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Capela de São Gotardo – Veranópolis No verso, Frei Louis de La Vernaz, anotou: “Como os coitados dos colonos imitam o gótico!” |
Vanildo Luiz Zugno
O presente trabalho aborda a experiência de organização das “capelas” na região de colonização italiana no Estado do Rio Grande do Sul (Brasil), como um espaço de poder e de protagonismo leigo na Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) que, com a implementação da projeto de romanização, foi extinto e substituído pelo poder e protagonismo clerical.
Nossa investigação se atém ao período de 1874, data da chegada dos primeiros imigrantes italianos ao Estado e 1928 quando, por iniciativa de um grupo de párocos da região de colonização italiana, as capelas são dotadas de um Regimento que lhes tolhe a autonomia e as coloca sob a dependência direta e estrita dos párocos. O texto do “Regimento das Capelas” por nós analisado no artigo, é a principal fonte para entender o processo de des-empoderamento dos leigos pela instituição eclesiástica no período.[1]
O resgate da experiência é relevante no momento em que a ICAR, nos documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano traz à tona a necessidade do “protagonismo leigo” (CELAM, 1992, n. 97;103) e da necessidade dos leigos serem “parte ativa e criativa na elaboração e execução de projetos pastorais a favor da comunidade” (CELAM, 2007, n. 213).
1. A origem das capelas
Por ocasião do estabelecimento dos primeiros imigrantes oriundos do Piemonte, Lombardia e Vêneto na Serra Gaúcha, a presença institucional da Igreja era praticamente nula na região. Cerceada pelas leis do Padroado, a ICAR, mesmo sendo a Igreja oficial do Império brasileiro, não tinha autonomia para criar paróquias para dar atendimento aos novos chegados. Padres jesuítas alemães, estabelecidos nas região de colonização alemã, visitavam esporadicamente os colonos e celebravam os sacramentos.
Pe. Bartolomeu Tiecher, italiano da região de Trento, então sob o domínio austro-húngaro, vem para o Brasil em 1875. No ano de 1876 realizou duas visitas às colônias de Figueira de Melo e Conde d’Eu (atual Garibáldi), Princesa Isabel (atual Bento Gonçalves). No ano de 1877 visitou a Iª e IIª Léguas de Caxias. No mesmo ano é nomeado pároco de Santo Inácio da Feliz onde permaneceu até 1886. De lá visitava regularmente as colônias italianas. (CORREA, 2013, p. 3; COSTA, 1998, p. 180-184).
Em 1877 será estabelecida a Capelania Imperial de Caxias do Sul, sendo capelão o Pe. Antonio Passagi. A paróquia de Caxias do Sul, a primeira na região de colonização italiana só será criada, por lei provincial no ano de 1884, ou seja, dez anos após o início da chegada dos imigrantes italianos. Seu primeiro pároco foi Pe. Augusto Finotti. No mesmo ano de 1884 serão criadas as paróquias de Dona Isabel e Conde d’Eu, na região da serra, e de Silveira Martins, no centro do Estado.[2] Seis anos depois, em 11 de fevereiro de 1890, será a vez da Linha Zamith (atual Montebelo), ser criada Paróquia. (RUBERT, 1998, p. 281-290).
Acostumados a uma vida religiosa e sacramental conforme as orientações do Concílio de Trento, os imigrantes, por iniciativa própria, tentam recriar o mundo religioso com o qual estavam acostumados na Itália.
Como relata Barea (1925, p. 100)[3] ao descrever a chegada dos imigrantes em Bela Vista (atual Nova Bassano?), a atividade religiosa comunitária dos imigrantes italianos começou no âmbito doméstico: “No início os colonos recitavam o rosário e as outras devoções na casa de certo Domenico Lazzaretti. Nos primeiros tempo ali houve uma escola para os filhos dos imigrantes dirigida pelo Sr. Giacinto Cerato.”
Pouco a pouco e à medida em que as condições materiais o permitiam, os colonos começam a construir pequenos oratórios dedicados aos santos de suas localidades de origem e, “nestas miseráveis igrejinhas, todas feitas com tábuas brutas, reuniam-se os colonos nos dias festivos”. (BAREA, 1925, p. 56).
Battistel (1981, p. 39-40) traz o depoimento de Domingos Battistel, da Linha 6ª, Nova Prata, sobre a construção da capela da localidade:
Quando entraram em acordo de fazer a igreja nova, então a sociedade se reuniu. Jacó Nalin doou o terreno, o velho Gotardo doou 4 pinheiros com os quais fizeram as bases da igreja. […] Meu pai, Antônio, deu um pinheiro bem grosso com o qual fizeram ‘scándole’, tabuinhas, para cobrir a igreja. […] Na construção da capela, um entrou com a terra, outro com a madeira, outros com os dias de serviço, com dinheiro… num instante a construíram. Quando apodreceu, fizeram outra…
Mais sóbria, mas também reveladora, é a descrição de Barea (1925, p. 59) em relação à organização das capelas na IIIª Légua de Caxias:
Apenas superadas as dificuldades e os desafios do primeiro momento, os intrépidos colonizados da 3ª Légua de Caxias se reuniram e em poucos dias construíram sua pequena igrejinha com troncos e tábuas cortadas ao meio, na qual todos se reuniam nos dias festivos para as suas devoções e também para escutar a Santíssima Missa, quando tinham a graça de uma visita do Pároco de Feliz ou de Caxias.
Descrição semelhante é feita por Frei Bruno de Gillonnay:
No início da colonização, eram raros ali os ministros de Deus que passavam de vez em quando para batizar, casar, fazer o essencial. Mais tarde, as colônias foram divididas em paróquias, mas paróquias tão grandes que é absolutamente impossível, mesmo ao padre mais zeloso e mais robusto, cumprir completamente todas as funções de seu ministério. […] Essa pobre gente sofria com este estado de privação; e sofriam ainda mais porque no seio de suas florestas, não havia ninguém para consolá-los. Para poder ter algo de culto religioso, eles construíram numerosas capelas. A cada 40 ou 50 casas, acha-se um oratório, o qual muitas vezes faz pensar ao estábulo de Belém.[4]
Como podemos perceber nos relatos, a iniciativa para a organização da capela é dos próprios imigrantes. Para Costa (1988, p. 186), no entanto, Pe. Giovanni Menegotto, vindo ao Brasil em 1877 e tendo-se estabelecido em Dona Isabel para, em 26 de abril de 1884 ser nomeado o primeiro pároco de Garibáldi, teria sido o criador das capelas. Literalmente, afirma Costa: “Pe. Menegotto lança, assim, o modelo de capela, onde se realiza todos os domingos e dias festivos a reunião do povo para a oração comum e o catecismo das crianças…”. (1988, p. 186). No entanto, a descrição da paróquia de Garibaldi feita pelo próprio Pe. Menegotto e utilizada por Costa como suporte para a afirmação, mostra que as capelas já existiam antes da chegada do Pároco. No caso de Garibaldi, eram em torno de 60 capelas de madeira construídas pelos colonos e que já serviam como lugar de oração e catequese.
