Arquivo mensal: maio 2022

Édipo: tragédia ou crime?

TRAGÉDIA OU CRIME?

Podia Édipo ter evitado casar-se com sua própria mãe? Sim, se ele soubesse que Jocasta, a viúva de seu pai, o Rei Laio que ele acabara de matar numa encruzilhada do caminho, era aquela que o tinha gerado. Mas ele não sabia nem que aquele desconhecido era seu pai e nem que a rainha viúva de Tebas era sua mãe.

Toda a vida de Édipo, desde o nascimento até o retorno à cidade que o vira nascer , foi conduzida por uma força, já anunciada pelo Oráculo de Delfos, que superava sua capacidade de decisão e que o levou inevitavelmente a matar seu pai e casar-se com sua mãe. Ao dar-se conta que a profecia, com a contribuição involuntária de suas opções, enfim se realizara, Édipo arranca os próprios olhos para não ver a desgraça que sobre ele tinha caído. Jocasta, por sua vez, vai além: tira a própria vida. Um fim trágico para uma vida trágica. É a única decisão livre que eles tomam na vida. Tudo o mais, já estava escrito e, com ou sem a sua colaboração, iria, cedo ou tarde, acontecer.

Dentre todas as tragédias gregas, este gênero literário que surgiu em Atenas no séc. IV a.C., Édipo Rei é uma das mais conhecidas. Freud a utilizou para explicar o desenvolvimento psicossexual dos meninos a partir do relacionamento com a mãe e o pai. É um dos tantos usos que desta tragédia de Sófocles foi feito em nossa cultura ocidental.

Pela capacidade de retratar situações existenciais em que parece que a decisão se nos escapa das mãos e que há uma força superior que conduz nossas vidas, a palavra tragédia entrou na linguagem popular e hoje é utilizada amplamente. É comum nos noticiários, tanto nos meios tradicionais como nos novos meios digitais, que fatos fortes que impactam a sociedade e causam dor sejam descritos como tragédias. Um furacão é uma tragédia; um terremoto é uma tragédia; uma guerra é uma tragédia; o deslizamento de encostas e o soterramento de casas e pessoas é uma tragédia; o transbordamento de um rio é uma tragédia; o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração é uma tragédia; a invasão de uma favela pela polícia e a execução de dezenas de pessoas é uma tragédia; o assassinato de um homem doente por três policiais em uma câmera de gás improvisada em uma viatura é uma tragédia; um jovem armado que invade uma escola e mata dezenas de crianças e suas professoras e uma tragédia; a seca que leva à destruição das plantações e à falta de água nas cidades é uma tragédia; a mãe que atira o filho do décimo andar é uma tragédia; o ex-companheiro que assassina brutalmente a mulher que ele espancava e não quer mais conviver com ele é uma tragédia; a fome de milhões de pessoas é uma tragédia… Tragédias, tragédias, tragédias!

Será que tudo isso são tragédias? Na sua origem grega, tragédia é aquilo que não pode ser evitado pois sua força é superior à capacidade humana de escolha. Terremotos, furacões, cheias de rios, secas… são fenômenos naturais que sempre aconteceram. E continuarão acontecendo. Mas todos sabemos que seus efeitos podem ser minimizados ou até anulados. Um terremoto de sete graus no Japão não provoca nenhuma morte. No Haiti, um sismo da mesma magnitude provocou mais de 200.000 mortos. A força da natureza é superior à nossa. Mas podemos aprender a conviver com ela.

Já as ações humanas deliberadas que resultam na morte de dezenas, centenas, milhares de pessoas, essas não são tragédias. Há que se chamá-las pelo nome que lhe é devido. São ações criminosas que poderiam ser evitadas e precisam ser punidas.

