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As vagas do Espírito na história da Igreja.
The Waves of the Spirit in Church History.
Vanildo Luiz Zugno[*]
Resumo: Vista na perspectiva de longo prazo, a irrupção pentecostal no cristianismo ocidental não é algo novo. Ela é apenas mais uma vaga da agitada da história do cristianismo em que, de tempos em tempos e em diversas formas, ela se faz presente. Iniciando pelo montanismo no primeiro milênio e passando por Joaquim de Fiori e os espirituais franciscanos na Idade Média até chegar, no início da modernidade, a Thomaz Müntzer e, na modernidade recente, ao moderno pentecostalismo, o texto apresenta uma breve panorâmica dos grupos cristãos que centraram sua experiência de fé na pessoa do Espírito Santo. Para além dos fenômenos exteriores da glossolalia, êxtases, curas e expulsão de demônios, há algumas características que lhes são comuns: a irrupção em tempos de crise, a marginalidade social e eclesial, o desejo da volta às fontes do cristianismo, a radicalidade na vivência cristã e a espera do fim da história. A conclusão é de que, por ser uma expressão legítima da fé cristã, o pentecostalismo se manterá vivo e presente no futuro do cristianismo.
Palavras-chave: Pentecostalismo; Montanismo; Joaquim de Fiore; Espirituais Franciscanos; Thomaz Müntzner.
Abstract: Viewed in the long-term perspective, the pentecostal upsurge in Western Christianity is nothing new. It is just another wave of the agitated history of Christianity in which, from time to time and in different ways, it makes itself present. Starting with Montanism in the first millennium and passing through Joaquim de Fiore and the Franciscan spirituals in the Middle Ages until reaching, at the beginning of modernity, Thomaz Müntzer and, in recent modernity, the modern pentecostalism, the text presents a brief overview of the christian groups that centered their experience of faith in the person of the Holy Spirit. In addition to the external phenomena of glossolalia, ecstasies, healings and the casting out of demons, there are some common characteristics: the irruption in times of crisis; social and ecclesial marginality; the desire to return to the sources of Christianity; the radicalism in the Christian experience and the wait for the end of history. The conclusion is that, as a legitimate expression of the christian faith, pentecostalism will remain alive and present in the future of Christianity.
Keywords: Pentecostalism; Montanism; Joaquin de Fiore; Franciscan Spirituals; Thomas Müntzner.
Introdução
A vaga pentecostal que no século passado irrompeu no cristianismo ocidental é sentida por muitos como algo novo e assustador. Sua continuidade no presente milênio faz com que outros se perguntem sobre as suas consequências para o futuro do cristianismo. Como as vagas do mar, o pentecostalismo parece muitas vezes um movimento caótico, irregular, com formatos não claramente identificáveis e sem ter um alinhamento e uma direção definida. É um cristianismo “bagunçado”, bem diferente da ondulação regular e rítmica das igrejas institucionalizadas que, imitando as ondas do mar, se movem na batida rotineira e rítmica do culto, dos sacramentos, da hierarquia.
Uma visão de curta duração da história faz com que alguns se perguntem o “quanto isso vai durar” ou “quando vai passar”. A história de longa duração (BRAUDEL, 1977, p. 41-78) nos mostra o contrário: as vagas pentecostais, de tempos em tempos, tumultuam o ordenado vagar das ondas do percurso cristão. E, em aparente contradição, na sua irregularidade, elas são um fenômeno permanente. Ignorá-las ou relativizar sua importância é uma forma indireta de obliterar um dos artigos fundamentais de nossa fé: a presença e ação do Espírito Santo nas pessoas, na Igreja e na criação.
De forma panorâmica, buscaremos neste artigo assinalar algumas das vagas pentecostais que se manifestaram na história do cristianismo no Ocidente. A limitação do texto não permite aprofundar na história, teologia, nas consequências eclesiológicas e nas experiências pessoais que em cada uma delas está presente. Queremos tão somente chamar a atenção e despertar para a importância desta dimensão estrutural do cristianismo e, com isso, incentivar o aprofundamento da temática para melhor compreendê-la e incorporá-la na normalidade da vivência da fé cristã.
Conforme assinalamos acima, nos limitamos ao cristianismo ocidental e, nele, aos principiais momentos de emergência do fenômeno pentecostal. Certamente haveria outros que mereceriam a atenção e que com certeza poderão ser incorporados em futuras abordagens.
O montanismo
O mais antigo movimento pneumático em grande escala do qual se tem notícias nasceu na Frígia e de lá se expandiu pela África do Norte, Roma e Gália. É conhecido por seu lugar de origem – a seita catafrígia -, por seu inspirador – Montano da Frígia, daí o nome de montanismo -, ou por sua característica mais reconhecível, a nova profecia, devido às manifestações extáticas de seus membros. Além da História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (Livro V, 16-20 e pass.), vários escritos da época patrística fazem a ele menção, o que revela a sua importância. No Ocidente, seu expoente mais reconhecido foi Tertuliano que, a partir de 213d.C., aderiu definitivamente à doutrina e, nela, escreveu várias obras de cunho moral. (BARDY, 1928, col. 2355-2358). Excetuando os textos de Tertuliano, nenhum outro escrito dos principais expoentes chegou até nós.
