A Espiritualidade Católica no Contexto da Imigração Italiano no Rio Grande do Sul. Padre Pedro Colbachini e Frei Bruno de Gillonnay.

Frei Bruno de Gillonay

Autor: Frei Vanildo Luiz Zugno*

Para Beozzo, no curto lapso de tempo entre 1880 e 1920 aconteceu a mais profunda e radical transformação na história da Igreja Católica Romana (ICAR) no Brasil.[2] Impulsionada pelos bispos, no seu conjunto, ela pode ser descrita como a reforma romanizante da ICAR Brasil.

Reforma porter sido a palavra empregada por Roma e pelos bispos para justificar sua nova postura na condução da igreja. Ela aparece frequentemente nos documentos pastorais e lembra a reforma tridentina que é a sua fonte de inspiração. Ela indica “a substituição de elementos considerados deficientes ou sem vitalidade por novas formas que permitissem à fé católica apresentar-se com nova face”.[3] Romanizante, pois tratava-se de subtrair a igreja do domínio dos estados, a maioria dos quais de tendência liberal e anti-clerical e também de purificá-la dos elementos do catolicismo popular não acordes ao modo romano de ser católico.[4]

A implementação da reforma romanizante deu-se principalmente através da renovação do clero e da implantação de estruturas administrativas – dioceses e paróquias – em todo o território nacional. Junto com isso, houve um processo paulatino de controle das organizações leigas – ordens terceiras, confrarias e irmandades – e um enquadramento progressivo do catolicismo popular em sua diversidade de manifestações e autonomia e a imposição de um catolicismo padronizado sob os cânones romanos e o controle institucional.

Segundo Azzi, três são os instrumentos propostos pelo movimento reformador a fim de purificar o catolicismo brasileiro e encaminhá-lo dentro das normas da igreja: a catequese para resgatar o povo da ignorância religiosa; a substituição das devoções do catolicismo popular que davam lugar às manifestações deturpadas da fé católica por devoções vinculadas ao novo modo de ser católico e, a que garantiria o êxito da mudança, colocar as manifestações de culto e as organizações religiosas sob a direção do clero. Para isso, necessária era a anulação das lideranças leigas.[5] O objetivo final era o de gerar uma nova espiritualidade que reconfigurasse internamente a identidade católica de modo a consolidar a transformação.

No Rio Grande do Sul, a reforma romanizante foi favorecida pela chegada de levas de migrantes – primeiramente de alemães (1825), depois de poloneses (1870) e italianos (1875) – que vinham marcados pela mentalidade tridentina já consolidada na Europa e aqui era alimentada pelo clero, religiosos e religiosas – italianos, franceses e alemães – que, com a república e a liberdade religiosa garantida pela nova legislação, encontraram no Brasil um refúgio ante as perseguições sofridas no Velho Continente.

Assim como em todo o Brasil, no Rio Grande do Sul, a nova espiritualidade que dava solidez à reforma romanizante foi se espraiando através das devoções marianas de Nossa Senhora de Lourdes e da Imaculada Conceição de Maria, do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, de São José, das pregações nas missões, na catequese, nos sermões dominicais, nas orientações dadas no confessionário, nos textos publicados nos jornais católicos. De forma difusa mas constante, clero, religiosos e religiosas foram pouco a pouco inculcando e alimentando um novo modo de pensar a relação com Deus.

Além da divulgação difusa que pervadia todas as instâncias da pregação religiosa, a nova espiritualidade foi apresentada de forma sistemática em livros que tinham como destinatários os imigrantes da Região Colonial Italiana (RCI). Dois deles se destacaram e queremos aqui apresentá-los como expressão literária da nova espiritualidade transmitida pelos missionários aos imigrantes italianos.

O “Guida spirituale” de Pe. Pietro Colbachini

Pietro Antonio Colbaccini (1845-1901) partiu de Vicenza para São Paulo no ano de 1884 como padre diocesano para acompanhar os imigrantes nas lavouras de café. Dois anos depois mudou-se para o Paraná e se estabeleceu na região de Curitiba. Em 1888 ingressou na Congregação dos Scalabrinianos. Depois de seis anos de trabalho, retornou à Itália por razões de saúde. Enquanto se recuperava, redigiu um “Guia espiritual para o italiano imigrado na América”.[6] Em 1896 retornou ao Brasil e fundou a cidade de Nova Bassano, no Rio Grande do Sul, com paróquia dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. Ali faleceu em 30 de janeiro de 1901.