Édipo e Jocasta, mesmo sabendo que não tinham poder sobre suas vidas, um arrancou os olhos e o outro tirou a própria vida. Auto infligiram-se um castigo por um crime que, sem saber e sem querer, haviam cometido. E os que cometem crimes conscientes das consequências desastrosas, para a natureza e para os humanos, de suas ações, podemos ainda desculpá-los com a escusa da inevitável tragédia? É hora de chamar cada coisa pelo nome. Tragédia é tragédia. Crime é crime.

A morte e o lucro.

Um dia como qualquer outro dia. Mas nem tanto. Um dia diferente. Um dia estranho. Um dia macabro. Macabro e normal. Tão normal que breve dele esqueceremos. Por isso temos que falar agora antes que olvidemos.

Um dia com muitos mortos. Mais que mortos: assassinatos. Em massa. Coletivos. Brutais. Oficiais. Por balas letais. 24 de maio de 2022. Não foi na Ucrânia. Não foram os mísseis russos nem as armas americanas enviadas agora para serem pagadas depois com o trigo dos campos do Donbass. Afinal, ninguém empresta armas. Armas são para serem vendidas e gerar lucros. A guerra é business, all right!

Não foi na Síria. Nem no Iêmen, Somália, Afeganistão, Congo, Paquistão, Moçambique, Serra Leoa, Camboja, Coreia do Norte ou em qualquer guerra esquecida de um distante país do que antigamente se chamava Terceiro Mundo.

Foi bem aqui. Pertinho de nós. Na nossa vizinhança. Nos três maiores países das Américas. Estados Unidos, México e Brasil. Em cada país, uma história diferente. A mesma dor, a mesma morte, o mesmo sangue quente correndo e pessoas morrendo. Nos Estados Unidos, no Estado do Texas, lugar de gente valente e onde andar armado é um direito de todo cidadão, um jovem de 18 anos executou, com tiros de pistola e fuzil, 19 crianças e duas professoras.

No México, na cidade de Celaya, Estado de Guanajuato, um grupo de homens armados passou de bar em bar atirando em todos os que encontrasse pela frente. Não saiu na imprensa brasileira. Os mortos foram poucos. Apenas onze. Sete mulheres e quatro homens. A polícia investiga.

No Rio de Janeiro, mais um massacre da polícia. Sem inteligência para deter os criminosos quando estão no asfalto, as forças da ordem, desordenadamente, sobem o morro e atira com precisão em alvos equivocados. As balas não são perdidas. São direcionadas. As balas são treinadas. Elas sempre acertam pretos, pobres e periféricos.

No ano que vai em curso, no país da liberdade das armas, a média é de um massacre por dia. As crianças não querem mais ir à escola nos Estados Unidos. A sua, pode ser a próxima. Em Guanajuato, nos bares, a música segue. Os mariachis continuam cantando os narcocorridos que embalam os sonhos de ir para o norte. Para quebrar a monotonia, uma cumbia lembra de onde vem o pó que segue para as narinas do império. O sangue dos mexicanos é o combustível que faz a loucura americana girar. No Complexo da Penha, as pessoas não podem não sair de casa. Tem que trabalhar, trazer o pão nosso de cada dia para o comer dos filhos. Mesmo com dor, com medo de ser o próximo, com o pavor de morrer e não saber o porquê.

Na outra página do jornal, o outro lado da notícia. Nos últimos vinte anos, a produção de armas para uso de civis, triplicou nos Estados Unidos. Em 2019, último ano do qual o governo norte-americano disponibilizou dados, 11 milhões de armas de fogo para uso de civis foram produzidas naquele país. Somadas aos 7 milhões de armas importadas, um total de 18 milhões de novas armas foram vendidas no ano de 2019 naquele país.

No Brasil, assistimos a uma semelhante escalada de produção e venda de instrumento de morte. Com pouco ou nenhum controle. E estimulada pelos atuais governantes. Tudo fica claro quando vemos que, nas eleições de 2018, pessoas ligadas a empresas fabricantes de armas estiveram entre os maiores doadores de campanhas eleitorais.