Surgido no Oriente em torno de 155-160 d.C., o montanismo catalisa a insatisfação reinante em muitos segmentos do cristianismo com o esfriamento do ardor inicial e o adiamento do fim dos tempos que viria fazer justiça aos desvalidos do Império Romano. Montano e suas companheiras de pregação, Priscila e Maximila, têm como objetivo a restauração do fervor e do rigor inicial do cristianismo na espera da vinda imediata da Nova Jerusalém prometida no Apocalipse de João. A promessa do envio do Espírito, feita por Jesus no Evangelho de João, já teria se cumprido e a glossolalia e as manifestações extáticas seriam a prova de que o fim dos tempos é iminente. A situação turbulenta pela qual passava o Império Romano sob Marco Aurélio também seria um sinal da proximidade do fim dos tempos. Os cristãos são convidados a abandonar suas casas e a reunir-se na vila de Pepuza ou em Tymion onde a manifestação definitiva de Cristo aconteceria.
Montano, Piscila e Maximila apresentam-se como a própria pessoa de Cristo e do Espírito. Neles está a autoridade. Bispos e presbíteros não têm mais função, pois o fim dos tempos chegou. Para preparar-se dignamente, uma moral ascética é necessária: proibição de segundo casamento, jejuns severos, esmolas abundantes e, diante das perseguições, enfrentar sem medo o martírio.
Do ponto de vista do essencial da fé, o movimento mantém-se dentro do estabelecido pela Igreja. Tal é atestado pelo fato de, em 404, em carta ao bispo Victrício de Rouen, o Papa Inocêncio I reconhecer como legítimo o batismo por eles conferido (DS 211). A ortodoxia dos frígios também é atestada pela carta que os mártires de Lyon, tal qual informado por Eusébio de Cesareia (HE, V, 3), enviam às Igrejas da Ásia e da Frígia. O objetivo da nova profecia é restaurar o ardor inicial da fé cristã que “se alimenta de antigas tradições proféticas e apocalípticas com o fim de reavivar e restaurar a Igreja primitiva fazendo recurso à autoridade do Paráclito: eficácia do Espírito, aptidão para falar em línguas, espera do fim dos tempos, ética rigorosa” (ALAND, 1983, p. 1674).
Em Roma, o movimento montanista manteve-se pelo menos até o tempo de São Jerônimo. Ele adverte a Marcela sobre seus riscos. No norte da África, Agostinho testemunha sua presença em Hipona. No ano de 407, o Imperador Honório decretou a confiscação dos bens, a proibição de fazer contratos, a anulação dos testamentos e a incapacidade para receber doações e legados por parte dos montanistas, o que, na prática, os colocava na ilegalidade.
No Oriente, o movimento perdurou por mais tempo e se estruturou em comunidade cristã estável com uma hierarquia organizada onde as mulheres participavam tanto do presbiterado como do episcopado. No séc. VI, o Imperador Justiniano, na tentativa de restaurar a romanidade, retirou dos montanistas os direitos civis e expulsou seu clero de Constantinopla. No início do séc. VIII, Leão III, o Isáurio, também na tentativa de manter vivo o que restava do Império Romano, obrigou os montanistas ao rebatismo. Estes, em protesto, encerraram-se em suas igrejas e as incendiaram. (BARDY, 1928, col. 2367-2369).
Joaquim de Fiore e o joaquimismo
São poucas as informações que até nós chegaram sobre o abade Joaquim de Fiore. Seu nascimento é situado em torno ao ano 1130 na Calábria. Recebeu boa educação e peregrinou pela Terra Santa e Constantinopla. No retorno, ingressou no mosteiro cisterciense de Corazzo onde foi ordenado e, em 1177, eleito, contra sua vontade, superior. A partir de 1182 começou a redigir suas três principais obras: Expositio in Apocalypsim também chamada de Apocalypsis nova; Concordia Novi et Veteris Testamenti e Psalterium decem chordarum. Em 1191 deixou a abadia e, no vilarejo de San-Giovanni in Fiore, com um só discípulo, iniciou uma nova ordem religiosa que teve apenas expressão local e desapareceu no séc. XVI.
Sua vida nada teve de excepcional além do que era reservado a um abade da época. Suas pregações apocalíticas não causaram surpresa nem aos Papas Celestino III e Inocêncio III a quem apresentou seus escritos. Sua pregação sobre o fim do mundo tampouco impressionaram o Imperador Henrique VI ou o Rei Ricardo Coração de Leão, aos quais expôs suas previsões. Notabilizou-se entre o povo pela sua simplicidade e por manter-se distante das coisas do mundo, o que lhe valeu, ainda em vida, fama de santidade. Faleceu em setembro de 1201.
Dois temas principais ocupam as obras do monge calabrês. O primeiro, é a teologia trinitária. Enraizado na tradição grega, Joaquim pensa a Trindade a partir das pessoas para chegar à unidade. Dando especial destaque às processões e missões trinitárias, ele mantém a unidade da substância trinitária. No Psalterium decem chordarum ele afirma:
Deus é uno sem confusão de pessoas; é trino nas Pessoas sem divisão da substância… Essa substância, que é Deus, é uma e sumamente uma, e constitui uma natureza única e simplícíssima. Na confissão da única substância não negamos a Trindade, mas repugna-nos representá-la cortada em três. Cremos pia e fielmente que as três Pessoas são uma só substância, que é por sua vez as três Pessoas. (apud FORTE, 1987, p. 81).
O Concílio de Latrão (1215) julgou sua doutrina a partir do livro De Unitate Trinitatis, que não chegou até nós. Nele é condenada a possibilidade de se pensar uma quaternidade, ou seja, a existência de uma substância que não seria comum às três pessoas da Trindade. Pedro Abelardo afirmava que “há uma realidade suprema que é Pai e Filho e Espírito Santo, e esta realidade não gera, não é gerada e não procede”. Joaquim via nisso a afirmação da quaternidade, por isso chamou Pedro Lombardo de herege e insensato (DS 803). O Concílio condenou esta interpretação que Joaquim fazia das afirmações de Pedro Lombardo e reafirmou a autoridade deste. No entanto, a reputação de Joaquim foi salva e sua conduta cristã em nada condenada (DS 807).