A antecedência das capelas em relação à presença de sacerdotes também pode ser constatada no relato do Pe. Pietro Colbacchi, scalabriniano que, ao chegar nas linhas 8ª e 10º de Alfredo Chaves (atual Nova Bassano) constata que,
em cada linha, é verdade, já foram construídas capelas suficientes para conter, cada uma delas, 200 pessoas, mas estão completamente desprovidas das alfaias necessárias, até mesmo da mesa, e são tão baixas que, com este calor, durante as celebrações nos parece estar no forno. (Archivio Generale Scalabriniano, apud COSTA, 1988, p. 189).
O mesmo acontece em Encantado quando o Pe. Domenico Vicentini, ao chegar para estabelecer a Missão Scalabriniana, encontra os imigrantes já organizados em capelas. (COSTA, 1998, p. 189).
Frei Robert D’apprieu, um dos primeiros capuchinhos franceses a missionar na região, também relata a antecedência da iniciativa dos colonos em relação à presença do clero:
A maioria dos primeiros imigrantes eram originários da Lombardia e do Vêneto: homens formados para o trabalho, os desafios, a sobriedade. Com eles, sobretudo, haviam trazido a viva fé ancestral. Infelizmente, eles não tinham padres, ou mais frequente do que se poderia desejar, algum mercenário ou aventureiro de costumes duvidosos que passava por lá. Na falta de padres, eles se reuniam pelo menos aos domingos diante de uma cruz rústica ou em alguma miserável capela feita com tábuas rachadas com o machado. Lá, juntos, piedosamente, recitavam o terço, cantavam as ladainhas da Virgem e algum canto da cidade distante. (D’APPRIEU, 1957, s.p.).
Em seu relato da viagem que realizou nos anos de 1883 e 1884 à região de colonização alemã, o jesuíta Pe. Ambrósio Schupp, ao descrever a situação religiosa das colônias italianas que colindavam com as colônias alemãs, afirma que “em Caxias encontram-se muitas capelas; nas duas colônias restantes [Princesa Isabel e Conde d’Eu], só algumas.”[5]
Em alguns casos, não só a construção da capela era de total iniciativa dos leigos, mas ela era realizada contra vontade dos párocos. Um exemplo é apresentado por Frei Bernardin d’Apremont e aconteceu em Nova Trento:
Conheço, de fato, uma capela da paróquia de nova Trento construída contra a proibição formal do vigário. A autoridade diocesana, realmente informada, havia, no início, apoiado a interdição. Mas os interessados, uma vez iniciada a questão, não se deram por vencidos. Cartas, mentiras, intervenção de pessoas influentes, tudo foi posto em movimento. Comissões intermináveis, discursos, etc, de tal forma que as comissões de colonos italianos são o terror do Bispo de Porto alegre, porque todos os meios lhe são bons. Condenados por diversas vezes, a boa gente daquela capela acabou por obter, Deus sabe como, o consentimento do bispo.[6]
O caso citado é um caso extremo, pois a nova capela construída ficava a apenas cem metros de outra capela já existente.[7] Na mesma paróquia de Nova Trento, houve também o caso de uma capela construída por “[…] um andarilho que mendigou com esta finalidade em quase todos os municípios vizinhos”.[8] Apenas algumas famílias da localidade cooperaram na construção que não foi autorizada e nem reconhecida pelos frades capuchinhos que então administravam a paróquia.
Construídas e mantidas pelos habitantes de cada linha, as capelas representava a organização comunitária que buscava solucionar as necessidades religiosas do imigrante abandonado à sua sorte, tanto por parte do governo como da igreja, em meio aos matos e montanhas da serra gaúcha. A originalidade das capelas, no entanto, é que, a partir da necessidade religiosa, conseguiram constituir-se em solução para outros problemas dos imigrantes que ultrapassavam o âmbito religioso. Para o imigrante recém estabelecido, a capela representava também a “responsabilidade comunitária, não só em relação à religião, mas também à educação e à solução de problemas sociais.” (COSTA, 1998, p. 164).
2. A organização das capelas
Por “capela” deve-se entender não apenas o prédio onde os imigrantes e suas famílias se reuniam para rezar. No início, com certeza, o mesmo prédio – normalmente um barracão construído em madeira – servia para todas as atividades comunitárias.
Na medida, porém, em que as comunidades iam melhorando suas condições econômicas, foram sendo edificadas construções para atividades específicas:
- A “capela” propriamente dita, que servia como lugar das orações comunitárias dominicais, novenas, catequese e da celebração da missa e demais sacramentos por ocasião das eventuais visitas de sacerdotes;
- A escola para a educação das crianças;
- A “bodega” ou comércio comunitário, que evitava a necessidade de cada um deslocar-se até a cidade mais próxima, o que implicava em grande dispêndio de tempo. Comprados em quantidade e revendidos a preço de custo, os produtos se tornavam mais baratos para os colonos. Desse modo, a “bodega” exercia uma função econômica importante para os colonos dispersos nas linhas e travessões. O exercício da função de “bodegueiro” era rotativa. Cada membro da comunidade a exercia por um tempo e sem remuneração.
- O salão comunitário onde se realizavam os eventos sociais, especialmente as festas de casamento e as dos padroeiros das comunidades;
- O cemitério, para enterrar os mortos de forma digna e cristã (COSTA, 1998, p. 164).
