Arquivo mensal: abril 2022

Adivinha quem vem para jantar?

O ano é 1924. Dia 4 de maio. O Cardeal do Rio de Janeiro, Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, ou, simplesmente, Cardeal Arcoverde, completa 50 anos de ordenação sacerdotal. Bodas de Ouro. Um grande jantar é preparado. Uma festa original. Nunca havia acontecido antes no Brasil. Não pelas comidas e pompas. Mas pelos convivas. Algo inédito na história republicana. O Presidente da República, Artur Bernardes e todo o seu ministério foram convidados. Compareceram também diplomatas, políticos, militares e o entourage do Cardeal. Todos foram saudados no discurso pelo bispo de Diamantina Dom Joaquim Silvério de Souza.

O jantar deu o que falar. Tanto pelo lado católico como pelos republicanos. Afinal, há pouco mais de trinta anos, Igreja e Estado, no Brasil imperial, eram uma só e mesma coisa. Com a República, houve a separação, querida pelos republicanos e odiada pelos eclesiásticos. Foram trinta e cinco anos de guerra entre batinas e fardas. Sim. A Primeira República, mesmo com presidentes civis, nunca deixou de ser tutelada pelos militares de formação positivista, antirreligiosos e anticlericais que viam nos bispos, padres, religiosos e religiosas, os agentes inimigos que poderiam trazer de volta a expurgada monarquia. E há de reconhecer que eles não deixavam de ter razão.

A atitude do Cardeal Arcoverde e a afirmativa aceitação por parte de Artur Bernardes indicavam os novos tempos e os novos rumos desejados tanto pela Igreja como pelo Estado brasileiro. Não mais conflito. O tempo agora é de aproximação, de cooperação, de estender as mãos para o bem da Nação. O jantar foi um sucesso celebrado, no dia seguinte, em um almoço com a presença de todos os bispos do Brasil.

A nova política de relações entre Igreja e Estado foi consolidada sete anos depois quando, no dia 12 de outubro de 1931, Getúlio Vargas e o Cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra, sentaram lado a lado e conversaram animadamente na inauguração do Cristo Redentor. Getúlio precisava do apoio da Igreja para consolidar seu golpe. E o Cardeal Leme precisava do apoio e do dinheiro do Estado para a retomada católica. Era a reprodução nacional do Tratado de Latrão entre Pio XI e Benito Mussolini. Tanto lá como cá, os representantes eclesiásticos e os civis também compartilhavam visões muito próximas de sociedade e da necessidade de governos fortes para manter a ordem, a paz e o progresso.

No último dia 4 de abril, o mesmo local foi cena de um encontro entre um Presidente e um Cardeal. O atual ocupante do Palácio do Planalto foi ao Cristo Redentor onde foi recebido por Dom Orani Tempesta. O primeiro estava acompanhado por vários Ministros de Estado e pelo Governador do Rio de Janeiro, o cantor católico Claúdio Castro. O Cardeal também foi acompanhado por seu séquito facilmente identificável pelas batinas pretas e colarinhos eclesiásticos. A razão do encontro foi a assinatura de um Acordo de Convivência pelo qual a Arquidiocese do Rio de Janeiro tem livre acesso ao local e volta a participar nas receitas do parque. Um sopro financeiro para os combalidos cofres da igreja carioca.

A imprensa não noticiou se houve, após a cerimônia, um almoço com os convidados. Talvez não. Não sei, mas imagino que não. Afinal, já não estamos no tempo em que o comer junto era a demonstração de empatia e compromisso mútuo. Hoje bastam as fotos e os vídeos postados nas redes sociais. E essas foram abundantes. Além disso, comida, para um dos participantes do evento, é sempre um risco. Ainda mais se for um prato à base de frutos do mar. Pode trancar o intestino e exigir internação. Para os católicos que não estiveram presentes no evento, foi um motivo para um pouco mais de indigestão religiosa. E de indignação e apreensão que nos levam a perguntar sobre os rumos de nossa Igreja no atual momento brasileiro. A hora não é para se pensar em ganhos financeiros imediatos, mas no presente e no futuro da maioria da população que volta a sentir, no seu dia a dia, a miséria e a fome, frutos do desgoverno que aí temos e que usa o discurso e as imagens religiosas para ocultar sua necrofilia idolátrica.