O segundo tema – originado no primeiro – é a aplicação da doutrina trinitária à história da humanidade e da Igreja. Seguindo o método tradicional, tanto no Oriente como no Ocidente, ele faz uma leitura tipológica da história atribuindo, como era costume, ao Antigo Testamento a prevalência do Pai e, ao Novo, a do Filho. A inovação por ele avançada é a de, depois do tempo do Filho, apresentar um terceiro tempo, o do Espírito Santo. Consequente com sua defesa da unidade trinitária, os três tempos não são estanques. Cada um começa dentro do outro e comporta uma initiatio, um pleno desenvolvimento num tempo de calma e de paz e um fructificatio. A passagem de um para outro é marcada por períodos de grandes transtornos. Analogias e interpretações alegóricas das figuras do Antigo e do Novo Testamento e da história da Igreja demonstram o suceder dos tempos.
Segundo ele,
houve um tempo em que os homens viviam na carne; ele começou com Adão e durou até Cristo; um outro quando se viveu ao mesmo tempo segundo a carne e segundo o Espírito; é o tempo que começou com o profeta Eliseu ou com Osias, rei da Judeia, e dura até hoje; haverá um tempo quando se viverá em Espírito; esse tempo começou com [São] Bento e durará até o fim dos tempos… No primeiro estivemos sob a lei, no segundo, sob a graça; no terceiro, que esperamos para breve, estaremos sobre uma mais abundante graça… O primeiro é o tempo da servidão, o segundo o da obediência filial, o terceiro o da liberdade; o primeiro é o tempo do medo, o segundo da fé, o terceiro da caridade. O primeiro é a idade dos velhos, o segundo dos jovens, o terceiro das crianças. (apud JORDAN, 1924, col. 1433).
O fato de colocar os reis como os governantes típicos do tempo do Pai, e os Papas como os do tempo do Filho que está para ser encerrado para dar lugar ao tempo sob o regime dos monges, colocava sérios questionamentos ao poder político e religioso então reinante e em toda a estrutura eclesiástica, desde a legitimidade do clero, a eficácia dos sacramentos e a verdade da Escritura que será, segundo esta interpretação, substituída por um Evangelho Espiritual inspirado no coração de cada pessoa.
Se, durante sua vida, Joaquim de Fiore e sua doutrina não chamaram atenção especial de seus contemporâneos, o mesmo não aconteceu depois de sua morte. Seu modo trinitário de compreender a história que caminha, em meio às turbulências, rumo à realização definitiva do Reino do Espírito, dava, ao mesmo tempo, segurança e fortaleza divina para os que contestavam a ordem presente, tanto a eclesiástica como a mundana.
Os espirituais franciscanos – como veremos a seguir – foram os grandes herdeiros e propagadores do joaquimismo. Mas não os únicos. Seus escritos espalharam-se rapidamente por toda Europa e suas ideias tornaram-se populares na pregação de dominicanos e franciscanos. As constantes reedições de suas obras e a multiplicação de apócrifos atribuídos a Joaquim, mostram a sua influência que perdurou por séculos e, segundo, De Lubac (1979-1989), enquanto messianismo temporal que materializa a esperança escatológica, tornou-se uma “ideologia do porvir” que sobrevive em todas as modernas revoluções e no socialismo contemporâneo. Da mesma opinião é Moltmann (2000, p. 209) ao afirmar que, “desde a Idade Média, não houve ninguém que tenha influenciado mais profundamente os movimentos libertários europeus, tanto na Igreja, como nos Estados e na cultura, quanto esse abade cisterciense da Calábria, no séc. XII”. Yves Congar (2005, p. 79) é da mesma opinião ao dizer que “as filosofias modernas da história têm sido muitas vezes um resumo, e até um plágio”, da escatologia joaquimita.
Os espirituais franciscanos
A querela dos espirituais se estendeu por três séculos e dividiu o Movimento Franciscano (FLOOD, 1986; BARROS, 2011) em duas alas que tensionaram internamente os vários grupos de seguidores de Francisco com profundas repercussões na vida da Igreja. O objeto fundamental em disputa era o modo de observar a Regra deixada pelo fundador e a sua relação com seu Testamento. Em ambos os documentos, o foco principal de divisão é a pobreza.
O Santo de Assis assistiu em vida à formação de dois partidos que ganharam contornos mais definidos nas décadas seguintes à sua morte. De um lado os que, instigados pelas autoridades da Igreja que viam na jovem Ordem um pujante instrumento para combater os hereges e fortificar a instituição, faziam uma interpretação menos rigorosa da pobreza e admitiam que os frades dispusessem de bens materiais e pudessem administrar diretamente dinheiro. Era o grupo de frades da comunidade. Do outro, aqueles que, no desejo de manter-se fiéis ao espírito do Seráfico Pai, defendiam a estrita observância do usus pauper, ou seja, que os frades só podiam dispor de bens materiais para a sobrevivência de cada dia, mas sem nenhum direito de propriedade. Para esses, a Regra devia ser observada ao pé da letra, tal qual expresso por Francisco no Testamento. O apelido de espirituais dado a esse grupo vinha do capítulo décimo da Regra de 1222, conhecida como Regra Bulada, em que se afirma que os frades têm o direito de desobedecer à autoridade da Ordem e da Igreja desde que seja para “observar a Regra espiritualmente” e que “antes de tudo, devem [os frades] desejar o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”.
O argumento de fundo para sustentar a posição era o da pobreza de Jesus Cristo e da Virgem Maria que não tiveram propriedade alguma durante a vida. Tal afirmação tinha uma consequência eclesiológica sensível: para seguir o exemplo de Jesus Cristo e de Sua Mãe, a Igreja, enquanto instituição e seus dirigentes – Papa, Cardeais, Bispos e sacerdotes – deveriam renunciar a toda propriedade e todo poder.