A acertada descrição da capela na região de colonização italiana, em seu sentido amplo, é a apresentada por Migot:
A igrejinha rural e comunitária denominada CAPELA, foi sempre mais que uma construção destinada ao culto. Foi um centro aglutinador. Expressão de todas as aspirações de um povo. No ambiente da imigração […] constituiu, desde muito cedo, um centro religioso e social incubador de muitos e consistentes valores.[9]
Para animar os diversos âmbitos da vida da capela, surgem quatro lideranças que marcarão a vida das comunidades italianas: o padre-leigo, o professor, o fabriqueiro e o chefe de travessão.
2.1 O padre leigo
A expressão “padre leigo” é utilizada pela primeira vez por Frei Bernardin D’Apremont ao relatar a primeira visita de um pároco a uma capela que nunca havia sido visitada antes por nenhum padre. Ao chegar ao local, o padre encontra água benta. Ao perguntar o pároco por quem benzera a água, recebe a resposta? “O padre leigo da capela.” (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p. 109).
Para nomear a liderança religiosa por eles instituída, os colonos também usavam a expressão nostro prete, ou prete de scapoera (nosso padre, ou padre da capoeira). (DE BONI; COSTA, 2014).
Segundo Zagonel (1975, p. 55), a escolha do padre leigo obedecia a critérios diversos:
Eram escolhidos os ‘mais sábios’, os que haviam feito parte do coral na Itália, os que tinham trazidos o Livro de Vésperas ou qualquer devocionário, estátua ou estampa. A indicação, às vezes, recaía sobre aquele que exercia uma liderança natural, pois devia promover a construção da igreja e a coordenação da comunidade no culto e no encontro social, e providencial pelo divertimento do grupo no fim de semana. Exercia uma autoridade reconhecida pelo grupo.
Manfroi (1975, p. 165) apresenta outros critérios que também eram tomados em conta na hora da eleição da liderança religiosa da capela:
Os valores morais e religiosos, associados a uma certa instrução se impunham aos demais valores. […] Muitas vezes, tinha feito parte do coral na Itália, ou tinha sido catequista, era mais instruído ou mais respeitado. Sua função de homem do culto e de juiz de paz exigia, necessariamente, certas qualidades morais e um mínimo de instrução religiosa para ser escolhido e aceito por todos. A prática e o exercício da função lhe garantiam uma grande notoriedade e respeitabilidade.
A função do padre leigo na capela era a de presidir a comunidade na oração dominical (terço, ladainhas), assistir os moribundos e oficiar as orações dos enterros e abençoar a água e os objetos que os colonos desejavam manter em suas casas como símbolo da proteção divina. (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p. 108-109; COSTA, 1998, p. 192).
2.2 O professor
No relato de Barea (1925, p. 100) por nós acima citado, vemos que, desde o tempo em que se reuniam nas casas para rezar, a preocupação com a escola já estava presente entre os imigrantes italianos.
No início na própria capela e, na medida em que as condições econômicas vão permitindo, a escola vai fazendo parte da paisagem das linhas e travessões. Para exercer a função de professor é escolhido pela comunidade alguém que tenha os rudimentos da leitura e escritura da língua italiana e, se possível, conheça algo de português, pois, como afirma o Pe. Enrico Poggi que, em 1900, funda uma escola em Caravágio (no atual município de Farroupilha), “o ensinamento será dado em língua italiana porque nós somos italianos e se ensina a língua portuguesa, porque o Brasil é nossa segunda Pátria.” (apud BAREA, 1925, p. 77).
O objetivo da educação, além do letramento indispensável para que o filho do migrante pudesse inserir-se na sociedade brasileira, era a de formar um membro útil da comunidade.
Para poder exercer tal função, a comunidade buscava alguém que fosse exemplo de vida cristã. Normalmente era um homem do qual se pudesse atestar a integridade moral e doutrinária e que tivesse conhecimento da doutrina cristã pois letramento e catequese andavam juntas e, no final do ciclo de quatro anos nos quais a escola era organizada, os estudantes recebiam a Primeira Comunhão (RAMBO, 1998, p. 154-155).[10]
2.3 O fabriqueiro
São poucos os registros relativos aos fabriqueiros das capelas e suas funções. O “Regulamento das Capelas…” é um dos poucos documentos que falam explicitamente de suas funções.
Da leitura do “Regulamento das Capelas…” se concluiu que, aos fabriqueiros, cabia garantir a sustentação econômica das atividades da comunidade. A tarefa primeira era a de coordenar a construção e manutenção da capela e do cemitério. À medida em que as condições econômicas permitissem, cabia aos fabriqueiros também o cuidado do salão da capela.
Além das doações em espécie, os fabriqueiros eram os responsáveis por “associar” os moradores da linha ou travessão à capela. A associação se dava através de uma contribuição anual versada por cada membro e devidamente registrado pelos fabriqueiros. A eles cabia administrar o dinheiro da comunidade resultante destas contribuições.
Quanto às condições morais e religiosas, o “Regulamento das Capelas…” (I, 10) afirma que “não será reconhecido pela Venerável Cúria o fabriqueiro que não preencha os seus deveres de cristão.
2.4 O chefe de travessão
Ao lado dos “fabriqueiros” e do “padre leigo”, outra liderança resultante do espírito comunitário dos imigrantes era a do “capo-linea” ou “chefe de travessão”.[11] No dizer de De Boni e Costa (2014), ao “chefe de travessão” cabia “conciliar possíveis desentendimentos, conflitos de terras, queixas por causa de invasão da plantação por parte de animais do vizinho, ou do fogo que passara de um roçado para outro, etc.”
Sua autoridade andava em paralelo com a do “padre leigo”:
Se o nostro prete (nosso padre) devia ser uma pessoa piedosa, dada à oração e conhecedora dos problemas da religião, esperava-se do capo-linea que fosse alguém com liderança, objetividade e temperamento conciliador. Ele procurava fazer com que os conflitos fossem resolvidos o quanto antes, pois duas famílias desentendidas poderiam prejudicar o andamento e o bom nome da comunidade.” (DE BONI; COSTA, 2014).
Ciosos de sua autonomia e auto-organização e receosos de recorrer a uma autoridade com a qual tinham dificuldade de se comunicar por não entender e muito menos falar a língua portuguesa e por desconhecer as leis brasileiras, o apelo às autoridades civis do município era evitado e “…era criticado quem apelasse para o juiz, o delegado, a polícia ou o prefeito, em vez de resolver o conflito no local” (DE BONI; COSTA, 2014).