Na apresentação do livro, Pe. Pedro informa que a obra quer ser a presença do missionário lá onde ele não está ou não pode chegar. Dentro da mentalidade romanizante que concebe o padre como único portador da verdadeira religião, Pe. Colbachini afirmar que, sozinho, sem a presença do padre, o imigrante arrisca perder a fé. Dois são os perigos para o italiano no novo local: o primeiro é a vida tranquila e abundante que o colono tem nas colônias e que pode levá-lo a esquecer de Deus; o segundo é o “[…] álito pestífero da sociedade moderna que apostatou de Deus, porque crê que pode bastar-se por si mesma.”[7]

Na sua obra o autor afirma primar pela simplicidade e praticidade. A linguagem quer estar ao alcance de todos e os conteúdos adaptados às necessidades do quotidiano dos colonos que ele bem conhece.

Os dezoito capítulos que compõem o livro formam como que um tríptico organizado de modo a enquadrar toda a vida da pessoa – tanto individual como social, religiosa ou profana – sob a orientação da igreja, mesmo estando o sacerdote ausente do lugar.

Os quatro primeiros temas tratados são relativos a questões estritamente religiosas: a) a oração; b) a santificação das festas; c) orações para assistir devotamente à Santa Missa; d) a importância da frequência dos Sacramentos, especialmente a Confissão e a Comunhão; e) sobre a fuga das ocasiões de pecado; f) outras orientações gerais sobre o casamento. A trilogia sacramental tridentina – confissão, comunhão e casamento – são apresentados como necessários para viver neste mundo como cristão e garantia para a vida eterna.

Depois de uma breve reflexão teológica sobre cada um dos temas, fiel à sua intenção de oferecer um guia prático, o autor oferece normas práticas a serem observadas no quotidiano pelo imigrante. Ao tratar do perigo do namoro, por exemplo, o autor sugere a periodicidade – um encontro mensal nos quatro ou cinco meses que antecedem o casamento -,  o modo – sempre acompanhados pelo pai ou mãe da noiva, sem nenhum contato físico e conversas sobre temas amenos – dos encontros entre os namorados.[8]

As oito temáticas que seguem, versam sobre o comportamento do cristão no mundo: g) sobre os divertimentos, os bailes, a música e os cantos; h) sobre o bom uso das coisas; i) sobre a blasfêmia; j) da pureza dos costumes; k) sobre as relações políticas e sociais; l) sobre a honestidade e a justiça no comércio; m) sobre a economia e a avareza; n) sobre a higiene.

Nesta segunda parte, o autor é absolutamente prático. Com poucas referências doutrinais, Pe. Colbachini, usando como autoridade a sua experiência pessoal junto aos colonos das fazendas de café de São Paulo e aos pequenos proprietários na região de Curitiba, apresenta normas práticas para evitar o pecado e viver como bom cristão. Mesmo reconhecendo que as condições de vida dos colonos são melhores no Brasil do que na Itália de onde partiram, ele recomenda que se mantenham fieis aos seus costumes, tanto no que concerne à cultura e à vida cotidiana, mas principalmente no modo de viver o catolicismo. O italiano não pode cair na tentação de deixar-se levar pelo modo como o catolicismo é vivido no Brasil: “imitai a fé [dos brasileiros], mas não os seus atos e, quanto à religião, atenham-se aos usos da vossa Itália que é, entre as nações católicas, a mestra na prática da verdadeira religião.”[9]

Para fechar o tríptico, o autor volta à temática religiosa: o) normas para conservar a fé; p) deveres para com os sacerdotes; q) sobre o jejum e a abstinência; r) três boas devoções.

Para conservar a fé, o católico deve evitar o contato com três grupos perigosos: os protestantes, os maçons e os espíritas.[10] Mas, sobretudo, o imigrante não deve afastar-se da autoridade eclesiástica: “E devem os italianos reconhecer e professar uma perfeita submissão a esta autoridade eclesiástica, como a professavam na Itália ao seu bispo e ao seu pároco.”[11]

“O Coração de Jesus” de Frei Bruno de Gillonnay

Originário da Saboia, o capuchinho Bruno de Gillonnay chegou ao Rio Grande do Sul no início de 1996. Juntamente com seu confrade Leon de Montsapey, vinha sondar no território gaúcho a possibilidade de estabelecer um refúgio para os estudantes de filosofia e teologia franceses que, por razões sanitárias e econômicas, não mais podiam ser mantidos em Ghazir, no Império Otomano. A transferência dos estudantes iniciou no final de 1898 e os capuchinhos se estabeleceram com conventos em Garibaldi, Flores da Cunha, Vespasiano Correa, Veranópolis, Porto Alegre e Vacaria.