A realidade é cruel. Nos Estados Unidos, no México, no Brasil. E em muitos outros lugares. Só não a sente quem não se importa com os mortos porque os que jazem na rua não são dos seus. Mas nada acontece por acaso. Enquanto uns contam os mortos, outros contam os lucros. É a indústria da morte. Altamente lucrativa. Altamente nociva. É a civilização ocidental resumida ao lucro do capital.

Recuerdos de 1986.

Os amigos e as amigas que têm a paciência de ler estas letras devem estar sorrindo com o canto da boca só com o título deste texto. E imaginando minha idade, claro! Sem problemas. Já passei dos cinquenta e me abeiro dos sessenta. Falta pouco. É uma bela sensação, podem crer. Tem suas agruras, mas também suas gostosuras.

Quem compartilha comigo a faixa de idade dos acima do meio século, lembra que naquele memorável ano de 1986 muitas coisas importantes aconteceram no Brasil. A maior de todas, o Plano Cruzado para a estabilização da economia. Foi todo um fenômeno! De um dia para outro a inflação acabou, os preços estabilizaram, as pessoas puderam voltar a planejar seus ganhos e gastos. Quem não lembra dos “Fiscais do Sarney” fechando supermercados e dando voz de prisão a seus donos? O YouTube guarda vídeos interessantíssimos deste período.

Mas claro, era um plano artificial. E, artificialmente foi mantido até as eleições gerais de 15 de novembro. E, como não poderia deixar de ser, em meio a toda aquela euforia, o PMDB, partido no governo, teve uma vitória esmagadora elegendo 22 dos 23 governadores, 260 dos 487 deputados federais e 38 dos 49 senadores. Os partidos herdeiros da ditadura – PFL e PDS – ficaram em segundo e terceiro lugar. Na sequência, o PTB de Brizola, o PTB e o PT que fez apenas 16 deputados federais e nenhum senador.

Os deputados e senadores eleitos tinham também a missão de elaborar a nova Constituição Federal que resultou no texto de 1988 que ainda hoje vige.

Foi uma eleição importante. E complicada. Eram sete votos: dois senadores, um deputado federal, outro estadual, governador, prefeito e vereador. Tanto papel que às vezes ficávamos perdidos. E mais as confusões provocadas pelos fiscais que, na verdade, agiam como cabos eleitorais querendo, em alguns casos, votar no lugar dos eleitores que eles traziam em seus carros ou charretes. Não havia urna eletrônica, é bom lembrar. Era papel e uma sacola de lona verde.

E eu, estreando meu título eleitoral, fui nomeado Presidente da Mesa em uma cidade na qual passara a morar há apenas alguns meses. Era a Mesa com o maior número de eleitores inscritos do Capão do Leão. Muitos sequer imaginam onde fica Capão do Leão. É ao lado de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul. O município havia sido recém-criado e a política local era dominada por duas oligarquias que disputavam o poder com todas as armas à disposição. E a afirmação não é apenas uma figura de retórica. Imaginem vocês a tensão.

Foi uma votação dura que conseguimos levar a bom termo. E foi uma eleição importante pois era o início do fim da ditadura. E a vitória do PMDB, se teve o Plano Cruzado como grande motivador, foi também alavancada pelo desejo da população em deixar para traz o regime militar e as trágicas sequelas que deixou na sociedade brasileira.

Estamos em 2022. Vinte e dos anos se passaram. E estamos de novo caminhando para eleições. Desta vez mais simples. Elegeremos apenas o Presidente, um Senador para cada estado, o Governador, os Deputados Federais e os Deputados Estaduais. Cinco votos eletrônicos. Tecnicamente fácil. Mas politicamente desafiadora. Temos outra vez que deixar para traz um governo assumidamente que tentou a volta ao que éramos antes de 1986: um país autoritário e corrupto onde as riquezas nacionais eram entregues às empresas estrangeiras e os lucros acumulados por uma oligarquia mesquinha. Mais do que por este ou aquele candidato, é preciso votar, outra vez, pela democracia. É o que está em questão nestas eleições.

