Arquivo mensal: março 2022

São José e a santidade que mora ao lado.

Hoje, 19 de março, venho a público confessar que durante muito tempo tive dificuldade em lidar com as devoções a São José, o carpinteiro, esposo de Maria e pai de Jesus. A dificuldade não se enraizava numa falta de fé de minha parte ou em uma presenta desconfiança na exemplaridade da vida do homem de Nazaré. Muito antes pelo contrário. José, ao aceitar Maria grávida e criar um filho que não era dele, transgrediu as leis judaicas que regulamentavam o casamento e a procriação e pagou caro as consequências de ter assumido o cuidado do Filho de Deus.

A vida em Nazaré não foi fácil para o jovem casal. As “pessoas de bem” olhavam para os dois com desconfiança e até com desprezo. Especialmente para José que tomou por esposa uma mulher que, segundo a lei, deveria ter sido apedrejada porque ficara grávida antes do casamento. E, se o filho fosse dele, segundo a mesma lei, José deveria ter sido apedrejado também, por engravidar uma virgem antes de coabitar com ela. Os moradores de Nazaré nada sabiam dos anjos que, segundo os evangelhos de Mateus e Lucas, tinham falado a José e a Maria.

A viagem a Belém, a fuga para o Egito e o retorno a Nazaré não foram fáceis para José e Maria. Os evangelhos nos fornecem pouca informação sobre a vida da família de Nazaré. Apenas dizem que eles cumpriam suas obrigações religiosas – frequentavam a sinagoga e faziam a peregrinação a Jerusalém – e que José era um sem-terra que sobrevivia trabalhando como diarista na construção civil. Talvez, como tantos outros conterrâneos seus, passasse a semana trabalhando nas grandes obras que a administração romana levava adiante nas vizinhas cidades de Séforis e Tiberíades e só voltasse para Nazaré onde morava Maria com o menino no sábado. Mas são apenas suposições. O fato é que nos Evangelhos, depois das narrativas iniciais de Mateus e Lucas, são poucas as referências a José. Nenhuma no evangelho de Marcos; uma nos evangelhos de Mateus e Lucas; duas no evangelho de João. Em três delas, a menção a José é feita com o intuito de desqualificar a pregação e a atividade de Jesus por ser ele “o filho do carpinteiro José”! Depois isso, José desaparece completamente dos relatos bíblicos.

De onde vem, então, as tantas informações sobre a vida de José que encontramos nas vidas dos santos? A maioria vem da literatura apócrifa e gnóstica ou então da imaginação dos devotos que atribuem a José coisas que os evangelistas sequer ousavam pensar e muito menos descrever porque, de fato, não existiram. Como pode alguém, com tão poucas informações sobre o carpinteiro de Nazaré escrever uma biografia de São José com mais de seiscentas páginas? Haja imaginação!…

Minha reconciliação com as devoções a São José foi despertada pela Encíclica “Gaudete et Exsultate” do Papa Francisco. Nela, ele chama a atenção para a “santidade que mora ao lado”, a santidade dos “pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir […] daqueles e daquelas que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus”.

Essa é a santidade do carpinteiro José, a santidade ordinária, a “classe média” da santidade, como diz o Papa Francisco. Santidade que muitas vezes passa desapercebida porque não se expressa em grandes fatos ou em discursos eloquentes. Ela se realiza no quotidiano e só é perceptível para aqueles e aquelas que tem a graça de sentir a presença de Deus no ordinário da vida. E esse é o caminho da revelação que Deus nos mostrou em Jesus Cristo, aquele que foi cuidado e ensinado por José, o carpinteiro de Nazaré, que, por isso, merece toda nossa reverência.

Obs.: A tradução portuguesa da “Gaudete et Exsultate” fala de “santidade ao pé da porta”. Nós preferimos, a partir do original francês da expressão, traduzir como “a santidade que mora ao lado”.

Sobre oligarcas e grandes marcas.