Que o Cristo Redentor nos proteja!

Em tempo: o título desta reflexão faz menção ao filme de Stanley Kramer que, mesmo lançado no distante 1967, vale a pena revisitar.

A parusia e sua paródia – uma meditação sobre o Domingo de Ramos

Páscoa vem chegando. Mesmo em meio à pandemia e à crise econômica, coelhos e chocolates aparecem aqui e ali. Mas não vou falar da páscoa do comércio. Vou falar da Páscoa de Jesus Cristo, a verdadeira, a que ainda não foi sequestrada pelo mercado. A Páscoa da Semana Santa que abre com o Domingo de Ramos. Uma bela festa. A festa da Parusia. Sim. Esse é o verdadeiro nome. Hoje o aportuguesamos. Dizemos “entrada triunfal”. Pois em grego, a língua em que foram escritos os evangelhos, “entrada triunfal” se dizia “parusia”.

Na época, no grego popular, a palavra era usada para designar a chegada do imperador em alguma cidade. Era um evento e tanto. César era considerado um mito, um deus. Nas suas viagens, a divindade o acompanhava e tinha que ser devidamente reverenciada por onde passava. Era anunciado com antemão, a estrada por onde passaria era aplainada, limpa, ornamentada e bem guarnecida para que nenhum perigo pudesse ameaçar sua majestade. Os imperadores romanos, como todos os tiranos, imaginavam que por onde quer que andassem, poderia haver inimigos de tocaia para atacá-los. A tirania é sempre paranoica…

No dia em que o rei se aproximava, todos os homens eram obrigados a postar-se à entrada da cidade para saudar o chegante. As muralhas eram ornadas com panos brancos e, se houvesse, vermelhos, para saudar a divindade viva. E ai daquele que não gritasse vivas ao rei. O grito tinha que ser alegre, caso contrário, a espada ou a lança do soldado fá-lo-ia gritar de dor ou dar seu último grito de agonia. Aplaudir o imperador era uma obrigação, nem que fosse sob coação. Mulheres e crianças ficavam dentro de casa, espiando pelas frestas das janelas para ver o rei ou para ver se seus esposos e filhos tinham sobrevivido à parusia.

Jerusalém, a cidade para a qual Jesus se dirigia, também tinha a sua parusia. Não era a do Imperador Romano. Jerusalém ficava tão longe de Roma que o César a conhecia apenas por sua má fama. Quem fazia sua parusia anual na Cidade Sagrada era Herodes Antipas, alcunhado de “O Pequeno”. Na véspera de cada Páscoa, Herodes, montado em seu cavalo branco, saia da fortaleza de Cesareia e, com sua milícia de legionários, subia a Jerusalém. E, como todo tiranete de quinta categoria, gostava de receber honras semelhantes ao tirano máximo. Ele obrigava a cidade de Jerusalém a preparar-lhe uma entrada triunfal. E os grandes da cidade, para agradar o pequeno ditador, obrigavam todo o povo àquela representação de subserviência. A estrada era enfeitada, as muralhas adornadas e os homens perfilados para serem devidamente humilhados pelos milicianos romanos.

Jesus sabia que isso iria acontecer naqueles dias. Todo judeu sabia. E todo judeu odiava esse dia em que Herodes Antipas entrava em Jerusalém pela porta do Ocidente para dar segurança e tornar a Páscoa impura.

Jesus desobedece. Não vai fazer reverências ao militar romano. Vai ao Monte das Oliveiras e, dali, com seus discípulos, mulheres e crianças, entra na Cidade Santa. Não há panos brancos e vermelhos para saudá-lo. Apenas palmas e flores do campo. Nenhum militar o acompanha. Vai montado num inofensivo jumento. Não entra pela porta principal. Entra pelo Leste, pela porta dos fundos. Para todo judeu, aquilo era claro: Jesus fazia uma paródia informal da parusia oficial. Todos entendem e, entrando na brincadeira, o aclamam como “Rei dos Judeus”. Um rei não como César e seu títere Herodes. Um verdadeiro rei. Um rei como Davi, o libertador.