Ah! Em 1986 a Copa do Mundo foi no México e a Argentina, com o genial Maradona e sua “Mano de Dios”, levaram a taça. Quem será o campeão este ano?

Tempos de quebrar a canga.

A profecia sempre se manifesta em tempos difíceis. Não é fácil ser profeta. Há um alto preço a pagar. Às vezes com a própria vida. Profetas antigos e recentes tiveram seu sangue derramado por dizer e testemunhar a verdade. Dietrich Bonhoeffer, Mahatama Gandhi, Martin Luther King, Chico Mendes, Padre Rutílio Grande, Monsenhor Oscar Romero, as irmãs Adelaide Molinari e Dorothy Stang são alguns exemplos de nossos dias. Outros, como Nelson Mandela, não perderam a vida, mas amargaram anos e anos de prisão até que a verdade os libertasse.

A razão da perseguição aos profetas e profetisas é que eles e elas ousam dizer a verdade que muitos gostariam de dizer e não têm coragem. Verdades que, normalmente, incomodam aos poderosos de seu tempo. Em alguns casos, verdades que também incomodam aos amigos e companheiros de dores e sofrimentos. A verdade que precisa ser dita e ninguém quer dizer, normalmente, é inconveniente.

Lembro do profeta Jeremias. Viveu em Jerusalém no final do séc. VII e início do séc. VI a.C. O Reino de Judá havia sido dominado pelos babilônicos. Jerusalém e seu templo foram saqueados. A elite judaica desterrada para a sede do grande império. Os que ficaram na terra, a cada ano, tinham que pagar pesados tributos para não serem deportados também.

A raiva e o desejo de revolta grassavam entre o povo. Jeremias faz uma canga para si, colocou-a no pescoço e desfilou por Jerusalém. Fez outras cangas e as enviou para os reis da região que também haviam sido dominados pelos babilônicos com a mensagem de que, por enquanto, era preciso suportar a canga, mas que, em breve, viria o tempo de quebrá-la e recuperar a liberdade. A polêmica se instaurou. Uns aceitaram a palavra do profeta. Outros a rejeitaram e quebraram a canga. Não é fácil discernir caminhos em tempos conturbados.

No dia de ontem, cinco de maio, o bispo de Itacoatiara, no Amazonas, Dom José Jonilton Lisboa de Oliveira, publicou um decreto proibindo, por tempo indeterminado, a todas as instituições diocesanas, receber doações de políticos, madeireiros, empresas de mineração e de exploração de petróleo e gás. A justificativa é de que essas pessoas e empresas são as causantes do desmatamento, da expulsão dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores de suas terras e que isso contradiz as orientações do Papa Francisco, a Doutrina da Igreja e a Palavra de Deus.

Dom José Jonilton tirou a canga do pescoço da Igreja de Itacoatiara. Um gesto profético que, esperamos, seja secundado por todas as dioceses da Amazônia e de todo o Brasil. A canga no pescoço dos pobres, hoje, já não é feita de madeira ou de ferro como no tempo de Jeremias. Ela é feita do dinheiro que cala e prende aqueles que deveriam gritar a justiça e libertar os pobres.

Que acontecerá com Dom Jonilton? Que passará com a Igreja de Itacoatiara? Tempos difíceis para eles se anunciam. Receberá muitas críticas dos poderosos de sua região. Calúnias e difamações serão levantadas contra ele. Até sua vida pode ser colocada em perigo. E isso não só de fora. Até de dentro da Igreja será questionada sua decisão. Como no tempo de Jeremias, falsos profetas também hoje abundam.

Mas, com certeza, não faltará a solidariedade, inclusive econômica, de cada um e cada uma que se sentem comprometidos com “uma Igreja pobre e para os pobres”, como o desejava o saudoso Papa João XXIII e o tem testemunhado o Papa Francisco. Uma coisa é certa: o vento da profecia voltou a soprar na Igreja do Brasil.