3. A autonomia das comunidades e o conflito com o clero
Com a Proclamação da República (1889) e a separação entre Igreja e Estado, a Igreja Católica perde a proteção do estado, mas ganha autonomia para expandir sua presença religiosa na região de colonização italiana através da criação de novas paróquias. Isto é possível pela chegada de religiosos clérigos de diversas Congregações que buscam no Brasil um lugar seguro frente às perseguições na Europa.
Os padres jesuítas retornam ao Brasil em 1842 e passam a assumir paróquias na região de colonização alemã.[12] Os Padres Palotinos, de origem alemã e suíça, chegam em 1896 e se estabelecem na região central do Estado para atender os imigrantes italianos de Silveira Martins, Vale Vêneto, Nova Palma, Nova Treviso e Ivorá. (RUBERT, 1998, p. 286-288). Capuchinhos e carlistas chegarão em 1896 estabelecendo-se ambas as congregações na região serrana. O mesmo farão os Camaldulenses 1899 e os Passionistas em 1905. (ZAGONEL, 19975, p. 45).
Estes religiosos chegam marcados pelo espírito da Romanização e, nele, da centralidade institucional do clérigo e de sua supremacia sobre os leigos. Instalados na serra e orientados pelo bispo de Porto Alegre, D. Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, eles se propõem a organizar a Igreja do Rio Grande do Sul dentro dos moldes tridentinos.
O modo como os capuchinhos franceses veem a ação do “padre leigo” é retratada no relato enviado por Frei Bruno de Gillonnay em 1900 à revista Rosier de Saint François:
Em sua fé ingênua, os colonos se entregam, em suas capelas, a práticas que fazem sorrir. Eles escolhem o mais sábio (é necessário que saiba ler) para exercer as funções de padre da capela, segundo sua expressão. Então as liturgias passam a ser feitas regularmente: procissões, bênçãos das velas e dos ramos, missa cantada, etc. Um destes padres leigos tinha até encontrado uma forma de deixar a liturgia intacta, sem no entanto usurpar os direitos do diácono e do padre, que só eles podem dizer: “Dominus vobiscum”; ele cantava: “Dominus noviscum”. Este culto, isso se entende, não estava aprovado pela Congregação dos Ritos!… Estes costumes se encontram ainda um muitas capelas; mas desaparecem pouco a pouco.[13]
O choque com as lideranças leigas das capelas – professores, fabriqueiros, “padres leigos” e “chefes de travessão” – começa a acontecer por todos os lados.
Mesmo que longo, o relato de Domingos Battistel (apud BATTISTEL, 1981, p. 38-40) expressa o modo como as lideranças das capelas sentiram e reagiram à presença dos padres:
Na Linha 6ª de Nova Prata, numa distância de quatro quilômetros, havia três igrejas. […] Quando vieram os padres do Bassano [scalabrinianos] e viram três igrejas tão perto assim, exigiram que ficassem somente duas. Então os moradores da colônia nº 40 queriam que a igreja ficasse onde se encontra, hoje, o cemitério, e os que moravam perto do rio da Prata queriam que a igreja de Santo Antônio fosse a igreja oficial e ficasse onde eles a tinham construído. Fizeram uma briga danada; enfim, os padres benzeram a igreja de Santo Antônio da colônia nº 37 e a de nº 40, mas não abençoaram a igreja de Santo Antônio da colônia nº 44. Negaram-se a rezar missa lá. Então, os moradores da encosta do rio da Prata, obrigaram-se a concordar com os da capela da Saúde e resolveram construir a igreja no meio do caminho entre as duas primeiras igrejas. […] Essa igreja foi construída pelo ano de 1900 […] Santo Antônio foi colocado lá para satisfazer aqueles da encosta do rio da Prata, porque eles tinham grande devoção a Santo Antônio e aceitaram construir a igreja junto com os sócios da capela de Nossa Senhora da Saúde, desde que Santo Antônio tivesse um lugar no altar.
Para impor a sua vontade e determinar o lugar onde a capela será construída, o padre usa o seu poder de abençoar e rezar missa. Os colonos, diante do poder do padre, negociam para poder manter seus santos.
Em outros casos, no entanto, os colonos se negavam a reconhecer a autoridade do padre e apelavam ao bispo para manter a sua autonomia. Ilustrativo da defesa que os colonos fazem de seus “padres leigos” é o episódio narrado por D’Apremont:
Um ótimo vigário chegava um dia, pela primeira e, a uma de suas capelas mais afastadas. Ao entrar, percebe uma bacia cheia de água. “Que água é esta”? pergunta. “É agua benta, senhor Vigário”. – “Quando foi benta?” – “Recentemente. Nosso Padre benze seguido para que tenhamos sempre água benta limpa”. – “Qual é o padre?” – “O Padre leigo da capela.” – Sem replicar, o Vigário tomou da bacia e despejou a água pela janela, dizendo: “Tragam-me mais água. Benzê-la-ei, assim terão água benta de verdade”. A ordem foi executada, mas, escandalizados, mandaram uma comissão com queixas ao Bispo em visita na zona. “O novo Vigário”, diziam, “profanou coisa tão santa. O senhor Bispo quis saber de que se tratava e, quando chegou entre essa boa gente, falou-lhes nestes termos: “Queridos filhos, queixam-se do novo vigário porque jogou pela janela aquilo que vocês chama de água benta. Estivesse eu em seu lugar teria jogado também a bacia”. Explicou depois as prerrogativas sacerdotais e os limites dos poderes dos “padres leigos”.[14]
Para o colono, o sagrado reside na água benta que representa a presença de Deus, independente de que a abençoe. Para o padre e o bispo que lhe confirma os atos, o importante não é a água benta, mas quem a abençoa. Para a autoridade eclesiástica, a presença da bênção divina está vinculada às prerrogativas do sacerdote de dispensar as bênçãos, coisa que o padre leigo não tinha.