Os fariseus também entendem e pedem que Jesus mande calar os discípulos e a multidão. Jesus não manda. Deixa que o povo cante, ria, dance. Entra em Jerusalém e a confusão se arma. E a história todos sabemos como terminou… Os poderosos não gostam de paródias. Especialmente quando satirizam seu obsceno poder e expõem o ridículo papel dos testas de ferro que oprimem o povo em nome de interesses alheios.

O humor é perigoso. Ele desmascara o poder. Ao provocar o riso, faz com que caiam as máscaras e as faces se exponham em sua grandeza ou mediocridade. Jesus sabia disso. Hoje também o sabemos. Por isso, mesmo na dor, não podemos deixar de viver com humor. Ele faz parte do dom maior que é o Amor, a cidade onde todos queremos habitar.

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Por menos pedras e menos cruzes.

Fim de semana passada participei, como todos os católicos que tem possibilidade, da celebração dominical. Tempo especial em preparação à Páscoa. A sequência da liturgia quaresma nos convida à revisão de vida e conversão para acolher a Salvação sempre dada por Deus, independentemente de nossa condição pecadora.

As leituras da Palavra de Deus do Quinto Domingo do Tempo da Quaresma têm como tema a misericórdia de Deus. No Evangelho de João, Jesus é colocado diante da situação da mulher que teria sido flagrada em adultério. Todos conhecemos o episódio. Só a mulher é levada até Jesus. O homem que teria cometido adultério com ela é isentado pelas “pessoas de bem” que se julgam cumpridores da Lei. Jesus desarma os moralistas agressores convidando a quem não tivesse pecado a atirar a primeira pedra. E todos se afastam, começando pelos mais velhos. Talvez fossem eles os que tivessem cometido adultério com a mulher. Jesus também não condena a mulher. Ele não veio para condenar, mas para salvar. E o faz com carinho, abaixando-se, colocando-se na mesma condição da mulher. Bem diferente dos homens que, de pé, julgavam a mulher e queriam também julgar a Jesus.

Minha tristeza, na celebração em que participei, foi a de ouvir o presidente, na sua reflexão, colocar-se do lado dos apedrejadores e não do lado da mulher e de Jesus. Durante os doze minutos do sermão, todo o acento foi colocado no “vai e não peques mais”, ressaltando que, de fato, a mulher era pecadora e devia ser condenada e que só a misericórdia de Jesus a salvou. Com o deslocamento do centro de atenção, as pedras voltaram a voar e a misericórdia de Deus desapareceu do horizonte. A insistência nos pecados da mulher foi tanta que a ação libertadora de Jesus foi transformada em um verdadeiro apedrejamento verbal. Uma pena! O legalismo condenado por Jesus parece muitas vezes presidir a leitura que fazemos do Evangelho. Como seria bom colocar-se outra vez na mesma posição de Jesus, sentado, no pó do chão, ao lado das que sofrem. Isso nos faria entender e anunciar.

Escrevo isso pensando na semana litúrgica da qual estamos nos aproximando, a Semana Santa. Passa-me pela cabeça a terrível ideia de que a Paixão e Morte de Cristo na cruz também possa ser interpretada a partir da condenação das autoridades religiosas daquele tempo e de seus gritos de “crucifica-o, crucifica-o”. Meu medo é que apareça alguém pregando que a morte de Jesus, assim como afirmavam seus acusadores, devia mesmo acontecer. Afinal, ele ensinava os pobres, anunciava o Reino de Deus, convivia com pessoas tidas por impuras e indignas da graça de Deus, com hereges e estrangeiros, infringia a Lei e não respeitava as autoridades religiosas. E que os que o mataram, nada mais fizeram que cumprir a lei.

Oxalá que isso não aconteça. Mas tenho medo. E temo. Temo muito. Afinal, estamos vivendo tempos em que a religião da pedra e da cruz parece prevalecer sobre a comunhão do pão e a esperança da ressurreição. Rezemos pela nossa conversão!