Arquivo mensal: novembro 2021

Natal: tempo de alegria

Que o Natal é tempo de alegria, todo mundo sabe. Especialmente o comércio e o turismo que “fazem a festa”. Não a do nascimento do Deus-menino. É a festa do Papai Noel, o maior vendedor de todos os tempos. Um verdadeiro “deus do comércio”. Pensando bem, talvez o velho gordinho seja a versão moderna do deus romano Mercúrio. Apesar das diferenças de peso – Mercúrio é magro e o Papai Noel é gordo – os dois têm várias semelhanças: vestem vermelho, se deslocam voando – um de trenó e outro com asas nos pés – e estão sempre carregando um saco. O de Mercúrio é pequeno, uma simples bolsa amarrada por um cordão e levada nas mãos. O do Papai Noel é grande e levado nas costas pelo idoso. Mercúrio carrega dinheiro. Papai Noel aquilo que o dinheiro pode comprar. Os pais sabem bem disso…

Na verdade, os “presentes” que o dito “bom velhinho” traz não vêm de graça. São cada vez mais caros. Parece que a inflação das terras geladas de onde as renas trazem o trenó é mais alta que a do Posto Ipiranga. E ainda tem os presentes sem graça. Aquelas coisas que ganhamos e não sabemos o que fazer com elas. Ficam entulhando a casa e a gente fica fingindo que gostou apenas para agradar o amigo nada secreto de Natal. Nesta história de presente sem graça, o único que ganha são os comerciantes e os fabricantes de quinquilharias. Mas é o “espírito de Natal”. Não o de Jesus, mas o de Mamom, a versão cananeia de Mercúrio e de Papai Noel.

Mas voltemos ao Natal. O verdadeiro Natal. O do Deus que se faz menino na gruta de Belém, nascido da virgem Maria e de José nos tempos em que Tibério era o Imperador de Roma, Pôncio Pilatos o governador da Judéia, Herodes administrava a Galileia e seu irmão Filipe as regiões da Ituréia e Traconítides e o outro irmão, Lisâneas, governava Abilene. E para não esquecer do poder religioso, Lucas lembra que Anás e Caifás eram os Sumos Sacerdotes de Jerusalém.

É com esta “análise de conjuntura” onde apresenta os poderosos que oprimiam o povo, que o evangelista Lucas inicia sua narrativa da vida de Jesus. Início da Boa Nova que é lido na liturgia do Segundo Domingo do Tempo do Advento. A alegria anunciada por João Batista, o filho de Zacarias e de Isabel. Alegria que não pode ser conquistada com a espada dos poderosos, os incensos do templo e nem comprada com o dinheiro de Mercúrio ou de Mamom e tampouco transportada em um trenó.

A verdadeira alegria é a anunciada por João Batista, o filho do sacerdote que deixou o templo para, qual novo profeta Baruc, anunciar que o reinado de Deus está chegando. Um reinado onde a paz brotará da justiça para com os empobrecidos e a glória de Deus se tornará concreta e real na misericórdia entre os humanos e destes com toda a criação.

Como canta o Salmo 125 nesta mesma liturgia, a verdadeira alegria não é a anunciada pelo “Oh!Oh!Oh” da propaganda da Coca-Cola. A voz que a anuncia é a do Santo que chama os sem teto, os sem trabalho e os sem terra do mundo inteiro para a construção de uma nova sociedade, do Novo Céu e da Nova Terra onde todos serão verdadeiros cidadãos, filhos e filhas de Deus de pleno direito e fato. A alegria do Natal anunciada por João Batista, realizada por Jesus e celebrada no Segundo Domingo do Advento, é a certeza de que “os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria” e que são “bem aventurados os que choram, porque serão consolados”.

Um bom esperançar natalino a cada um e cada uma!

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Natal: o símbolo dá o que pensar.

