Arquivo mensal: março 2023

Ano passado eu morri…

…mas esse ano eu não morro! Assim cantava Belchior na música “Sujeito de Sorte”, gravada primeiro por ele, na sequência por muitos intérpretes e ultimamente tornada outra vez famosa na voz de Emicida que a regravou pensando no povo negro do Brasil – especialmente os mais jovens – que estão sempre sob o risco de serem mortos pela polícia pelo simples fato de serem negros e, em sua maioria, pobres.

A música me veio à mente ao pensar no Evangelho do Quinto Domingo de Quaresma em que Jesus faz seu amigo Lázaro voltar à vida. Lázaro, assim como o compositor a que nos referimos, é um “sujeito de sorte”. Ele teve a sorte de ser amigo de Jesus e por isso, depois de morto, voltar à vida. O Evangelho de João não diz de que Lázaro morreu. Provavelmente por alguma “doença de pobre” tão comum na Palestina naquela época: tuberculose, hanseníase, esquistossomose, malária, helmintíase, tracoma… Ou então foi vítima do trabalho exaustivo e da fome, da violência da polícia do Templo ou das forças de ocupação romana. As mesmas causas que provocam, a cada ano, milhões de mortes não só nos países empobrecidos, mas também nos países ricos.

Lázaro foi um sujeito de sorte. Jesus, avisado por Marta e Maria, veio e mandou que tirassem a pedra que tapava o sepulcro e ordenou que Lázaro viesse para fora. Mas Lázaro ainda estava amarrado pelos laços da morte e não podia caminhar. Ele estava vivo, mas ainda preso pela morte. Como diz Belchior, ele ainda sofria o sofrimento do ano passado. A morte do passado ainda dominava o presente daquele que tinha voltado à vida. Era preciso não apenas fazê-lo reviver, mas livrá-lo do que tinha causado sua morte para que não voltasse a morrer. Imagino que, se Lázaro conhecesse Belchior ou Emicida, ele também cantaria com Jesus: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” porque fui libertado daquilo que causou a morte “e assim já não posso sofrer no ano passado”.

A morte pode ser, no seu acontecer, um evento pontual. Mas, na maioria dos casos, tem causas estruturais que enraízam no passado de nossa sociedade e se expressam em nossa história familiar e pessoal. Há laços mortais que perpassam gerações e gerações e continuam matando hoje como matavam no tempo de Jesus. Laços fatais que mataram nossos pais e que continuarão a matar nossos filhos e netos se nós não tivermos a coragem de tirar as pedras, cortar as cortas da morte e queimá-las para que não voltem a amarrar a ninguém mais.

Não tenho a certeza, como a tinha o cantor nordestino, de “Deus é brasileiro”. Mesmo assim, com ele compartilho a constante sensação de que Ele “anda sempre a meu lado” e, na Sua Páscoa, tivemos removida a pedra que nos matava e desatados os laços que nos impediam de caminhar.

Por isso olho sempre e cada vez para diante na certeza de que, se no ano passado quase morremos, esse ano e no futuro, temos o compromisso de deixar que ninguém morra.

A pior cegueira.

O pior cego não é aquele que não vê. Também não é aquele que não quer ver. O pior cego é aquele que não quer que os outros vejam o que ele vê. Sim! Essa é a conclusão do longo diálogo entre Jesus e os fariseus no episódio do Evangelho de João do Quarto Domingo de Quaresma.

Jesus cura um cego e os fariseus, questionados em seu senhorio religioso, querem convencer o curado e seus familiares de que o fato de o rapaz agora enxergar é algo pecaminoso diante de Deus. Os fariseus não se importam com a mudança radical na vida daquela pessoa que passou da cegueira à visão perfeita e das consequências positivas que isso tem na vida de seus familiares.

A preocupação dos senhores da lei é deslegitimar a ação de Jesus que colocava em crise seu domínio religioso sobre a comunidade judaica. Para isso, eles tentam ocultar a verdade que salta aos olhos: Jesus curou o cego! E se a vida do jovem mudou para melhor, é obra de Deus. Essa é a lógica da tradição judaica. Quem quer a cegueira é o diabo e seus sequazes. Se fosse obra do diabo, o jovem continuaria dependendo em tudo de seus pais.