Como primeira atividade, os capuchinhos dedicaram-se à pregação de missões populares na RCI. A partir de 1898, com a abertura da Escola Seráfica em Garibaldi, iniciou a implantação da ordem. Em 1903 os frades assumiram a administração do Seminário de Porto Alegre e de paróquias na RCI e nos Campos de Cima da Serra (Vacaria e Lagoa Vermelha).

Depois de dezesseis anos de trabalho no Rio Grande do Sul, Frei Bruno publicou, no ano de 1912, em língua portuguesa, sua obra de espiritualidade intitulada “O Coração de Jesus”.[12] Os destinatários são os fieis e a obra “[…] tem por fim conduzi-los a uma devoção sincera, sólida, perfeita, esclarecida, afim de que por meio de tal devoção possam, […] chegar em breve à mais alta perfeição, isto é, à santidade, que é a única e verdadeira felicidade.”[13]

Organizado em três partes, na primeira o autor trata do conhecimento do coração de Jesus Cristo e de seu amor por nós. Na segunda parte, fala da resposta que cada pessoa pode dar ao amor do coração de Jesus. Por fim, na terceira parte, são considerados os efeitos que a devoção ao Coração de Jesus produz nas almas e na sociedade. Os diversos capítulos nos quais se divide cada uma das partes são constituídos por longas meditações sobre os temas propostos e concluem com uma breve “resolução” que o autor sugere para o leitor sem qualquer pretensão de autoridade exterior.

Escrita em primeira pessoa, a obra se apresenta como o relato de uma experiência que convida cada leitor a também fazer a sua experiência do amor do Coração de Jesus:

[…] o Coração de Jesus é imenso, ele ama a todos. Ele me ama, pois, a mim, em particular, como se eu fosse só no mundo. Ele escuta as minhas orações, como se eu fosse só no mundo. Ele escuta as minhas orações, como se eu fosse o único que o suplica. Ele se dá a mim na sagrada comunhão cada vez que desejo, como se ninguém mais comungasse.[14]

Nesse sentido, o “conhecimento” do Coração de Jesus que o autor se propõe apresentar na primeira parte da obra, não é o conhecimento racional, científico, ao qual se chega pelo esforço da inteligência humana como queria o iluminismo e o cientificismo que negavam a religião e que recebiam o combate da igreja. O conhecimento se dá na intimidade de cada pessoa, na relação única e especial que cada cristão estabelece com o Coração de Jesus:

Ele conhece o mais íntimo de minha vida: meus combates para me ajudar, minhas dores mais secretas para me consolar, os perigos que me cercam para afastá-los. Ele conhece também cada bom desejo e cada suspiro de amor de meu coração e neles se compraz e os aceita com bondade.[15]

Tal modo de pensar a relação do fiel com Deus através da imagem do Coração de Jesus reforça um otimismo em relação ao humano que vai em sentido contrário ao pessimismo antropológico da tradição jansenista e da pregação escatológica dos missionários populares.[16]

A intimidade entre o amante – o Coração de Jesus – e o amado – a pessoa humana – também é expressa através da imagem da amizade:

Esta devoção estabelece como que uma aliança, uma correspondência de amor, uma grande intimidade entre duas pessoas: a pessoa de Jesus Cristo sumamente santa, majestosa e amante, e a minha pessoa a qual Jesus deseja tornar santa, perfeita, feliz. Dali resulta uma amizade tão respeitosa como terna entre a alma e Jesus. E a alma, depois de ter encontrado a pessoa adorável e tão amável de Jesus, não pode deixar de pensar nela, de contemplá-la, de amá-la.[17]

No entanto, se no pessoal, há um otimismo antropológico, no que se refere à possibilidade de encontrar o amor de Deus no mundo, a perspectiva é pessimista. Refletindo a situação de uma igreja que se sente ameaçada pelas novas forças que guiam a sociedade, o devoto do Coração de Jesus encontra a verdadeira felicidade na fuga do mundo:

Oh! Se pensasse naquele amigo divino, se enfim pudesse compreender que ele me ama e que deseja ser amado por mim, como me haveria de parecer desprezível tudo o que o mundo me oferece, comparando-o à imensa felicidade de amar a Jesus, e de ser amado por ele![18]

Para o verdadeiro cristão, o mundo não faz falta, pois vive mergulhado no amor de Deus: “[…] vivo na presença do amor, no meio, no centro do amor, cercado, rodeado pelo amor do Filho de Deus, pelo amor de Jesus Cristo.”[19]

Na segunda parte, o autor procura conduzir o leitor no caminho da correspondência ao amor do Coração de Jesus. A temática é organizada em duas grandes seções. A primeira (cap.  I a VII) constitui como que um itinerário do fiel em direção ao Coração de Jesus. O caminho começa pela acolhida do amor de Jesus, passa pelo cultivo da intimidade e da amizade, tem sua expressão maior na reparação das faltas cometidas, por si ou por outros, contra o Coração de Jesus, e se expande em amor efetivo para conquistar os corações das pessoas com as quais o devoto do Coração de Jesus se comunica no seu dia a dia.

Ponto crucial neste itinerário é o Sacramento da Confissão, pois permite expiar os próprios pecados e assim ter um coração puro tanto para acolher o amor do Coração de Jesus como para levá-lo àqueles que ainda não o experimentaram.[20]

A segunda seção (cap. VIII a XVII) é uma reflexão sobre as virtudes – caridade, mansidão, humildade e pureza – a serem cultivadas a fim de obter a transformação do próprio coração para que ele possa adequar-se ao amor do Coração de Jesus. Dentre todas as virtudes, a mais importante é a pureza. Quanto mais pura a pessoa, mais disposta para receber e acolher o amor do Coração de Jesus. A pureza foi condição para que Maria pudesse acolher a presença de Deus em seu seio.[21] Segundo o autor, o próprio Jesus se fez mais próximo e mais íntimo daquele apóstolo que mais cultivou a virtude da pureza: “Jesus amou ternamente um apóstolo, prodigalizando-lhe carinhos divinamente afetuosos; mas este discípulo era puro, era virgem.”[22]

O Sacramento da Eucaristia é apresentado como o alimento essencial para sustentar o fiel no crescimento das virtudes:

Cada comunhão torna-me mais corajoso e mais forte para resistir e combater, para caminhar na vereda da virtude apesar de todas as más inclinações e tentações do demônio. Cada comunhão me chama mais alto, atrai-me, levanta-me para viver duma vida mais divina, para reproduzir em mim a vida de Jesus Cristo.[23]

Amor à Eucaristia que encontra expressão também na Adoração ao Santíssimo e nas devoções da Primeira Sexta-feira, na Hora Santa, na participação nas associações que divulgam a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e na veneração da sua imagem que deve estar presente em todos os lares.[24]

A terceira parte do livro aborda os efeitos da devoção ao Sagrado Coração de Jesus na vida do fiel. Os três primeiros capítulos tratam das graças concedidas a todos os que se mantém fieis à devoção: fé, esperança e inteligência.

Mas a verdadeira graça, aquela capaz de transformar o coração humano e assim uni-lo ao Coração de Jesus, é aquela obtida através da comunhão frequente que realiza “[…] a compenetração de dois corações, do coração de Deus e do coração do homem”, fazendo com que o coração humano abandone os desejos do mundo e se volte totalmente para Deus.[25]

Outro efeito da devoção ao Coração de Jesus é o de livrar o ser humano da tentação de buscar a felicidade neste mundo. Segundo o autor, “a felicidade terrestre desvia-nos dos pensamentos do nosso destino eterno, inclina-nos para a terra e afasta-nos de Deus.”[26]

Pela devoção, o fiel também é protegido dos dois grandes erros do mundo moderno: o indiferentismo e o sensualismo. São dois erros que se alimentam mutuamente: a indiferença a Deus e às coisas celestes leva à busca da felicidade nos prazeres deste mundo e a satisfação destes leva ao esquecimento do prazer verdadeiro do ser humano que é encontrado no amor de Deus.[27]

Por fim, a grande graça daquele que é devoto ao Coração de Jesus, é a de morrer a morte dos justos:

Morrer da morte dos justos é morrer na amizade de Deus, é sentir passar a sua alma, do corpo quebrantado pelas dores da agonia, nas mãos e no Coração de Deus; é saber que a nossa amizade com Jesus é doravante confirmada e que não cessará nunca. Morrer da morte dos justos, é entrever e saudar pela primeira vez as festas e alegrias do eterno amor. Morrer da morte dos justos é graça chamada pelo Concílio de Trento “grande dom” que nenhum sacrifício do homem pode merecer e que devemos pedir a Deus todos os dias com humildes súplicas.[28]

O amor ao Coração de Jesus preserva de toda angústia diante da morte, pois dá a certeza de “[…] que basta uma gota de sangue de Deus, e um suspiro de confiança e de amor do homem, para purificar a vida mais ingrata e mais culpada; e este suspiro de confiança e de amor solta-se tão facilmente da alma acostumada a se atirar no Coração de Jesus!”[29]

O autor conclui afirmando que o Brasil é uma nação predisposta pela natureza para acolher e propagar a devoção ao Coração de Jesus pois “[…] duas prendas exímias distinguem e honra o brasileiro: um coração delicado e  um caráter generoso.”[30] O coração delicado faz com que acolha facilmente a presença amorosa de Deus no Coração de Jesus e o caráter generoso faz com que o brasileiro se disponha a levar esse amor a outras pessoas.

Considerações conclusivas

Uma observação do conjunto da obra do Pe. Pietro Colbachini permite afirmar que, mais do que um guia espiritual, trata-se de um manual para a preservação do catolicismo ultramontano vivenciado pelos italianos em sua terra de origem e que, nas novas circunstâncias, onde a presença institucional da igreja não tinha a força de coerção que gozava na Itália, estava ameaçado de desaparecer.[31] Seu objetivo maior é a interiorização da submissão dos leigos ao clero e às normas morais preconizadas pela ICAR que visavam garantir a continuidade da hegemonia religiosa católica sobre a população brasileira no momento em que a igreja já não dispunha do poder coercitivo do estado.

Já a obra de Frei Bruno de Gillonnay pode, efetivamente, ser considerada como autêntica obra espiritual pois busca manter a fidelidade do imigrante à fé católica não a partir da observância de normas exteriores, mas pelo encontro da pessoa com Deus, no caso o Coração de Jesus, que tem como consequência comportamentos consoantes com esta experiência religiosa. Enquanto Colbacchini objetiva a submissão do católico ao clero, Frei Bruno vai mais longe e quer colocar o católico em contato com aquele que é a razão de ser do próprio clero: Jesus presente nos sacramentos, especialmente a confissão e a Eucaristia. Enquanto o primeiro se preocupava em uma vivência católica neste mundo, o segundo, fiel ao espírito da reforma romanizante, estava mais preocupado com a salvação da alma no outro mundo, verdadeiro destino do ser humano.

Na diversidade de abordagens, as duas obras se complementam e fizeram da RCI um bastião da ICAR que forneceu braços e corações para a consolidação da reforma romanizante em todo o Brasil.

Referências:

AZZI, R. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo : Paulinas, 1992.

BEOZZO, J. O. Irmandades, santuários, capelinhas. In: REB, 37, 148 (1977) : 741-758.

COLBACCHINI, P. Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America. Milano: Bertarelli, 1896.

GILLONNAY, B de. O humano em Cristo. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Correio Riograndense, 1996.

GILLONNAY, B. de. O Coração de Jesus. Roma: Federigo Pustet, 1912.

GILLONNAY, B. de. Vers le coeur de Jésus. Thonon: Société d’Édition Savoyarde, 1938.

HOORNAERT, E. História do cristianismo na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulus, 1994.

SCARPIM, F. A. Um guia para a saúde do corpo e da alma: o ideal de catolicidade proposto pelo Padre Pietro Colbachini para imigrantes italianos. REVER, 15, 01 (2015). Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/23589/16917  Acesso em: 23 de setembro de 2015.

SUSIN, L. C. “Coração de Jesus”: uma obra de síntese com sabor patrístico. In: GILLONNAY, B. de. O humano em Cristo. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Correio Riograndense, 1996. p. 9-18.

Notas


[*] Doutor em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo); Mestre em Teologia pela Université Catholique de Lyon.

