Arquivo mensal: setembro 2021

São Francisco e os animais

Início de outubro e a mesma cena em inúmeras Igrejas: filas e filas de pessoas com seus animais para serem abençoados. A maioria são cães. Também há muitos gatos. E pássaros de todas as cores e plumagens. E não deixam de aparecer as lagartixas, tartarugas, peixes e iguanas. E alguns até estranhos para a vida doméstica: galinhas, mini-porcos, cabras, guaximins…

Estima-se que hoje, no Brasil, haja em torno de 150 milhões de animais domésticos: 55 milhões de cães, 25 milhões de gatos, 25 milhões de peixes ornamentais, 40 milhões de aves ornamentais e 2,5 milhões de répteis e pequenos mamíferos. Toda esta população animal gera um mercado de aproximadamente 40 bilhões de reais. Em plena pandemia, o “mercado pet” foi um dos que mais cresceu no Brasil: 13,5% no ano de 2020. Apenas para efeito de comparativo, o Bolsa Família, programa do governo federal destinado ao segmento mais pobre da população humana brasileira e que atende de 15 milhões de pessoas, teve, em 2019, um orçamento de 30 bilhões de reais.

A tendência, segundo especialistas do setor pet, é a de “humanização dos animais” com oferta de produtos premium, rações especiais e produtos de higiene que facilitam a convivência dos bichos de estimação com os humanos, bem como serviços veterinários, banho, tosa, fitness e hotelaria. Segundo um dos maiores empresários do setor, “o animal que ficava do lado de fora da casa e se alimentava com restos de comida, virou um filho”. Nesta descrição, claro, não estão incluídos os animais que acompanham as milhares e milhares de pessoas que, em todas as cidades do Brasil, desde as metrópoles até as pequenas interioranas, vivem na rua e se alimentam das sobras das comidas que já não são destinadas aos animais.

Mas voltando à bênção dos animais nos perguntamos: o que diria de tudo isso o santo que é invocado como protetor dos animais? Nessa questão que sempre provoca muita polêmica, é melhor deixar o santo falar. Na Primeira Regra, Francisco fala explicitamente da questão e diz: “Ordeno a todos os meus irmãos que de modo algum criem qualquer animal, nem junto a si mesmos, nem com outra pessoa, nem de qualquer outra forma”. É uma das poucas ordens que Francisco dá aos irmãos. Normalmente, ele pede ou aconselha. Aqui, ao se tratar de animais, ele ordena que os frades jamais os possuam.

Mas então, São Francisco não gostava dos animais? Ele gostava, sim. Podemos vê-lo em várias passagens das diversas biografias do santo. No relato de Tomás de Celano, há três episódios que mostram a relação que o Santo de Assis estabeleceu com três animais: um pássaro aquático, um faisão e uma cigarra. O pássaro aquático é trazido a Francisco por um pescador a fim de alegrar o santo em sua doença. Depois de ouvir o pássaro, ele “ordenou com bondade à ave que voltasse sem medo à sua primitiva liberdade”. Ao faisão, Francisco deixa a liberdade para escolher entre “morar conosco ou ir para os lugares de costume, que são mais adaptados para ele”. Quanto à cigarra, depois de desfrutar de seu mavioso canto, Francisco a despede para que parta livremente.

Quanto ao famoso Lobo de Gubbio, Francisco não o acorrenta e nem o encerra num tenebroso canil. Simplesmente o alimenta e lhe permite retornar a seu ambiente original.

Francisco ama os animais. Mas como seu amor é verdadeiro, não os quer submissos e a serviço do seu prazer. Ele quer os animais livres, vivendo em seu ambiente natural e sendo o que eles são e não instrumento para a satisfação das carências humanas. Quem escraviza animais pelo prazer que eles lhe proporcionam ou para suprir as próprias carências, não está vivendo o espírito de São Francisco. Muito antes pelo contrário…

O que fazer, então, com os 50 milhões de animais presos nas casas e apartamentos. Libertá-los seria condená-los à morte na selva urbana. É responsabilidade de quem os aprisionou cuidá-los até o fim de suas vidas. E, mais importante ainda, interromper o mercado de exploração animal não comprando outros para substitui-los na escravidão.