No caso acima narrado, os colonos aceitam a explicação do bispo. Mas nem sempre foi assim, como o relata, na sequência, o mesmo D’Apremont:
Poderia citar uma [capela] onde existe um longo “cisma” com seu legítimo vigário, excelente sacerdote genovês. Opunham-lhe o “padre leigo”. “Não precisamos deste novo vigário diziam os teimosos; ele não precisa ser tão orgulhoso. Podemos nos confessar em outro lugar; e para a missa temos o nosso “padre da capela”.[15]
Ilustrativo também é o acontecido na Paróquia Nossa Senhora do Rosário do Turvo (atual Protásio Alves), no ano de 1909. Pe. Antônio Serraglia assume a Paróquia e encontra-a em situação econômica calamitosa e, ante a iminente visita do bispo, não tem outra saída a não ser devolver à comunidade o direito de escolher seus fabriqueiros:
Sabendo estar próxima a visita de Mons. Pimenta, bispo coadjutor, o novo pároco fez o que pode com a pobre e abandonada paróquia, nomeou fabriqueiros paroquiais com votação popular […] restaurou a igreja e a canônica e em 4 de março recebeu o ilustre prelado, o qual ficou muito contente com a população ao vê-la pronta a apoiar as obras da nova igreja paroquial, a qual, depois de quatro anos de assíduo trabalho estava coberta e em 5 de outubro de 1914 solenemente abençoada.” (BAREA, 192, p. 102. Grifo nosso.)
No dizer de Manfrói (1975, p 172), os sacerdotes, seculares ou religiosos que vieram ao Brasil marcados pelo espírito tridentino, não se deram conta da originalidade do processo eclesial forjado no contexto da imigração italiana e, consciente ou inconscientemente, com maior ou menor resistência, foram ocupando as funções das antigas lideranças que, pouco a pouco, foram sendo relegadas a um lugar subalterno na vida da fé dos colonos.
No dizer de D’Apremont, na medida em que a ação dos sacerdotes e missionários se faz mais regular na região, os “casos extravagantes” se tornam mais raros e os “padres leigos” passam a exercer as funções de sacristães, de catequistas e presidem as orações públicas na ausência do padre, submetendo-se à sua autoridade.[16]
O processo de transformação da Igreja ganhou força com a nomeação de D. João Becker, em 1912, que, com força e decisão, implanta as reformas na Diocese de Porto Alegre.[17]
O primeiro grande revés do projeto autonômico das comunidades aconteceu por ocasião do Sínodo Arquidiocesano de 1919 quando, sob o comando de D. João Becker, os bispos sufragâneos de Porto Alegre procederam a uma intervenção nas escolas comunitárias. (RAMBO, 1988b, p. 232). Do ponto de vista pedagógico, currículos e conteúdos devem agora passar pelo crivo da cúria diocesana que zelará para que o ensino escolar siga as normas da igreja católica. Do ponto de vista econômico, o patrimônio acumulado durante a longa trajetória das escolas comunitárias – prédios, terrenos, casas dos professores – passa a ser registrado e administrado pelas autoridades eclesiásticas.
Solucionado o desafio das escolas, será o projeto como um todo o que sofrerá intervenção no ano de 1927 através do “Regulamento das Capelas…” A autonomia e o caráter societário das capelas contrastavam com o modelo romanizante em implantação que previa o controle eclesiástico sobre todas as atividades religiosas e o predomínio da religião sobre as outras atividades.
4. O “Regulamento das Capelas”
O esforço para colocar as capelas sob controle das Paróquias ganhará sua expressão no Estatuto das Capelas proposto pelos Párocos da Comarca Eclesiástica de Bento Gonçalves e aprovado em 1927 por D. João Becker, bispo de Porto Alegre.[18]
Dividido em três partes, o Regulamento trata, na primeira, das “Relações das capelas com a Venerável Cúria e com as Paróquias”; na segunda, do “Decoro e funções das capelas” e, na terceira, “Sobre os enfermos”.
O primeiro artigo da Iª Parte trata de deixar claro o objetivo do Regulamento: “As capelas dependem diretamente da Venerável Cúria Diocesana e da paróquia à qual pertencem.” Surgidas pela iniciativa autônoma dos imigrantes, passam agora as capelas à dependência da Cúria e de sua organização local, a paróquia. Em seguida, no parágrafo quatro, fica claro que não mais poderão ser criadas novas capelas sem a autorização vinda de cima: “Construções de capelas ou reformas importantes não podem ser feitas sem a licença da Venerável Cúria.”
As capelas passam a ser vistas como base econômica de sustentação da estrutura eclesiástica, seja pela manutenção da cúria como pela formação de novos padres e das obras diocesanas:
“2º Como dependem da Venerável Cúria todas as capelas, na primeira quinzena de novembro devem renovar as suas provisões pagando 10 mil réis pela provisão da capela e 10 mil réis pela provisão dos fabriqueiros que devem ser reconhecidos pela Venerável Cúria.
3º O resultado destas taxas, como do 20% das esmolas que são recolhidas na Igreja Paroquial e nas capelas quando é celebrada a Missa, e as taxas das procissões, etc, são destinadas à manutenção do Seminário e a outras pias obras da Arquidiocese.”
O objetivo não é mais suprir as necessidades espirituais, sociais e materiais dos membros da comunidade, mas sustentar a instituição eclesial.
Para garantir o controle sobre a economia da capela, o estatuto tem o cuidado de regulamentar a função dos fabriqueiros que deixam de ser eleitos livremente pela comunidade e passam ter que prestar contas, não mais à comunidade que os elegeu, mas ao pároco que pode, a qualquer momento e sem necessidade de dar explicações, intervir, demitir e nomear outros fabriqueiros diferentes dos eleitos pela comunidade:
5º As capelas dependem inteiramente da paróquia com a qual devem contribuir e ajudar nos seus trabalhos. Com esse objetivo haverá, em cada capela, um conselheiro da paróquia nomeado anualmente pelo pároco.
6º De nenhum modo os sócios das capelas podem nomear ou mudar os fabriqueiros sem o consentimento da Venerável Cúria e do Pároco.
7º Por sua própria iniciativa o pároco pode, sem necessidade de dar as razões, mudar ou nomear um ou mais fabriqueiros.
8º Os fabriqueiros não podem, sem o consentimento do pároco, emprestar dinheiro das capelas ou fazer despesas que ultrapassem os 50 mil réis.
9º Os fabriqueiros devem manter o livro caixa em ordem, apresentando-o ao pároco a cada ano para receber o “visto”, passando, em seguida, o relatório ao sócios.
10º Não será reconhecido pela Venerável Cúria o fabriqueiro que não preencha os seus deveres de cristão. (grifos nossos).