Os primeiros anos do Movimento Franciscano viram a balança do poder interno pender para o lado da comunidade. As sucessivas intervenções papais foram alargando as posses dos frades através de privilégios para dispor de bens, estudar e pregar. A resistência a essa evolução encontrava forças ao redor dos sobreviventes do primeiro grupo de Assis, os freis Bernard, Gil, Rufino, Leão, Ângelo e da ainda viva Clara de Assis.
Durante os generalatos de Frei Elias (1232-1239), de Haymo de Faversham (1240-1244) e de Crescêncio de Jesi (1244-1247), a comunidade prevaleceu. O rumo mudou com a eleição, em 1247, de João de Parma (Giovanni Buralli, 1208-1289). Durante dez anos visitou, a pé, como mandava a Regra, todas as províncias e, pelo exemplo e exortação, restabeleceu a pobreza na observância da Regra e do Testamento renunciando aos privilégios papais. A reação não se fez esperar. O grupo da comunidade, capitaneado pelos frades que faziam carreira nas principais universidades europeias, acusou João de Parma de simpatizar com as ideias de Joaquim de Fiore, recém condenadas pelo Papa Alexandre VI. Pressionado pelos frades e pela Cúria Romana, em 1257, João de Parma convocou o Capítulo Geral e apresentou sua renúncia que não foi aceita pelos frades. O Papa assumiu a Presidência do Capítulo e, por indicação do renunciante, foi eleito para sucedê-lo o professor da Universidade de Paris, Frei Boaventura de Bagnoreggio (IRIARTE, 1985, p. 33-114).
A polêmica da ligação entre os espirituais e as ideias de Joaquim de Fiore não era nova (SALIMBENE DE ADAM, cr. 48). Tanto no centro da Itália como no Languedoc, grupos significativos de frades aderiam às ideias joaquimitas e as identificavam como a melhor maneira de compreender as peripécias da Ordem e, por extensão, de todo a Igreja da época e fomentavam o desejo do retorno ao Evangelho, tal qual o fizera Francisco de Assis.
A polêmica explodiu em 1251, em Paris, quando Frei Gerardo di Borgo San Donnino (?-1276) publicou o Liber introductorius ad Evangelium aeternum, no qual, fazendo referência às obras de Joaquim de Fiore, afirmava que a segunda era, a do Filho, estava concluída e se iniciava a terceira, a do Espírito, da qual a Ordem Franciscana era a anunciadora. A reação a tal afirmação veio da parte do clérigo secular, professor em Paris, Guilherme de Saint-Amour, que denunciou a ligação do autor e, por consequência, de franciscanos e dominicanos com a heresia.
Dentre os pontos mais sensíveis da releitura que Frei Gerardo faz de Joaquim de Fiore, está a doutrina dos três adventos de Cristo. Entre a primeira vinda na carne e a última na glória do juízo final, ele propõe uma segunda vinda no Espírito para reformar evangelicamente a Igreja. Esta segunda vinda de Cristo já teria sido realizada em Francisco de Assis, com o qual teria começado a terceira era do mundo. Mantendo a centralidade cristológica da tradição franciscana, ele dá ao Espírito um lugar preponderante na ação salvadora. (POTESTÀ, 1997, p. 334).
Para dirimir a questão, em 1254, com a bula Etsi animarum, Inocência IV suspendeu os privilégios dos mendicantes diante dos bispos e párocos. (MAIERÙ, 1972). Em 1255, uma comissão de teólogos, reunidos em Anagni, selecionou sete proposições errôneas do Introductorius… e 24 da Concordia… de Joaquim de Fiori que foram condenadas pela bula Libellum quendam em outubro de 1255.
Assim como Gerardo di Borgo San Donnino, Frei João de Parma nunca escondera sua simpatia pela interpretação joaquimita da história da Ordem e da Igreja e, nela, da identificação do movimento franciscano com a Ordem dos Justos que viria renovar a Igreja e libertá-la da riqueza e poder com que se havia revestido e que a impedia de viver o Evangelho.
Gerardo de Borgo San Donnino foi julgado em Paris em 1258 por ordem do Ministro Geral, Boaventura de Bagnoregio, e condenado à prisão perpétua. Morreu no cárcere, em 1276, sem nunca renunciar a seus ideais. A mesma pena, também em tribunal presidido por Boaventura, foi dada a João de Parma. Recolhido ao convento de Greccio, o ex-ministro geral levou vida de pobreza exemplar e retomou sua produção teológica tendo como pano de fundo a visão joaquimita da história da Igreja, sem nunca, no entanto, afastar-se da ortodoxia. Morreu em 1289, em Camerino, a caminho da Grécia, onde fora enviado pela Papa Nicolau III.
A repressão não impediu que outras vozes se levantassem em defesa da pobreza e de uma interpretação da história na linha joaquimita. No sul da França, a mais destacada foi a de Pietro di Giovanni Olivi (1248-1298). Estudante em Paris, aderiu à doutrina milenarista e, sem concluir os estudos, retornou a Montpellier onde desenvolveu sua atividade de pregador e professor nas quais defendia o usus pauper e a perfectione evangélica como caminho para a santidade (LIMA, 2010).
Ao lado da questão da pobreza e suas consequências no interno da Ordem e na Igreja, a leitura milenarista da história que ele bebe na fonte de Joaquim de Fiore também inquietava os frades superiores e as autoridades eclesiásticas. No seu Lectura Super Apocalypsim, ele identifica em Francisco de Assis o personagem que traria a plenitude do Espírito Santo, culminância da revelação trinitária:
Esta é a revelação limpa e imaculada, a qual, vinda do Pai da luz, transmitida exemplarmente e verbalmente por seu Filho aos Apóstolos, em tão inspirada pelo Espírito no beato Francisco e em seus seguidores, contendo em si o testemunho da Trindade (apud MAGALHÃES, 2016, p. 154).