Para tentar conter o ímpeto bélico da Rússia, os países ocidentais – Estados Unidos à frente – estão tomando algumas medidas extraordinárias para os padrões capitalistas que regem a economia deste lado do globo terrestre. O mais surpreendente é o sequestro dos bens dos ditos oligarcas russos. Uma medida surpreendente, já que os liberais ocidentais defendem o direito absoluto à propriedade e à livre iniciativa. É uma medida extrema, só aceitável em tempo de guerra e contra estrangeiros, dizem eles.
Outra medida extrema, foi a retirada de marcas mundialmente famosas – American Expresses, Visa, Master Card, Zara, Coca Cola, Starbucks e Mac Donalds – do mercado russo. Essas empresas vão perder bilhões de dólares que certamente não deixarão de circular na 10ª economia do mundo que é a russa. Mas é o “sacrifício” que estas empresas farão para restabelecer a democracia e salvar o mundo da volta do regime soviético capitaneado pelo novo Stalin em que Putin se transformou. São medidas extremas, só aceitáveis em tempo de guerra e em países estrangeiros, dizem eles.
Tais medidas extremas me fizeram pensar em algo insólito. No Brasil não vivemos uma situação de guerra declarada. Há as chacinas diárias onde morrem mais civis do que na guerra da Ucrânia e as pessoas andam de um lado para outro, não fugindo da guerra – graças a Deus! – mas buscando sim, um lugar para ganhar o pão de cada dia e sobreviver com suas famílias destroçadas pelo desemprego e pela miséria. Nessa situação extrema, não seria justificável desapropriar os bens dos oligarcas brasileiros para prover aos milhões de cidadãos que não tem o que colocar na mesa hoje? Proporcionalmente falando, os oligarcas brasileiros são muito mais oligárquicos que os russos. Enquanto por lá 300 pessoas detém a metade da riqueza russa, aqui, na “terra brasilis”, os seis homens mais ricos detém a mesma riqueza que a metade mais pobre da população. Em termos de oligarquias, damos de goleada nos russos. Quase um 7 X 1!
Quanto a banir as marcas americanas, isso seria uma graça. Poucos brasileiros sentiriam a falta da Zara, Starbucks e Mac Donalds. E a Coca Cola pode ser substituída por um Jesus Cola ou Fruki Cola e por um bom café nacional. Tudo, claro, pago através de um cartão de débito ou crédito chinês que substituiria os American Express, Visa e Master Card como aconteceu na Rússia.
Se alguém estranhou a minha matinal divagação, talvez ela se deva à dose excessiva de café que tomei essa manhã…

Rússia X Ucrânia: o falso dilema.

Fui interpelado ontem por uma pessoa de minhas relações sobre o meu posicionamento ante a guerra entre a Rússia e Ucrânia. Vendo minhas postagens nas redes sociais, essa pessoa não conseguia saber se eu apoiava Putin ou Zelinsky.

Tentei logo esclarecer: não torço nem prá um e nem prá outro. Numa guerra, quem torce para que um ou outro seja vencedor, dá uma demonstração de desconhecimento do que está em jogo. E, no caso, o que se disputa não é o domínio da Ucrânia simplesmente. O problema é muito mais profundo. Trata-se do fim da hegemonia global norte-americana e da emergência de uma nova configuração nas relações internacionais.

Com a expansão da OTAN para o Leste, os Estados Unidos tentam manter militarmente a hegemonia que a força econômica e política já nãos lhes proporciona. China, Rússia e Índia – sem contar outros países – estão hoje dispostos a assumir um papel protagônico nas relações internacionais.

Putin não é um louco ou um novo hitler. Ele sabe muito bem o que está fazendo e vem planejando isso desde que assumiu o poder. E não vai voltar atrás. E Biden também sabe disso. E não vai voltar atrás… Por isso o desenlace da crise não será para logo. E quem mais sofrerá será o povo ucraniano que, instigado por um fantoche dos Estados Unidos, foi jogado para uma guerra sem qualquer perspectiva de vender. Até porque numa guerra nunca há vencedores, a não ser os que vendem armas e os que depois ganharão dinheiro com a reconstrução da infra estrutura destruída.

Os países da Europa tampouco serão vencedores. As sanções impostas à Rússia logo se voltarão contra os próprios europeus que terão que pagar cada vez mais caro pelo petróleo, gás, trigo… Sem contar, é claro, com o custo absurdo de uma guerra que os Estados Unidos lhes repassarão. E o custo dos milhões de refugiados que continuarão a afluir para o Oeste.