Os quatro primeiros artigos da IIª Parte do Regulamento tratam de como deve estar preparada a capela para a visita do padre. Os detalhes exigidos mostram, por um lado, a não consideração com a situação concreta vivida pelos colonos que tem que dedicar todas as suas forças para a sobrevivência em meio a um ambiento social, econômico e cultural extremamente difícil, quando não hostil. Os detalhes exigidos dão a entender que, mesmo visitando muito esporadicamente as capelas (uma, duas, no máximo três vezes ao ano), o padre deve ser visto como figura central da reunião da comunidade:
1º Por ordem do Mons. Arcebispo (Pastoral Coletiva) todas as capelas devem ter paramentos próprios; por isso, onde não os há, os fabriqueiros, em acordo com o Pároco, devem providenciá-los o mais pronto possível.
2º Para o altar onde é celebrada a Santa Missa que haja ao menos uma toalha de linho que se dobrará em três sobre a pedra sagrada.
3º Cada vez que o sacerdote visita uma capela deve encontrar tudo na melhor ordem; capela varrida, altar ornamentado, confessionário sem poeria, etc. tudo isso deve ser feito antes da vinda do Padre.
4º Na sacristia deve haver um lavatório com sabonete e toalha de mão. (Grifos nossos)
Sendo a presença do padre muito rara nas capelas, o Regimento trata de regulamentar as atividades religiosas da capela – catequese e orações – quando da ausência do padre:
5º Em todas as capelas nos dias de festa a doutrina cristã seja fielmente ensinada às crianças. O catequista tenha um registro de todos os alunos e anotará sua frequência e a apresentará ao pároco quando este for celebrar a Santa Missa.
6º Recite-se sempre o Santo Rosário, do qual participem obrigatoriamente aqueles que de modo algum possam ir à Santa Missa na paróquia.
7º Somente nas capelas distantes mais de duas horas da paróquia é permitido fazer as funções pela manhã. Durante as referidas funções se pede aos donos de vendas e negócios de fechar as portas de suas casas. (Grifos nossos).
A oração do terço, as novenas e outras devoções trazidas pelos imigrantes da Itália e que, durante muitos anos, foram o sustentáculo da fé cristã e da vida em comunidade, dão lugar agora à Eucaristia que está sob o controle do Pároco. Aquelas só são legítimas quando a participação na missa é impossível. Como afirma Costa (1998, p. 193), “a celebração da missa, a confissão e participação na eucaristia é o centro do estatuto das capelas” o que gera uma dependência religiosa do povo em relação aos sacerdotes. Da mesma forma a Catequese, realizada antes espontaneamente pelas mães de família nas casas ou nas capelas (COSTA, 1988, p. 165) é colocada sob o controle do Pároco.
Na constatação de Manfrói (1975, p. 172), na medida em que a missa é vista como mais importante que as orações presididas pelo “padre leigo”, sua liderança é posta em cheque e ele passa a ser visto como um “simples sacristão”:
Seu prestígio como homem da paz e da conciliação foi superado por aquele do sacerdote que, pouco a pouco, pôs fim a essa autonomia religiosa das capelas, sem compreender, na maioria dos casos, que ele dispunha de uma força, cujo desaparecimento seria lamentado, mais tarde.
Além disso, ao pedir aos donos de negócios que, durante as funções religiosas, cessem suas atividades, manifesta-se a pretensão de exclusividade que não se restringe aos espaços comunitários, mas também aos privados e que não estão sob a dependência da capela.
Na sequência, três artigos tratam de regulamentar a associação das pessoas à comunidade:
8º Cada sócio é obrigado a depositar anualmente a contribuição estipulada pela sua capela. Aquele que não pagar a referida taxa não será considerado sócio.
9º Os fabriqueiros não poderão receber sócios das outras capelas sem a licença do pároco.
11º Sempre que queiram fazer uma reunião dos sócios nas capelas, devem tratar primeiro com o pároco. (grifos nossos).
O vínculo da pessoa com a comunidade não é o religioso, mas o econômico. Numa mentalidade de cristandade, o Regimento não se pergunta pela fé da pessoa ou por seu sentimento de pertença à igreja. Trabalha-se com o pressuposto de que todos são católicos e devem obedecer às leis da igreja entre as quais está a de contribuir economicamente para o sustento da mesma.
O artigo nono trata da vinculação territorial. Em princípio, cada pessoa é membro da capela da linha ou travessão onde reside. Morar numa localidade e associar-se a uma capela de outra localidade, é algo que só o pároco pode autorizar.
O artigo onze, ao suprimir o direito aos sócios de reunir-se, culmina a intervenção no processo autonômico das capelas.
A IIIª Parte, ao estabelecer como norma a presença do sacerdote com a Eucaristia para atender os enfermos e moribundos, coloca mais uma vez em cheque a liderança do “padre leigo” que, até então, vinha prestando esse serviço à comunidade:
Sempre que seja necessário um Sacerdote para um enfermo:
1º Mande-se uma pessoa buscá-lo. Esta pessoa seja de confiança e saiba dar as informações sobre o estado do enfermo: se fala bem, se pode engolir, que doença tem, se é surdo, etc.
2º Nas paróquias onde há o costume, não se esquecer da condução para o sacerdote.
3º Na casa e, se possível, no quarto do enfermo, prepare-se um pequeno altar decente para depositar o Santíssimo na chegada do Sacerdote. Sobre este pequeno altar coberto com toalha branca deve encontrar-se um crucifixo no centro e duas velas, um copo com água benta, um copo com água pura e um prato.
4º No canto da mesinha, haja uma bacia com água, toalha de mão e sabonete para lavar as mãos do Sacerdote.
5º O Sacerdote nunca irá sozinho, especialmente a cavalo com o Santíssimo. O acompanhante não fale se não for absolutamente necessário e não fume.
6º Ao chegar o Sacerdote com o Santíssimo, todos os presentes façam silêncio, tiram o chapéu e se ajoelham para adora Jesus no Sacramento.
7º Durante o tempo em que o sacerdote confessa e administra o Santo Viático ao enfermo, todos os presentes, de joelhos, rezam por ele.
8º Que haja sempre uma pessoa que responda às orações e diga o “Confiteor Deo”.
9º Sempre que morrer alguém, o chefe de linha (capofrazione) avise o Pároco.