Mesmo sofrendo vários processos no interior da Ordem e investigações por parte das autoridades eclesiásticas, Pietro di Giovanni Olivi nunca foi formalmente condenado em vida. Continuou a ensinar e pregar em Florença, no Reino de Aragão e em Montpellier onde veio a falecer em 1298 com fama de santidade.
Entre seus discípulos, o que mais se destacou foi Ubertino de Casale (1259-?). Antes de dirigir-se a Paris, conviveu em Florença com Angela de Foligno (1248-1309) e Pietro di Giovani Olivi e em Greccio com Giovanni de Parma. Sua preocupação principal era o estado da Ordem e da Igreja. Para compreender o sentido do que estava acontecendo, igual a seus mestres, faz recurso à teologia joaquimita relida por seu mestre de Florença. Na sua principal obra, Arbor Vitae crucifixae Iesu, ele visualiza a história da igreja em sete idades, das quais a sexta, iniciada por Francisco de Assis, seria a da renovatio evangélica. Segundo Ubertino di Casale, Francisco de Assis representa a passagem da quinta para a sexta idade, o que coincide com a passagem do segundo para o terceiro estado, ou seja, da Era do Filho para a era do Espírito Santo. O sinal para o início da nova era seria o retorno de Enoch (São Francisco) e de Elias (Santo Domingo) (MAGALHÃES, 2016, p 164).
A repressão às ideias joaquimitas fez com que um grupo de frades espirituais tomasse o caminho do Oriente. Entre eles estava Angelo Clareno (1255-1337). Oriundo das Marcas de Ancona, desde seu ingresso na Ordem esteve ligado aos frades da estrita observância. Depois de um tempo de exílio na Armênia e na Grécia, em 1305 retornou à Itália onde, para defender suas ideias, escreveu o Chronicon Seu Historia Septem Tribulationum Ordinis Minoris no qual apresenta a história da Ordem em sete etapas, sendo a última a do tempo presente em que Satanás é definitivamente derrotado e restabelecido o Espírito do fundador. Tanto nesta como no Expositio Super Regulam, Francisco de Assis é apresentado como um homem iluminado pelo Espírito Santo e, por isso, capaz de prever as vicissitudes futuras da Ordem e a vitória sobre o mal (MAGALHÃES, 2016, p. 181).
A teologia dos espirituais, especialmente a obra de Pietro di Giovanni Olivi, foi colocada em questão no Concílio de Viena (1311-1312) que não fez a ela uma condenação formal. Essa viria somente em 1318, quando o Papa João XXII, com a Bula Gloriosam Eclesiam, condenou os cinco erros dos espirituais: 1) designar a Igreja de Roma como carnal e corrupta; 2) negar ao clero romano todo poder e jurisdição; 3) a proibição absoluta de juramento; 4) a não validade dos sacramentos celebrados por um sacerdote pecador; 5) serem os espirituais os únicos observadores fieis do evangelho (DS 910-916). O golpe de misericórdia contra os espirituais veio em 1326 com a condenação pelo Papa João XXII do Lectura Super Apocalypsi de Pietro di Giovanni Olivi. Era uma condenação ao mesmo tempo simbólica e teológica.
Dali em diante, o movimento dos espirituais e sua peculiar leitura da história que, mesmo tendo centralidade cristológica, era marcada pela lógica joaquimita onde o Espírito Santo ocupa um lugar central, sobreviveu por três caminhos. O grupo mais radical de frades, identificado com Angelo Clareno, foi afastado da Igreja e se manteve vivo numa plêiade de grupos como os Fraticelli, os Clarenos, os Fraticelli de paupere vita, os Michaelitas, seguidores de Michele da Cesena (1270-1348?) e outros grupos que, em meio a perseguições da Inquisição e a proteção de autoridades locais, sobreviveram espalhando sua mensagem por longo tempo no entorno do Mediterrâneo (VERNET, 1905b).
Outro grupo de frades acatou as determinações dos superiores e do Papa e, mantendo o direito à observância espiritual da regra, retornaram à obediência dos conventos vivendo a estrita pobreza e buscando o retorno da Ordem ao propósito original. A “solução de compromisso” (MAGALHÃES, 2016, p. 192, nota 2) não durou muito. Deste grupo, em meio ao clima de “reforma espiritual da Igreja” que marcava toda a Europa, surgiu, no século XVI, a Reforma Capuchinha do movimento franciscano (VEGHEL, 2021, p. 19-42).
Um terceiro grupo que manteve vivo o modo espiritual franciscano de viver o cristianismo foi o dos leigos e leigas organizados nas Ordens Terceiras, nos grupos de Beguinos e Beguinas e nos Irmãos do Livre Espírito que recebiam a influência de franciscanos e dominicanos. No Midi, a influência espiritual de Pietro di Giovanni Olivi foi forte sobre estes grupos. Apesar das perseguições da Inquisição e dos bispos locais e as várias condenações doutrinais, a resistência permaneceu até o início da modernidade (VERNET, 1905; FALBEL, 1969).
Na América Latina, a influência dos espirituais franciscanos veio junto com os frades franciscanos que, no México, ensaiaram a construção de uma sociedade cristã em defesa dos povos nativos ante a invasão espanhola (CAYOTA, 1992).