A perspectiva é muito triste… O único caminho seria a total desnuclearização e desmilitarização da Europa com os Estados Unidos retirando suas forças de ocupação do solo europeu e a Rússia fazendo o mesmo movimento em seu território. Mas, a essas alturas, sonhar com isso é uma absurda divagação pacifista que só seria alcançada com uma ampla mobilização da população europeia. Algo que, claro, não está à vista na esquina das ruas de Berlim, Paris, Londres, Madrid ou Roma.

O que nos resta a fazer, além de rezar e ser solidários com as vítimas, é fortalecer e espalhar a convicção de que todo recursos à violência e às armas nunca é caminho para a solução dos problemas que vivemos, tanto nos relacionamentos próximos como nas relações internacionais.

Ah! Prá não esquecer… Se sobrevivermos, nem Rússia nem Estados Unidos serão os vencedores. Quem ganhará com a presente guerra é a China e os países que com ela se alinharão. Basta acompanhar nos portais oficiais do governo chinês os movimentos da diplomacia daquele país e logo perceberemos como eles estão conduzindo seus negócios em meio à crise.

Caminhar, comer e meditar.

O que fazer para mudar o mundo? É a pergunta que todos os que temos um mínimo sentimento de humanidade fazemos. Só quem é insensível diante de tudo o que está acontecendo – guerras, fome, peste, ecocídio, feminicídio, racismo, genocídios… – pode abdicar de preocupar-se com o futuro da humanidade e do planeta que nos cabe habitar.

Muitos talvez desistam da inquietação diante da enormidade das situações que se apresentam. Os problemas são grandes demais para que um indivíduo sozinho ou com seu pequeno círculo de relações possa fazer algo. Então, é melhor não fazer nada pois, agindo, podemos piorar ainda mais a situação.

Pior que este temor muitas vesses pode ser verdadeiro! Afinal, para enfrentar os Cavaleiros do Apocalipse que ameaçam tudo destruir, é preciso uma ação conjunta que reúna forças para enfrentar aqueles – pessoas, grupos econômicos e países – que ganham com o mercado da morte. A tanatofilia não é apenas um distúrbio psicológico. Ela é um programa político e um mercado rentável. Basta ver o lucro das empresas produtoras de armas e o modo como alguns candidatos se alçam ao poder.

A política é o único caminho para se construir uma alternativa que defenda a vida de todas as pessoas e dos demais seres vivos e do Planeta Terra. Não há outro caminho. Ele é longo. Exige serenidade e perseverança. Trilhá-lo com paixão e compaixão é a única alternativa possível a longo prazo.

O problema é que quem tem fome e tem a vida ameaçada, não pode esperar tanto. E aí emerge o outro lado de uma possível solução. Precisamos iniciar logo a mudança e dar os primeiros passos com nossos próprios pés. E isso literalmente! Afinal, na raiz das muitas ameaças à vida sobre a Terra, está a demanda insaciável por energia que o modo atual de organizar a vida sobre a Terra – aquilo que pomposamente chamamos de Economia – exige. Por trás das guerras, da destruição ambiental e da fome, está a necessidade de petróleo, gás, energia elétrica, nuclear… E o carro é o vilão simbólico do consumo desenfreado de energia. Andar a pé, de bicicleta ou em transporte coletivo, é o início de uma verdadeira revolução.

Ao andar a pé, gastamos energia. E para repô-la, temos que comer! E aí vem a segunda opção: comer menos carne. Efetivamente, a produção de “proteína animal” é a principal causa do desmatamento, do desperdício de água e do desequilíbrio ambiental. A cada quilo a menos de carne que comemos, estamos ajudando a manter viva a criação e a harmonia entre os humanos e destes com o meio ambiente. Para manter estas difíceis opções, é preciso pararmos para pensar no sentido da curta e frágil vida humana. Afinal, dificilmente passaremos dos cem anos! Vale a pena passar este curto tempo correndo pelas estradas reais e virtuais sem sentir o sabor da paisagem que se esvai e da qual só ficam em nossa memória vagos fantasmas? Melhor ir devagar… suavemente, docemente, calmamente, tomando tempo para saborear cada passo, cada espaço, cada momento. Meditar é a solução. Menos agitação e mais contemplação, certamente nos ajudarão a sentir, pensar, viver e construir um mundo melhor.