a vida pelos outros na missão” (EG 80).

O único antídoto para tal veneno, é a obediência à voz de Deus e à voz dos pobres e que não se apague em nós o entusiasmo missionário (EG 80).

Por uma obediência sinodal

Entre as muitas mudanças introduzidas pelo Papa Francisco na Igreja, ganha destaque a da forma de governar. Podemos, sem dúvidas, afirmar que ele fez uma brusca transição, por isso nem sempre compreendida e até rejeitada, de uma forma monárquica a uma forma sinodal do exercício do poder.

O primeiro exemplo dessa proposta foi a efetivação, pelo Papa Francisco, já no início de seu pontificado, do Conselho de Cardeais para “ajudar no governo da Igreja Universal” (FRANCISCO, 2013). Na sequência, vieram os vários sínodos que, mais do que eventos, se tornaram caminhos de escuta das muitas vozes que representam a policromia da catolicidade romana. Para o Papa Francisco, tão importante quanto Assembleia Sinodal, é o caminho percorrido para chegar até ela. Caminho que nem sempre necessita terminar com uma intervenção magisterial, mas que permanece aberto para que, toda a comunidade eclesial continue a identificar, nas diferentes realidades em que lhe cabe viver, qual é a vontade de Deus (AL 1-4). O Sínodo sobre a família foi, com certeza, tanto em seu processo como em suas duas assembleias, foi um tenso exercício da escuta, da autoridade e da obediência que não foi compreendido por muitos. Com efeito, houve aqueles que, não entendendo o novo modo de exercício da autoridade, lançaram dúvidas não apenas sobre a autoridade da Assembleia Sinodal, mas sobre a autoridade do próprio Papa Francisco (MÜLLER, 2018). De fato, para quem está acostumada à mentalidade monárquica, é difícil compreender e reconhecer a forma sinodal do exercício do poder.

Com a Constituição Apostólica Episcopalis Communio o Papa Francisco aprofunda e consolida a prática Sinodal instaurada pelo Vaticano II. A sustentação teológica para tal mudança é buscada nos documentos do Vaticano II e na compreensão nele expressa da relação entre a autoridade dos bispos e a obediência dos fieis:

O Bispo é, simultaneamente, mestre e discípulo. É mestre quando, dotado duma assistência especial do Espírito Santo, anuncia aos fiéis a Palavra de verdade em nome de Cristo cabeça e pastor. Mas é também discípulo, quando ele, sabendo que o Espírito é concedido a cada batizado, se coloca à escuta da voz de Cristo que fala através de todo o Povo de Deus, tornando-o “infalível in credendo”. Com efeito, “a totalidade dos fiéis, que receberam a unção do Santo (cf. 1 Jo 2, 20.27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do Povo todo, quando este ‘desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis’, manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes” (LG 12). (EC 5).

Na Evangelii Gaudium, o Papa, de uma forma figurativa muito interessante, havia destacado os três modos de o bispo relacionar-se com o seu rebanho:

...às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e, em certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas.(EG 31. Grifos nossos).

Muitas vezes, como afirma o Papa, o bispo exerce sua autoridade quando anda no meio e se deixa guiar pelo povo. Para que essa condução do bispo pelo povo se torne efetiva, ele “deverá estimular e procurar o amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canônicoe de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo.

Nas disposições concretas para as futuras assembleias sinodais, a Episcopalis Communio prevê a possibilidade de o Papa delegar à Assembleia a aprovação do Documento Final sem que para isso necessite da posterior aprovação papal tornando-se o documento aprovado pelos padres sinodais, ipso facto, Magistério ordinário do sucessor de Pedro (Art. 18,§2).

O Sínodo para a Pan-Amazônia foi o primeiro a ser realizado dentro das novas regras sinodais. Foi uma consulta ampla como nunca antes outra realizada. Milhares de pessoas e instituições, em todas as realidades da vasta Amazônia, foram ouvidas e puderam dar sua contribuição. E, como não podia deixar de ser, o processo refletiu no Documento Final. Entre as cinco conversões propostas, a quinta, é o chamado à conversão sinodal de toda a Igreja.