Thomas Müntzer e os reformadores espirituais
O acento cristológico das cinco sola de Martinho Lutero – Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria – pode levar ao esquecimento de que o movimento de reformas do séc. XVI também teve a sua versão pneumática. Dentre as muitas irrupções do Espírito naquele período, lembramos uma das mais representativas, a que girou em torno ao reformador Thomas Müntzer.
Nascido em 1490 em uma família burguesa, iniciou sua formação para o sacerdócio em Leipzig, em 1506. Depois de passar por Frankfurt, foi ordenado em 1914. Seus primeiros anos de ministério foram instáveis, alternando entre o ensino e a capelania do monastério feminino de Aschersleben. A partir de 1518 estabeleceu contato com Lutero com quem compartilhava o propósito de reformar a Igreja. Nos anos de 1519-20, em Beuditz at Weissenfels, dedicou-se a estudar a história da Igreja, os Santos Padres e o pensamento de Tauler e Henrique Suso. Os estudos dos místicos ajudaram-no, por um lado, a compreender a crise de fé que o inquietava e, por outro, à afirmação, que seria fundamental em seu pensamento e ação, de que Deus, aos que o buscam na angústia, revela-se no mais profundo da alma, sem necessidade de qualquer meio exterior, hierarquia, sacramento ou escritura (DREHER, 2013, p. 279).
Em 1920, por indicação de Lutero, foi nomeado pastor em Zwickau. Ali encontrou-se com Nicholas Storch, Thomas Dreschel e Mark Thomas Stübner. Os “Profetas de Zwickau”, como era conhecido o grupo de leigos, afirmavam que todas as pessoas, independentes de sua condição, prestavam contas diretamente a Deus e eram possuidoras do Espírito Santo. Inspirados na tradição de Jan Huss, aspiravam a erigir o Reino de Deus aqui na terra através da erradicação de todas as diferenças entre as pessoas, pois, o fato de possuir da mesma forma o Espírito Santo, faz com que todos sejam iguais. Para chegar a essa igualdade, se for necessário, pode-se fazer recurso à força para a eliminação dos que se opõe a esse ideal igualitário: eclesiásticos, monges, monjas e príncipes.
A reelaboração teológica e, de modo especial, a eclesiológica feita por Müntzer desagradou tanto aos que permaneciam fieis a Roma como a Lutero que trabalhou para que seu antigo amigo fosse afastado da cidade em 1521. Dirigiu-se ele para Praga onde continuou a pregação milenarista a fim de formar a Nova Igreja que iria preparar a Nova Jerusalém. Não tardou a ser dali também expulso. Em 1523 foi aceito como pastor em Allstedt onde passou a celebrar a Eucaristia em alemão (antes de Lutero) e reformou a liturgia. Sua pregação atraía multidões de toda a região, especialmente camponeses que se sentiam representados em sua ânsia por justiça presente nos sermões que pregavam a destruição de toda hierarquia social.
Sua radicalização da reforma levou-o à ruptura com Lutero e a ser investigado por Frederico, o Sábio. Lutero via com preocupação a substituição de sola scriptura pelo sola experientia. E os governantes temiam a sublevação que o pregador levantava entre os camponeses. (LINDBERG, 2001, p. 183). Müntzer acusava Lutero de ser conivente com a opressão dos camponeses pelos príncipes. Lutero, na Carta aos príncipes da Saxônia sobre o Espírito revoltoso (1524), condenou os fundamentos teológicos e políticos da pregação de seu ex-companheiro de reforma.
Expulso de Allstedt, Müntzer, assumindo cada vez mais as figuras proféticas do Antigo Testamento, viajou por diversos lugares em busca de apoio até estabelecer-se, em fevereiro de 1525, em Mühlhausen, onde se tornou pastor. Os contatos que fizera durante as viagens e sua liderança carismática, fez com que, em poucas semanas, emergisse como líder do povo simples que, por todos os territórios, começavam a organizar-se contra a opressão dos príncipes – civis e eclesiásticos – naquilo que ficou conhecida como a “Revolta dos Camponeses”.
Acreditando-se movido pelo Espírito Santo e que, na hora da batalha final, Deus interviria em favor de seus eleitos, Müntzer, à frente de uma multidão de camponeses, enfrentou, na cidade de Frankenhausen, as forças imperiais que, quase sem nenhuma perda, massacraram a mais de cinco mil camponeses. O profeta foi preso, torturado e decapitado em 27 de maio de 1525. Os que sobreviveram ao massacre, espalharam-se pelas florestas da Turíngia onde, certos de serem guiados pelo Espírito Santo, continuaram a “revolução do homem comum” contra os velhos e novos opressores (LINDBERG, 2001, p. 191-194).
A confluência, em Thomás Müntzer, entre experiência espiritual e sublevação social fez com que fosse considerado por Ernest Bloch (1973), como precursor do movimento revolucionário moderno e por Hugo Etchegaray (1989) como um protótipo da teologia da libertação política.
Se Tomas Müntzer foi a principal figura a “desenvolver as consequências políticas e religiosas do espiritualismo” na medida em que compreendia que “a ordem interior do Espírito levava diretamente à mudança da ordem exterior do mundo” fazendo do misticismo cristão “a base teológica para a revolução” (LINDBERG, 2001, p. 73), houve outros reformadores que, a partir da mesma experiência, tomaram outros caminhos menos tormentosos em sua busca espiritual.
Neste diferente percurso destaca-se Hans Denck (c. 1500-1527). Assim como Müntzer, ele discordava da afirmação de Lutero e Zwínglio de que a Escritura, estudada e entendida em sentido literal, conduz à salvação. Para Denck, a letra da Bíblia é apenas um ponto exterior de contato, uma ilustração do caminho espiritual de salvação. Assim como os sacramentos, Eucaristia e Batismo incluídos, ela não tem qualquer valor salvífico. E, para os que a ela recorrem, a correta interpretação acontece mediante a iluminação do Espírito que se dá no interior de cada pessoal e não pela interpretação da autoridade, seja eclesiástica ou teológica.