[2] Segundo o autor “pode-se dizer que neste período rompe-se o equilíbrio entre o abrasileiramento do catolicismo pela sua convivência com a senzala e com o índio, pelo cruzamento de tradições reinóis e da terra, catolicismo mestiço e barroco, convivendo com reizados e congadas, com irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos pretos e São Benedito e a sua “europeização” embutida na luta por um catolicismo mais “puro”, mais “branco”, mais ortodoxo, mais próximo de Roma” (J. O. BEOZZO,  Irmandades, santuários, capelinhas. In: REB, p. 743).

[3] R. AZZI, Riolando., p. 29.

[4] E. HOORNAERT, História do cristianismo na América Latina e no Caribe, p. 320 Azzi (O altar unido ao trono, p. 30), fala em romanização católica. A palavra católica quer aqui expressar o caráter apologético do movimento. Face ao discurso liberal que propugna uma sociedade plural e um estado laico e ao fato consumado da presença, através da imigração, de outras igrejas cristãs, a ICAR não pretende abdicar do amparo do estado e do status de exclusividade garantido pela lei.

[5] R. AZZI, O altar unido ao trono, p. 33.

[6] P. COLBACCHINI, Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America. No ano de 1889, Mons. Scalabrini havia lançado um concurso para a elaboração de um devocionário para os italianos imigrados na América. Apresentaram-se 24 concorrentes. O vencedor foi o Pe. Colbachini que teve seu livro publicano. Além do “Guida spirituale…”, escreveu ele uma longa relação ao presidente da Sociedade São Rafael (1892) e outra o Ministro dos Assuntos Estrangeiros italiano (1895), ambos sobre a situação dos imigrantes italianos em São Paulo e no Paraná.

[7] […] l’alito pestífero della moderna societá che há apostatato da Dio, perché crede di poter bastare a se stessa (P. COLBACCHINI, Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America, p. 9).

[8] P. COLBACCHINI, Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America, p. 58.

[9] […] imitatene la fede, ma non sempre la pratica degli atti e, quanto a religione, attenetevi agli usi della vostra Italia che è fra le nazione cattoliche la maestra nelle pratiche della vera religione (P. COLBACCHINI, Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America, p. 103).

[10] P. COLBACCHINI, Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America, p. 116-122.

[11] E devono gli italiani riconoscere e professare uma perfetta soggezione a questa autorità eclesiástica, come la professavano in Italia al loro Vescovo ed al loro Parroco (P. COLBACCHINI, Guida spirituale per l’emigrato italiano nella America, p. 123).

[12] B. de GILLONNAY, Bruno de. O Coração de Jesus. Em 1996, para comemorar o centenário da presença capuchinha no Rio Grande do Sul, Frei Rovílio Costa, com o título “O humano em Cristo” republicou a obra “O coração de Jesus” ajuntando-lhe a tradução de outro texto “Vers le Coeur de Jésus”, também de Frei Bruno, publicado este em francês, no ano de 1938 (B. de GILLONNAY, Vers le coeur de Jésus). A comparação entre o texto original de “O coração de Jesus” e o publicado por Rovílio Costa sob o título “O humano em Cristo” permite afirmar que não foi uma simples reedição, mas uma adaptação que alterou significativamente o texto original. Em nosso trabalho utilizamos sempre o texto original. Ver: B. de GILLONNAY, O humano em Cristo.

[13] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 5.

[14] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 35.

[15] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 49.

[16] L. C. SUSIN, “Coração de Jesus”: uma obra de síntese com sabor patrístico. In: B. de GILLONNAY, O humano em Cristo, p 11-12.

[17] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 57.

[18] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 39.

[19] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 47.

[20] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 161.

[21] GILLONNAY, 1912, p. 202.

[22] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 203.

[23] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 217.

[24] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 221-233.

[25] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 260.

[26] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus,, p. 262.

[27] B. de GILLONNAY, O Coração de Jesus, p. 274-281.

[28] GILLONNAY, 1912, p. 281-282.

[29] GILLONNAY, 1912, p. 283-284.

[30] GILLONNAY, 1912, p. 293.

[31] Nesta perspectiva vai a análise de: F. A. SCARPIM, Um guia para a saúde do corpo e da alma: o ideal de catolicidade proposto pelo Padre Pietro Colbachini para imigrantes italianos. In: REVER.