N.B. Qualquer um que encontre o Sacerdote levando o Senhor aos enfermos, saúde o Patrão do mundo colocando-se de joelhos ou, pelo menos, tirando o chapéu em reverência.
A normatização, nos mínimos detalhes, da presença do padre e da Eucaristia mostra a importância que estes dois elementos, próprios da nova espiritualidade e da eclesiologia em implantação, passam a adquirir.
O número nove é a única referência ao “chefe de travessão” que é visto pelo Regulamento apenas como um portador de recados ao Pároco.
A avaliação feita por Batistel (1981, p. 9) nos parece a mais precisa para descrever o processo de des-empoderamento das lideranças leigas e a submissão das capelas aos interesses institucionais:
A capela passou a ser assumida e direcionada do lado do padre, enquanto havia nascido do lado das comunidades leigas. Nunca alguém se propôs, por exemplo, um estatuto de capelas a partir dos primeiros grupos de oração, do capitel do quadro sacro, do rosário, da doação de um terreno para a igreja, cemitério e campanário, dos primeiros sócios e líderes, mas a partir do padre, da celebração eucarística e da integração à paróquia e das contribuições do centésimo, dízimo, etc. Surgiram, sim, estatutos de capelas para garantir o lado da Igreja instituição, sem a preocupação na experiência primigênia, nascida da fé, como forma de quebrar o isolamento e vencer as dificuldades da vida.
As figuras de liderança – “padres leigos”, professores, fabriqueiros, chefes de travessão – forjadas pelos imigrantes italianos na tentativa de reproduzir na nova situação em que lhes coube viver e através dos quais buscavam reconstruir criativamente a realidade que haviam abandonado (MANFROI, 1975, 172-173) sobreviveram, ainda que com seu papel eclesial e social mitigado, em formas de liderança que ainda hoje podem ser encontradas nas regiões de colonização italiana.
A memória popular guardou estas figuras e aparece em relatos como o do agricultor Antônio Costa que, fazendo memória de sua infância nos anos 30 do séc. XX, em Veranópolis, assim se expressa:
Aos 12 anos fiz a primeira comunhão. À escola, fui até a ‘seleta’. Meus pais achavam que era suficiente saber ler, escrever e fazer as contas. […] Quem mandava em casa era o pai e a mãe, e na capela havia os fabriqueiros e o padre de capoeira, e na linha havia o ‘sotocoa’ para resolver os problemas entre as pessoas e famílias.” (COSTA, 2007).
Para o ano de 1925, Barea (1925, p. 127) indica, com segurança, a existência de 950 capelas na zona colonial italiana. Posterior ao Regulamento e, na medida em que a colonização avançava para novos espaços – norte e noroeste do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – as capelas continuaram a multiplicar-se e continuam, até hoje, fazem parte da paisagem religiosa das regiões habitadas pelos descendentes dos imigrantes italianos.
5. Reflexões conclusivas
As capelas na região de imigração italiana constituíram um processo eclesial muito particular dentro da história do catolicismo no Rio Grande do Sul e, sem temor de exagero, no Brasil como um todo.
Seguindo a análise de Manfroi (1975, p. 164), as capelas nascem e se estruturam como uma “igreja da comunidade” e, nesse sentido, não se enquadravam no sistema paroquial europeu devido, em primeiro lugar, à ausência de padres e, em segundo, à falta de uma estrutura centralizadora como a da paróquia e diocese. Mesmo sendo estas existentes na região, estavam tão longe que tanto não respondiam às necessidades dos imigrantes como não podiam controlar a vida religiosa destes. Por outro lado, também não eram estruturas religiosas típicas da sociedade portuguesa onde uma família era a “dona” da capela e tinha um padre a seu serviço.
Trata-se, para usar a expressão de Boff (2008), de uma verdadeira eclesiogênese. No vazio institucional, os imigrantes usam de sua memória religiosa e da criatividade para forjar estruturas e ministérios que, tendo como centro a fé, respondam às necessidades que a vida nas novas circunstâncias em que são obrigados a viver, lhes exige.
Assim compreendidos, os conflitos que surgem entre lideranças leigas e padres e que levam à elaboração, por parte da autoridade eclesiástica, do Regulamento das Capelas, não é resultante de um desvio das funções da capela, mas de compreensões diferentes do que seja o papel da igreja na vida do cristão e na sociedade.
Para Costa (1988, p. 164-165, a tensão que surge entre as lideranças se dá pelo fato de que a capela perdeu não somente sua autonomia sobre o salão, como também perdeu sua autoridade moral de condicionar os demais horários de atividades aos seus, porque os salões funcionam como bodegas ou quase armazéns de fins de semana e, mesmo nos horários de culto de preces comunitárias, tendem a estar abertos, porque não servem apenas à própria comunidade.
Mesmo sendo isso verdade, o fato indicado é apenas manifestação de uma tensão mais profunda entre o modo como os colonos pensavam sua vida comunitária e o modo como os párocos que propõem o Regulamento, imbuídos pelo espírito da romanização, a pensavam.
Para os colonos, a vida comunitária englobava, de forma indissociável, a expressão da fé nas orações comunitárias, a educação das crianças realizada na escola, a cooperação para as compras através da “bodega” comunitária e o espaço para a festa e a convivência social.
Diferentemente do que afirma Costa 1988, p. 165), em contradição com os dados por ele próprio apresentados e por nós acima comentados, as capelas não foram, nas primeiras décadas, “sociedades definidamente religiosas”. Nelas confluíam os interesses religiosos, educativos, econômicos e sociais dos migrantes e suas famílias. São comunidades abertas às necessidades de seus membros e a todos os que necessitem de seu auxilio, tanto espiritual como material. O fato de algum dos moradores da localidade não participar das atividades religiosas ou, em casos extremos, até contestar a religião, não o excluía da “capela” e das outras atividades comunitárias.
Se por um lado, não podemos extrapolar os contextos históricos, sociais e religiosos e afirmar, como o faz Romanato (2009, p. 30) que as Comunidades Eclesiais de Base que surgem na segunda metade do séc. XX, “devem muito à organização religiosa das antigas comunidades dos emigrantes”, por outro, não podemos deixar de reconhecer que as duas experiências, cada uma a seu modo, tiveram que pagar o preço de ensaiar uma eclesiogênese onde o protagonismo leigo e a vida do povo fossem a preocupação central da igreja.