Da iluminação interior proposta por Denck, passamos a outro espiritualista inovador que propunha uma religião puramente interior. Trata-se de Sebastian Franck (1499-1542). Discordando tanto dos romanos como dos luteranos, zwinglianos e batistas, Franck colocava a relação do ser humano com Deus exclusivamente na relação subjetiva. Para ele, “o afastamento do sistema religiosos exterior deveria ir até o afastamento de qualquer comunidade religiosa, levando os piedosos a se concentra na luz divina em seu próprio interior: ela está presente no íntimo de qualquer ser humano” (KAUFMANN, 2014, p. 297).
O pentecostalismo moderno
O pentecostalismo moderno nasceu nos Estados Unidos e teve como seu berço o “movimento de santidade” inspirado no conceito de John Wesley acerca da perfeição humana que afirmava a necessidade de diferenciar a santidade da justificação e que a santidade é uma segunda obra de Deus (WULFHORST, 1995, p. 7). A intensa mobilidade social gerada pela imigração e pelo deslocamento ao oeste foi acompanhada também por uma instabilidade religiosa que se expressou nos movimentos de avivamento que, na metade do século XVIII e início do séc. XIX, deram nova dinâmica às igrejas tradicionais e “produziu um tipo diferente de cristianismo, mais emocional, mais independentes das antigas estruturas e tradições, mais desejoso de novas formas de experimentar o sagrado”. (MATOS, 2016, p. 2).
Já na segunda metade do séc. XIX, a Guerra de Secessão deixou uma nação destroçada e, seu fim, um horizonte de esperanças de reconstrução em meio ao caos. Nesse contexto surgiram, em várias denominações, movimentos de avivamento com experiências extáticas e o chamado para receber o “Batismo no Espírito Santo”. A partir da década de 1880, com a rejeição por parte das igrejas tradicionais a esses movimentos, surgem igrejas independentes que se tornarão o berço do movimento pentecostal. (CAMPOS, 2005, p. 105-106).
Tal qual o conhecemos hoje, o pentecostalismo tem sua referência inicial na obra do pastor metodista Charles Parham (1873-1929). Ele foi o primeiro a fazer a ligação entre experiências extáticas e glossolalias com o “batismo do Espírito Santo” tal qual narrado nos Atos dos Apóstolos. Tais manifestações seriam a “terceira bênção” que viria completar as duas primeiras, a conversão e a santificação. A partir de Topeka, no Kansas, onde mantinha sua escola bíblica, Parham percorreu, em pregações, por vários estados. Em 1905, em Houston, no Texas, entre os assistentes de sua pregação estava o jovem William Seymour que, por ser negro, não podia entrar no local do culto.
No ano seguinte, em Los Angeles, William Seymour (1870-1922) iniciaria sua carreira de pregador com as típicas expressões pentecostais: cânticos, orações espontâneas, glossolalias, pregação, curas, milagres, prodígios e muita emoção. Era uma experiência aberta a todas as pessoas e a todas as raças: ricos e pobres, negros, brancos, latinos. Da “Nova Jerusalém” de Azusa Street partiram pregadores para todos os Estados Unidos. Dois anos após seu início em Los Ângeles, a Missão de Azusa já estava presente no México, Canadá, na Europa, África e Rússia (RAUSCH, 2012, 26).
A partir de 1908, o movimento foi-se dividindo cada vez mais entre pentecostalismo branco e pentecostalismo negro. O primeiro voltado para a classe média e nitidamente espiritualista. O segundo, para os negros e pobres e ligado às necessidades básicas da vida (WULFHORST, 1995, p. 7-8.
No Brasil, o pentecostalismo desembarcou no início do séc. XX por dois caminhos. O primeiro, o dos imigrantes europeus que, em 1910, em São Paulo, em meio às turbulências sociais resultantes da urbanização e industrialização, por iniciativa do italiano Louis Francescon, fundaram a Congregação Cristã no Brasil. O segundo caminho foi o da importação do pentecostalismo norte-americano que, em 1911, em Belém de Pará, por iniciativa de Daniel Berg e Gunnar Vingren, fundou a Missão da Fé Apostólica que, seis, sete anos depois, assumiria o nome de Assembleia de Deus no Brasil. A primeira nasceu de uma dissidência presbiteriana; a segunda, de um núcleo batista que não reconhecia a legitimidade das práticas pentecostais. Os três pais fundadores do pentecostalismo brasileiro tiveram sua formação no pentecostalismo branco de tendência espiritualista dos Estados Unidos (ROLIM, 1995, p. 21-26).
Em 1948 foi a vez da Igreja do Evangelho Quadrangular, também de origem norte-americana, instalar-se no Brasil. O ano de 1955 viu surgir a primeira igreja pentecostal brasileira. Manuel de Melo, depois de congregar na Assembleia de Deus e na Igreja Quadrangular, fundou a Igreja O Brasil para Cristo que, rapidamente, se espalhou por vários estados introduzindo, entre suas preocupações, o ativismo político. Em 1970, no Rio de Janeiro, por iniciativa do pastor canadense Robert MacAlister, foi fundada a Igreja Pentecostal de Nova Vida. Diferentemente das anteriores que nasceram e mantiveram como público preferencial as classes populares, esta voltou-se para a classe média urbana. Outra igreja pentecostal a organizar-se foi a Igreja Pentecostal Deus é amor, fundada em 1973, em São Paulo, por Davi Miranda (WULFHORST, 1995, p. 13). Destas primeiras igrejas pentecostais, surgiram, em todo o Brasil, inúmeras outras igrejas de alcance local e regional (ROLIM, 1982).