Fazendo memória da prática da Igreja primitiva e os documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (AMAZÔNIA…, 87), a Assembleia afirma que “a sinodalidade é uma dimensão constitutiva da Igreja” e que, para torná-la concreta, “é necessário fortalecer uma cultura de diálogo, de escuta recíproca, de discernimento espiritual, de consenso e comunhão para encontrar espaços e caminhos de decisão conjunta e responder aos desafios pastorais” (AMAZÔNIA…, 88).

Para os padres sinodais, “a vida consagrada, os leigos e entre eles as mulheres, são os protagonistas antigos e sempre novos que nos chamam a esta conversão” (AMAZÔNIA…, 86).

Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia” o Papa ratifica (QA 2) e expressa seu desejo “que toda a Igreja se deixe enriquecer e interpelar por este trabalho, que os pastores, os consagrados, as consagradas e os fiéis-leigos da Amazônia se empenhem na sua aplicação e que, de alguma forma, possa inspirar todas as pessoas de boa vontade” (QA 4).

Para os religiosos/as que buscam viver o voto de obediência no espírito da Igreja em saída missionária, a consciência da sinodalidade que se fundamenta no único batismo que todos/as recebemos e nos mesmos votos que todos/as professamos, é um desafio que merece ser concretizado em instâncias sinodais de discernimento e decisão que nos conduzam a vivenciar a palavra de Deus que se faz ouvir nas diferentes realidades que nos cabe viver.

Conclusão

Situações sociais e eclesiais novas exigem a reelaboração de velhos conceitos e de velhas práticas. Tais mudanças nem sempre são fáceis. E são especialmente difíceis quando se dão dentro de mudanças que não são pontuais, mas estruturais. No caso da Igreja e, nela da VRC, estamos ainda vivendo o tenso “conflito de interpretações” do Concílio Vaticano II (CODINA, 2012). Diante do conflito, alguns, na insegurança por ele gerado, buscam a segurança da volta ao passado da obediência cega que coloca toda a responsabilidade nos ombros do/a superior/a. Outros/as, num sentido oposto, mas igualmente equivocado, assumem indiscriminadamente o conceito moderno de liberdade e deixam-se levar pela “cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjetiva própria” que dificulta ao religioso/a “inserir-se num projeto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais” (EG 61).

Com o Papa Francisco, cremos que é necessário retomar a Eclesiologia do Vaticano II e, nela, a Teologia da Vida Religiosa e inseri-la na proposta de uma Igreja em saída missionária para colocar-se a serviço dos empobrecidos e esquecidos da sociedade. Só assim o/a religioso/a obedecerá a Deus, a quem realmente interessa obedecer.

Os/as superiores/as e a comunidade com suas instâncias sinodais, são chamados a ser instrumentos par que essa obediência seja cada vez mais fiel ao chamado inicial para a consagração e possa conduzir a cada pessoa que fez essa opção de vida à verdadeira liberdade que é a de colocar-se integralmente nas mãos de Deus para, assim como Jesus Cristo, fazer a Sua vontade.

Referências

AMAZÔNIA: Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Documento Final. Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica. Roma, 26 de outubro de 2019. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/rc_synod_doc_20191026_sinodo-amazzonia_po.html Acesso em: 24 de abril de 2020.

CODINA, Victor. El Vaticano II en medio del conflicto de interpretaciones. Pistis e práxis. Curitiba, v. 4, n. 2, p. 504-515, julho/dezembro 2012.

FRANCISCO, Papa. Amoris Laetitia. Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre o Amor na Família. São Paulo, Paulinas, 2016.

FRANCISCO, Papa. Episcopalis Communio. Constituição Apostólica sobre o Sínodo dos Bispos. Roma, 15 de setembro de 2018. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-francesco_costituzione-ap_20180915_episcopalis-communio.html Acesso em: 24 de abril de 2020.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.

FRANCISCO, Papa. Gaudete et Exsultate. Exortação Apostólica sobre a santidade no mundo atual. São Paulo, Paulinas, 2018.

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[1]Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Doutor em Teologia (EST – São Leopoldo, RS). Professor na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF, Porto Alegre).

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O presente texto foi publicado na Revista Convergência.