REFERÊNCIAS
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COSTA, Antônio. Romai go prática de èsser talian. Correio Riograndense, Caxias do Sul, Ano 99, edição 5.035, 18 de abril de 2007. Disponível em: http://www.correioriograndense.com.br/correio/edicoes/right.php Acesso em 21 março 2014.
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DE BONI, Luis Alberto; COSTA, Rovílio. Os italianos no Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.insieme.com.br/portal/conteudo.php?sid=144&cid=514&parent=134 Acesso em: 21 março 2014.
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REGOLAMENTO delle cappelle della Comarca Ecclesiastica di Bento Gonçalves. Em: BATTISTEL, Arlindo. Colônia italiana: religião e costumes. Porto Alegre, EST, 1981, p. 11-14.
ROMANATO, Giampaolo. Parlavano “talian”, cambiarono il Brasile. Visione LatinoAmericane, Triste, It. N. 1, p. 29-32, Luglio 2009.
ZAGONEL, Carlos Albino. Igreja e imigração italiana. Capuchinhos de Sabóia. Um contributo para a igreja no Rio Grande do Sul (1895-1915). Porto Alegre: EST/Sulina, 1975.
NOTAS
[1] REGOLAMENTO delle cappelle della Comarca Ecclesiastica di Bento Gonçalves. Em: BATTISTEL, Arlindo. Colônia italiana: religião e costumes. Porto Alegre, EST, 1981, p. 11-14. O “Regolamento…” foi originalmente publicado em língua italiana. As traduções aqui apresentadas são nossas.
[2] A particularidade presente em Silveira Martins, é que, dada a falta de padres para suprir a paróquia, os próprios colonos tomam a iniciativa de buscar, às suas próprias custas, padres na Itália. Não encontrando padres diocesanos disponíveis para vir ao Brasil, são contratados os Padres Palotinos que se estabelecem em Vale Vêneto, Nova Palma, Nova Treviso e Ivorá. (RUBERT, 1998, p. 286-288)
[3] José Barea (1893-1951), nascido em Nova Treviso (atual Farroupilha), filho de imigrantes italianos, ordenado presbítero em 1918 e, em 1835, primeiro bispo da Diocese de Caxias do Sul. Seu texto “La vita spirituale nelle Colonie Italiane dello Stato” publicado por ocasião do Cinquentenário da imigração italiano, pode ser considerado o primeiro relato sistemático da presença da Igreja Católica na região de colonização italiana no Rio Grande do Sul.
[4] GILLONNAY, Bruno de. Mission des FF.-Mineurs Capucins de Savoie ao Brésil (suíte e fin.). Le Rosier de Saint François, Chambéry, Fr., Ière Année, nº 7, p. 207-213, juillet 1900. Esta nota: p. 207-208.
[5] RABUSKE, 1978 (O início…), p. 29. A construção de capelas por iniciativa do clero é atestada em épocas posteriores da imigração na região das colônias novas. É o caso, por exemplo, da ´região de Paim Filho, Maximiliano e de São João da Urtiga que começaram a ser colonizadas no início do séc. XX onde, como nos relata Stawinski (1970, p. 122), “frei Aleixo chegou a construir mais de trinta capelas e, ao lado de cada capela, uma escola. E isto sem nenhum auxílio dos cofres públicos.”
[6] D’APREMONT, 1976, p. 131.
[7] D’APREMONT, 1976, p. 134.
[8] D’APREMONT, 1976, p. 134.
[9] MIGOT, Aldo Francisco. Manifestações de sociabilidade entre imigrantes italianos e seus descendentes, no Rio Grande do Sul. In: SULIANI, Antônio (Org.). Etnias & Carisma. Polianteia em homenagem a Rovílio Costa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 45-61. Esta nota: p. 47.
[10] Em 1898 chegam a Garibaldi as Irmãs de São José que abrem uma escola para meninas. Em 1904, na mesma cidade, estabelecem-se os Irmãos Maristas que abrem escola para meninos. Destas escolas sairão muitos jovens que, em suas comunidades, se tornarão professores. Ver: CLEMENTE, Elvo; UNGARETTI, Maura. História de Garibáldi: 1870-1993. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, p. 35-36.
[11] Segundo Battistel (1981, p. 43), outras expressões usadas eram as de “quarteron” (chefe de quarteirão) e “soto-coa”, esta depreciativa. Battistel parece confundir o capofrazione com o comissário. O primeiro era nomeado pela comunidade. O segundo, pela prefeitura, no momento em que a administração civil começa a marcar presença na região. Pelo seu caráter subalterno à autoridade civil, passa a receber o pejorativo nome de “soto-coa”.
[12] Em 1849 os jesuítas assumem a paróquia de S. José do Hortêncio; em 1857, Dois Irmãos; em 1859 a de S. Leopoldo; em 1863, Santa Cruz; 1868, Ivoti; 1871, Montenegro; 1873, Estrela e Bom Princípio; 1874, 1876, Tupandi; S. Sebastião do Caí; 1880, Hamburgo Velho; 1881, Lajeado; 1883, Feliz (RUBERT, 1998, 263-279).
[13] GILLONNAY, Bruno. Mission des FF.-Mineurs Capucins de Savoie ao Brésil (suíte e fin.). Le Rosier de Saint François, Chambéry, Fr., Ière Année, nº 7, p. 207-213. Esta nota: p. 208.
[14] D’APREMONT, 1976, p. 109.
[15] D’APREMONT, 1976, p. 109.
[16] D’APREMONT, 1976, p. 109.
[17] Sobre a implantação do projeto romanizante por D. João Becker na diocese de Porto Alegre, ver: ISAIA, Arthur. Catolicismo e autoritarismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
[18] O Conselho da Comarca de Bento Gonçalves era composta pelo Vigário Forâneo e Pároco de Bento Gonçaes, Pe. Antônio Zattera, futuro bispo de Caxias do Sul; pelo Vigário de Garibáldi, Pe. Frei Antônio de Caxias; Vigário de Santa Tereza, Pe. José Ferlin; Vigário de São Lourenço de Vilas Boas (atual Coronel Pilar), Pe. Luiz Mascarello; Vigário de Faria Lemos, Pe. Girolamo Bortolotto; Vigário de Montebello, Pe. Luigi Guglieri.