Na manhã de hoje, 23 de novembro de 2021, um caminhão guindaste rompeu o silêncio da Praça de São Pedro no Vaticano. Retirada de cima de um caminhão, uma árvore de 28 metros foi levantada e fixada na vertical. Ali permanecerá até o dia 9 de janeiro de 1922. O majestoso pinheiro, com em torno de 110 anos de idade, é originário de uma floresta sustentável do Trentino, no Norte da Itália. A agência de notícias do Vaticano diz que a árvore será decorada com ornamentos esféricos de madeira e iluminada com lâmpadas LED de baixo consumo.

Colocar uma “árvore de Natal” na praça de São Pedro é uma prática recente. Tem apenas 40 anos. A primeira foi ali colocada em 1982 quando João Paulo II era o Papa. Desde então, a cada ano, várias regiões da Europa disputam o direito de enviar a sua árvore para o Vaticano.

Ao ler a notícias, várias considerações me vieram à mente. Duas quero partilhá-las com os amigos para que pensemos juntos e juntas. A primeira uma inquietação franciscana tão cara ao Papa Francisco, como ele o demonstra na “Laudato Sì”. É uma preocupação ecológica. Quando Francisco de Assis, em Greccio, celebrou o Natal com a população local, fez vir, junto ao presépio, um boi e um burro. Apenas dois animais. Mas o suficiente para mostrar que a salvação trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo abarca toda a criação. É um símbolo. E São Francisco, antes mesmo que Paul Ricoeur, sabia que os símbolos dão o que pensar.

E aqui eu penso: em tempos de “Laudato Sì”, de aquecimento global, de devastação da Amazônia, de Sínodo para a Amazônia, ainda faz sentido cortar uma árvore de 110 anos para colocá-la na Praça de São Pedro onde permanecerá por algumas semanas e depois… o que será feito com essa vida de 110 anos que foi interrompida apenas para o deleite visual dos que passam por Roma neste tempo de inverno? Milhões de fotos desta árvore circularão pelas redes sociais. Que mensagem elas levam para o mundo?

A segunda preocupação é sobre a relação entre religião e cultura. Todos sabemos que a data do Natal foi uma apropriação cristã da festa pagã do sol invictus, divindade erigida pelo Imperador Aureliano como religião oficial romana no ano de 274d.C.. Ao buscar uma aproximação com o cristianismo, o Imperador Constantino proibiu o culto ao sol invictus e substituiu o festival de 25 de dezembro pela comemoração do nascimento de Jesus Cristo.

O pinheiro é outro exemplo de apropriação de um símbolo pagão pelo cristianismo. Ele era utilizado por várias religiões para representar a presença da divindade. Quando os missionários cristãos penetraram nas regiões ocupadas pelos germânicos e escandinavos, eles assumiram esse símbolo religioso e incorporaram-no à festa natalina. Lutero, em seu intuito de purificar o cristianismo dos símbolos pagãos e sabendo que não podia contrapor-se a essa tradição, insistia em que a árvore deveria ser triangular para representar nela as três pessoas da Santíssima Trindade. Atitude sábia. Não se pode lutar contra a cultura. Pelo contrário. O cristianismo, assim como todas as religiões, sempre se expressa através dos símbolos culturais compreensíveis às pessoas.

E aqui eu me faço uma segunda pergunta: qual o símbolo da cultura de hoje que mais é associado ao Natal? Temo não estar equivocado ao afirmar que a grande maioria das pessoas hoje, quando pensa em Natal, pensa em Papai Noel. Na maioria dos presépios, desde as casas até os centros comerciais, não há lugar para Jesus. Maria e José continuam rodando por aí em busca de um lugar onde o menino poderá nascer. E é muito provável que tenham que, outra vez, buscar uma manjedoura.

Não creio que seja possível evangelizar o Papai Noel. Mais: temo que o Papai Noel já tenha comercializado definitivamente o Menino Jesus. Por isso, minha opção é radical: nada de presentes no Natal. E, para o presépio, nada de árvores. Nem naturais e muito menos as artificias. No máximo, um presépio artesanal, feito com materiais locais e da economia cooperativa e sustentável.