Quanto aos humanos que não conseguem viver sem o amor de um animal, para esses, talvez seja aconselhável procurar um psicólogo e desvendar as razões que o impedem de amar e deixar-se amar por humanos. O amor, como lembra outro santo medieval, Santo Tomás de Aquino, nos torna iguais àquilo que amamos. Se amamos a Deus, nos tornamos divinos. Se amamos os humanos, nos humanizamos cada vez mais. Quanto aos animais, cabe-nos apenas deixar que vivam livres em sua animalidade feliz.

Que São Francisco nos ajude neste caminho.

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O pulo do Paulo

Alfabetizar é mais do que aprender a colocar letras lado a lado e palavras formar. É construir palavras e relacioná-las entre si de modo a formar sentido. Frases podem ser eficientes, mas não são suficientes. É preciso que nasçam da própria mente e deem sentido ao mundo. Alfabetizar é descobrir quem somos no universo em que vivemos na relação com os outros e com a natureza. Alfabetizar é humanizar. Alfabetizar é libertar. Uma dupla libertação. Da incapacidade de ler as palavras e poder escrevê-las e das garras daqueles que querem impedir as pessoas de pensar o mundo com os próprios pés, com as próprias mãos, com o próprio coração, com a própria razão.

Alfabetizar é educar. Bem diferente de adestrar. O patrão quer o empregado adestrado. Apenas capacitado para executar a ordem sem perguntar o porquê. Ensino técnico, profissionalizante, despersonalizante, coisificante, instrumentalizante, alienante, escravizante. Nada de filosofia, história, geografia, sabedoria. Os humanos não precisam de humanas. Apenas exatas e práticas. Tecnologia copiada, imitada, sucateada, superada e descartada por aqueles que de verdade produzem ciência e conhecimento. Lixeira mundial do mundo do saber nos querem. Relés imitadores, copiadores e compradores do saber que os outros produzem em seu interesse e querem nos fazer pensar ser o nosso.

Alfabetizar é ensinar a perguntar a razão de ser de todas as coisas que existem. Por que eu não posso morar no condomínio que ajudei a levantar? Por que meu filho não pode estudar na escola que eu acabei de pintar? Por que eu não posso comprar na loja que acabo de limpar? Por que eu não posso compreender a fala do deputado que eu ajudei a eleger? Por que eu não posso comer na mesa que me obrigam a servir para ganhar um salário que não basta para meus filhos saciar?

Alfabetizar é politizar. É mediar as relações cidadãs com a comunicação que sabe dizer e sabe escutar. E sabe polemizar, discutir, cantar e dançar na emoção da multidão na praça reivindicando casa, trabalho e pão. Dizer tudo nas muitas formas de escrever a vida. De forma falada, escrita, gritada, dançada. Na prosa, poesia, música, canção e fantasia. E também com muita emoção e, se for preciso, convulsão, revolução. Sim, pois é preciso o grito, a loucura, qualquer coisa, menos o silêncio do gelo, o silêncio da morte que paira sobre as ruas e praças ao som dos soturnos soldados, armados ou não, que marcham mecanicamente aboletados nos gabinetes do poder.

Alfabetizar é esperançar. É sonhar com um futuro que não seja a repetição do passado ou a eterna continuidade do presente. É a capacidade de fazer-se ausente para contemplar de longe a sociedade em que vivemos e dizer que um outro mundo é possível, sim, se a gente quiser e decidir de fazê-lo, juntos, unindo a indignação e o compromisso com as multidões que não cabem nesse mundo e são impedidas de escrevê-lo com suas próprias histórias.

Alfabetizar é, acima de tudo, amar. Aproximar-se do outro e respeitá-lo em sua alteridade. No seu jeito de ser, de viver, de trabalhar, de rezar, de cantar. É desenvolver a capacidade de escutar o mundo do outro em suas próprias palavras, sem a pretensão de interpretar. Apenas acolher e, se for conveniente, responder, dizendo quem em sou e colocar nossos mundos em comum na diversidade do existir.