Tão óbvio que somos tentados a pensar que isso é coisa de um passado remoto. Ledo engano! A situação é muito mais atual do que imaginamos. Talvez nunca antes na história da humanidade houve tantos videntes tentando impedir os cegos de verem. Talvez nunca antes a mentira foi utilizada tão amplamente como estratégia política para criar cegos e convencê-los de que a melhor condição par eles é a de não ver o que na verdade acontece ao seu redor.

Apenas a título de exemplo, um ex-presidente norte-americano dizia que ele não mentia, mas que apenas apresentava uma “verdade alternativa”. Um ex-presidente brasileiro, emulando seu tutor do norte, afirmava que nunca mentia, mas que apenas dizia uma verdade que os outros não reconheciam como tal. E os dois fizeram multidões se negarem a tomar vacinais e a devorar cloroquina e primaquina para combater a Covid-19. E o pior da história é que milhões de pessoas os seguiram e milhares morreram por se negarem a aceitar o que a ciência indicava e insistirem com os tratamentos inócuos recomendados pelos cegos que sabiam que não estavam vendo e queriam manter seus seguidores na escuridão para que não se dessem conta do precipício para o qual estavam sendo conduzidos.

Não querer ver é um modo terrível de conviver com a cegueira. Até aceitável em certos casos. Mas não recomendável como regra geral. Não querer que os outros vejam é uma opção satânica diante da cegueira de outrem. A primeira pode se dar por ignorância ou por acomodação. A segunda, por maldade ou ganância. Para a primeira pode haver perdão. Para a segunda, o fogo do inferno é a única solução.

Por que falas com ela?

Acabamos de celebrar o Dia Internacional da Mulher. Uma data para comemorar as lutas e conquistas e para sonhar e abrir caminhos na construção de sociedades em que o machismo e o patriarcado se tornam apenas tristes lembranças exibidas em museus. Estamos longe ainda desta utopia. Mas não podemos deixar de caminhar em direção à igualdade de gênero e a novas relações onde as diferenças não sejam oposição, mas feliz diversidade e complementariedade.

O dia Internacional da Mulher faz lembrar o encontro de Jesus com a samaritana narrado no Evangelho de João e lido na liturgia do Terceiro Domingo da Quaresma. Uma acena tão forte que ultrapassa a liturgia e faz parte do imaginário popular cristão. Há muitos detalhes na narrativa. Atenho-me aqui apenas a um. É a pergunta que os discípulos, ausentes no momento em que Jesus encontra a mulher na beira do poço, não fazem ao regressar da cidade e ver o nazareno e a samaritana a conversar. É um detalhe curioso e, talvez, o mais interessante da narrativa. Como o mostra o evangelista com sua fineza estilística habitual, um judeu normalmente não admitiria jamais que um homem, ainda mais um mestre, falasse com uma mulher em público e – horror dos horrores! – com uma mulher estrangeira e de má fama.

Na pergunta, não feita pelos discípulos, mas que normalmente seria feita por um “homem de bem” judeu, está embutido todo um leque de preconceitos. Preconceitos étnicos, culturais, religiosos, de gênero. Preconceitos que nasciam do medo do outro, do diferente e, ao mesmo tento, ajudavam a alimentar e aumentar esse medo. Ao não fazer a tradicional pergunta, os discípulos demonstram já estar a caminho da superação desse medo.

A narrativa mostra um Jesus sem medo de dialogar com a mulher. E mais: ele quer beber do poço da mulher. Não apenas da água do poço cavado por Jacó. Mas do poço da tradição samaritana, da sabedoria samaritana, da experiência de Deus no monte Garizim, do modo daquela mulher sentir e expressar sua fé em Deus. Por sua vez, ela tampouco demonstra qualquer temor em dialogar com Jesus. Não se assusta com aquele galileu que chega e puxa conversa como nenhum outro o faria. Não tem medo da tradição judaica, da sabedoria judaica, da experiência de Deus no monte Sion. Ela está disposta a beber do poço onde Jesus bebe.

A mulher pede para beber a água da vida de Jesus. Jesus aceita beber da água do poço da Samaritana. Tanto ele como ela sabem e proclamam que Deus é espírito e é verdade e Ele se manifesta não apenas no poço com o qual cada um deles está habituado. Eles sabem que Deus está presente e se expressa em todas as profundezas da humanidade.