Isso não muda o mundo. Mas é um símbolo. E o símbolo dá o que pensar.

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A república é misógina?

República. Do latim res publica: aquilo que interessa a todos. Substantivo feminino misógino. Não se assuste! O misógino não está no dicionário. Eu acrescentei. Vou tentar explicar.

Desde a sua primeira configuração histórica conhecida, aquilo que hoje chamamos de república, teve horror a mulheres. Em 509 a.C., quando os proprietários de terras romanos expulsaram os reis etruscos e decidiram inventar outra forma de governar seus interesses comuns, as mulheres ficaram de fora. Só os patres famílias eram proprietários. Consequentemente, só eles poderiam ser eleitos para o senado e toda outra e qualquer função pública. E não eram só as mulheres que não participavam da república. Plebeus, pessoas de origem estrangeira e escravizados não participavam das votações.

A república romana nasceu oligárquica. Era de poucos e para poucos. Vale lembrar: nem todo sistema republicano é democrático. Democracia é bem outra coisa. Os atenienses que o digam. Seu sistema de governo decantado em prosa e versa e teorizado por Platão, não era muito diferente da romana. Na sua Politeia, Platão é claro: há três tipos de pessoas: os trabalhadores, os lutadores e os filósofos. A essa pequena elite que pensa racionalmente cabe o governo da cidade. As mulheres, deixa ele bem claro, se deixam levar pelas emoções. Elas não raciocinam. Por isso não podem ser ativas na república. Seu lugar é dentro de casa e submissas ao varão da casa.

Deixando de lado as repúblicas medievais, vamos direto à revolucionária gesta de 1789 que derrubou a monarquia francesa e instalou ali a república que encantou o mundo. Mesmo instituindo uma mulher – Marianne – como seu símbolo, a nova forma de governo não deu voto às mulheres. Na república burguesa, só os proprietários podem votar. E como as mulheres, legalmente, não são proprietárias, não votam. Simples assim! As francesas só teriam o direito a voto reconhecido em 1945.

No Brasil, a implantação da república só aconteceu devido à misoginia dos militares. Sim! Dom Pedro II tinha uma única herdeira legal, a princesa Isabel. Os dois primeiros rebentos masculinos da Imperatriz Leopoldina, faleceram crianças. Restou Isabel e ela queria exercer seu direito. Três vezes o fez interinamente durante as viagens de seu pai. Na última proclamou a Lei Áurea que assustou os fazendeiros do café e tirou o apoio econômico à monarquia. Mas foram os militares que deram o golpe. Na cabeça da intentona, o monarquista Deodoro da Fonseca. Havia muitas razões para os militares implantarem a república. Uns, educados no positivismo, o fizeram por opção ideológica. Outros, machistas, pelo medo de, em breve terem que obedecer às ordens de uma mulher. A república brasileira nasceu misógina.

Na República Velha as mulheres não votavam. Foi em 1932 que as brasileiras conquistaram direito a voto e elegeram suas primeiras representantes. Vieram vereadoras, deputadas, senadoras e governadoras. Mas tardou até 2010 para que uma mulher fosse eleita Presidenta. E aí a história é recente e conhecida. O golpe de 2016 foi um golpe tipicamente republicano: elitista e machista. Todos lembramos os epítetos, gestos e imagens utilizados para desqualificar Dilma Roussef. Total misoginia. Veio o golpe e temos na presidência uma pessoa que despreza as mulheres dizendo que merecem ser estupradas e expõe em público sua intimidade sexual com a esposa. E o sistema republicano não faz nada para impedir tamanha desfaçatez.

Diante da história passada e do presente que vivemos, só me resta concluir: a república, mesmo sendo um substantivo masculino, revela uma realidade misógina. Talvez seria bom os franceses substituírem a Marianne por um Mariano. E lembrar que para todo Deodoro da Fonseca existe um Silveira Martins! Qu’est-ce que vous en pensez?

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