Alfabetizar é dar o pulo de Paulo Freire. Passar da mera repetição à criação do saber. Um pulo que assusta os que rastejam pelas estradas do mundo e querem impedir os outros de voar. Isso não deve amedrontar. Nem nos induzir a odiar. O opressor também é desumanizado em sua condição. Ele também precisa de libertação.

Viva Paulo Freire. Viva a educação!

Uma pátria para ser chamada de nossa.

Muito recente é a pátria-Brasil. Talvez um século. Sendo generoso, século e meio. Pouco mais talvez. Até 1922 éramos colônia. Colônia é o que não é por si mesma. É o colonizador quem a diz a partir de sua Pátria de origem. Colônia de Portugal. Mais precisamente: de Sua Majestade o Rei de Portugal. Ele é o pai da pátria, o dono das terras.

Pátria vem do latim pater. Em latim, pai. No caso, o rei de Portugal. Os que habitavam suas terras, eram seus filhos. Legítimos e reconhecidos alguns. Bastardos e desconhecidos, a maioria. Filhos de uma pátria que não os reconhecia como seus. Escravizados os negros. Peças d’África. Ou selvagens a serem domesticados. Nativos colocados à força dentro do domus, da casa do pai. Como escravizados. Jamais como filhos.

Com a Independência, a pátria não mudou de dono. O filho do rei de Portugal assumiu a coroa e fez destas terras a sua pátria. Muitos queriam sua própria pátria: Confederados do Equador, Farrapos do Sul, Cabanos do Grão-Pará, Praieiros de Pernambuco. Só os uruguaios conseguiram e da pátria-Brasil fugiram. À força de muitas guerras formou-se o Império do Brasil. O império da família Orleans e Bragança. Pedro I antes e Pedro II depois. Uma pátria onde mais de metade da população não podia assentar raízes. Não lhes era reconhecida como sua terra. Eram escravizados. Peça d’África aqui reproduzida do ventre escravo. Uma pátria de escravos não é pátria. É casa-grande-e-senzala. Mais senzala que casa grande. Pelourinho; porão; açoite e morte.

O medo de um grande Haiti fez branquear o Brasil. A migração foi a solução. Germânicos, poloneses, espanhóis, italianos, portugueses. Migrante não tem pátria. É hóspede na terra de outro.

O fim da escravidão trouxe a República. Mas a pátria continuou privatizada. A Velha República era do café com leite. O Império virou Fazenda. Donos da terra, da planta e do gado. Donos das gentes que aqui viviam. Os antigos escravos ainda não eram livres. Só passaram a ser reconhecidos como “nacionais” em 1910. Mas sem direito à terra, sem cidadania. Brasileiros de segunda categoria.

O Estado Novo ensaiou um projeto de nação. Fascista, elitista, autoritário. Com um viés nacionalista afinal. O suficiente para ser derrubado pela “revolução” de 1964. Um golpe entreguista que negou a pátria em nome do Império. Não mais o monarquista Orleans e Bragança caricatural. O império agora é do capital. Não tem pátria. É o império do dinheiro, dos bancos, do capital, estrangeiro ou nacional.

Passada a tormenta da ditadura, quisemos uma Nova República. Uma constituição com gosto de cidadania. Aquela de 1988. Universalização da saúde, da cultura, da educação. Trabalho com dignidade, respeito, dignidade. Uma pátria de cidadãos. Não de terra física só. Uma pátria palco de sonhos, de futuros, uma casa sem muros, aberta para todos. Não apenas pátria. Queremos mátria e frátria, uma terra de irmãos e irmãos. O que nos une não é só passado. O passado é dado, é fechado. Mas pode ser alterado. Pátria não é propriedade. Pátria é cidade, universalidade, multidiversidade, pluralidade, felicidade.

7 de setembro ficou para trás. 15 de novembro está no passado. A pátria futura é 20 de novembro, 19 de abril, 8 de março, 28 de junho. A pátria é todos os dias. Pátria é cidadania, real, plena a cada dia. Pátria é, acima de tudo, fantasia. Pátria é utopia.

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