O diálogo de Jesus com a samaritana e o não questionamento dos que seguem a Jesus, faz-me pensar nas razões que ainda hoje levam muitos dos que se dizem discípulos e missionários de Jesus a ter medo de falar com elas. Elas, as mulheres. Mulheres que fazem parte da Igreja e também das que dela não participam. Muitos líderes religiosos cristãos, diferentemente de Jesus que fala com as mulheres e dos discípulos que veem com naturalidade a disposição dialogante de Jesus, ainda reagem como os judeus e perguntam: “por que falas com elas?” “Prá que ouvi-las?” “Elas não têm nada a dizer, seu poço não têm profundidade, suas águas não têm vida.” É assim que muitos cristãos ainda expressam seu sentir em relação às mulheres e sequer se dão ao trabalho de ouvi-las. Quanto mais de dialogar com elas.

“Fale com ela!” Falem com elas! Ouçam o que elas têm a dizer! É o que diz Jesus. É o que aprenderam e fizeram os discípulos. Não há razão para ter medo. Não há nada a temer. Suas águas são transparentes e vivas. É só falar e descobrir as riquezas do poço que elas cuidam e a vida generosa e multivariada que brota de suas águas.

Sobre figuras e máscaras

Nós somos nós e nossas mudanças. Sim! Ninguém é o mesmo sempre. Mudamos ao longo da vida. Basta olhar o álbum de fotos que guardamos no fundo do baú. Ou no arquivo digital do computador. Ou na linha do tempo de uma das redes sociais que utilizamos. As mudanças são visíveis, inegáveis, infalíveis.

A mudança mais perceptível é a do aspecto físico. Nosso corpo não é mais o mesmo. Há coisas que fazíamos quando éramos crianças, adolescentes, jovens e que agora, adultos ou velhos, não fazemos mais. Jogar futebol, por exemplo. Ou agachar-se para amarrar os sapatos ou cortas as unhas dos pés. Nossa coluna não se dobra mais como se dobrava antigamente. O corpo não mente. E o espírito também. Nosso modo de nos sentirmos no mundo também muda ao longo do tempo. Também mudam nossas ambições, nossas emoções e nossas relações. As listas de amigos e amigas mudam ao longo do tempo e mudamos nosso lugar na sociedade.

Enfim: mesmo continuando sendo as mesmas pessoas, mudamos nossa figura. Mudamos a forma como nos percebemos a nós mesmos e como percebemos as pessoas e o mundo que nos rodeia. Nós nos transformamos, nos transfiguramos. E não podemos esquecer que a ação do entorno também nos transforma e nos transfigura. E isso não é problema! Mais: é a solução. Quem não se transfigura nem se deixa transfigurar, se desfigura na rigidez de ser sempre o mesmo enquanto o tempo e a vida passam.

Ou se refugia n falsidade da máscara. Mascarar-se é uma opção para não mudar, para não transitar, para não aceitar que o tempo e as circunstâncias passam e nos transformam. A máscara é a opção pelo ridículo do eterno estático. Nada mais triste do que alguém de sessenta anos querendo aparentar trinta. Ou, o inverso, alguém de vinte e poucos anos comportando-se como se tivesse setenta. Ou um pobre querendo aparentar o rico.

Viver mascarado é árduo. Duas caras pesam o dobro que uma. Exige mentir o tempo todo para si e para os outros. Fingir cansa, desgasta, gera insegurança. Difícil também é viver com pessoas mascaradas. Nunca se sabe com quem se está a falar. Se a pessoa real ou a que pretende realizar. Máscaras são teatrais. Ninguém é ator durante toda a vida. Quem usa por opção ou é obrigado a usar por coação tem uma vida sofrida, dividida, partida.

Uma hora a máscara cai. A falsidade se esvai. A pessoa aparece em sua verdade que é a falsidade, o não ser, o aparentar. Não tem mais como fingir. É preciso assumir. Ou sumir para não ser o que se é. Transfigurar, sim! Sempre. Mudar continuamente para ser o que se é deixando o que se foi para assumir o novo que somos sempre chamados a ser.