De uma dissidência da Igreja de Nova Vida, em 1977, nasceram as duas principais igrejas neopentecostais do Brasil. A Igreja Universal do Reino de Deus liderada por Edir Macedo e a Igreja Internacional da Graça de Deus por Romildo Ribeiro Soares. Na sequência, milhares de outras, de maior ou menor alcance, surgiram em todo o Brasil. Segundo Oro (1996) em sua grande diversidade, o neopentecostalismo guarda algumas características comuns que fazem dele um modo particular de ser cristão: é uma religião dos desfavorecidos; a liderança é forte; afirma o exclusivismo salvacionista; a forte emocionalidade; o uso de meio eletrônicos; a cura divina, especialmente o exorcismo; a estrutura empresarial.
Costuma-se ver, na evolução do pentecostalismo, três grandes ondas. A primeira, o do pentecostalismo do início do séc. XX, tem como ênfase o uso dos dons, principalmente a glossolalia. A segunda, iniciada na década de 1950, engloba os movimentos carismáticos dentro das igrejas históricas, tanto as da reforma como o da Igreja Católico na qual a expressão mais conhecida é a Renovação Carismática Católica. Fazem parte desta onda a Igreja do Evangelho Quadrangular e as brasileiras Brasil para Cristo e Deus é Amor. Sua principal característica é a cura. A terceira onda, o neo-pentecostalismo, deixa em segundo plano a experiência do Espírito Santo e suas manifestações clássicas e acentua o poder que vem de Deus e traz prosperidade ao fiel (RAUSCH, 2012, p. 26-27; PEDDE, 1997, p. 245-246).
A Renovação Carismática Católica – grupo pentecostal mais expressivo no catolicismo romano – surgiu nos Estados Unidos no ano de 1967, no meio universitário. Ela seguia basicamente o padrão dos movimentos carismáticos das outras igrejas tradicionais e das igrejas pentecostais. (FORD, 1972). Recebida com entusiasmo por parte da hierarquia, não deixou também de receber fortes críticas por parte de teólogos e pastores (CONGAR, 2005B, p. 195-300). Rapidamente espalhou-se por todos os continentes e, em 1973, realizou, em Roma, seu primeiro Congresso Internacional onde recebeu a aprovação papal. Dos Estados Unidos migrou para o Brasil no ano de 1976 onde, atualmente, constitui a maior rede orgânica de católicos com forte presença nos meios de comunicação e inserção no mundo político. (CARRANZA, 2000; BOFF, 2000, p. 36-49).
Ainda no meio Católico Romano, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), surgidas na década de 1960 no meio popular e vinculadas às lutas por melhores condições de vida, reivindicam-se como “uma nova forma de ser Igreja, que renasce a partir dos pobres sob a força dinamizadora do Espírito”. (TEIXEIRA, 1996, p. 29). Mesmo apresentando características sociais, eclesiais e eclesiológicas em muitos casos divergentes, RCC e CEBs tem muitos elementos em comum, fruto de sua experiência espiritual centrada na pessoa do Espírito Santo. (IULIANELLI, 1997; RUBENS, 2008).
O pentecostalismo hoje desenvolve-se de modo especial no hemisfério sul. Na Ásia, as igrejas que mais crescem são as pentecostais. Estima-se que em torno de 600 milhões de cristãos vivam sua fé, hoje, no mundo, no modo pentecostal de ser. Somados os que se afiliam a uma igreja pentecostal e os que, nas igrejas históricas se exprimem nas características do pentecostalismo, um quarto dos cristãos são pentecostais. (RAUSCH, 2012, p. 24-26).
Na América Latina, continente tradicionalmente católico, em torno de 20% da população se identifica com alguma corrente pentecostal. No Brasil, esse total alcança um quarto da população. Em vários países – Brasil incluído – além de fenômeno religioso, os pentecostais são também um fenômeno cultural e político em plena ascendência. (SELMÁN, 2019).
Concluindo
O pentecostalismo veio para ficar porque ele nunca esteve ausente da história do cristianismo. Seu caráter surpreendente e contestatário da ordem social e eclesiástica vigente fez com que as histórias oficiais das igrejas o relegassem a um fenômeno secundário beirando à heresia ou, em alguns casos, simplesmente classificado como herético. Por isso sua presença renitente hoje talvez surpreenda a muitos que só veem a história curta.
Se olhamos o longo percurso de dois milênios, são poucos os séculos em que, em um lugar ou outro onde a Igreja de Cristo se fez presente, também aí esteve a “Igreja do Espírito Santo”. Talvez seja a hora de superar o cristomonismo que muito marca a expressão ocidental das igrejas e, incorporando a experiência pentecostal, construirmos uma igreja trinitária, pericorética, circular, sinodal.
Uma igreja preocupada em resgatar a sua radicalidade originária, talvez não tanto pelas experiências exteriores – glossolalia, êxtases, curas e exorcismos -, mas pela fidelidade à Boa Nova e ao sonho de uma Nova Jerusalém onde haja lugar para todas as pessoas, especialmente para os marginalizados da sociedade em que vivemos.
Como pudemos ver na brevidade de nosso percurso, a maioria dos movimentos que se reclamam do Espírito Santo surgem em momentos turbulentos da sociedade e da Igreja. E, também na maior parte dos casos, suas principais expressões nascem dentre os grupos marginalizados pela sociedade e pela instituição eclesiástica. Não por acaso, a liderança feminina é presente em muitos deles. Uma investigação específica sobre este aspecto seria necessária e urgente num tempo em que o cristianismo, principalmente o vivido nas igrejas ditas históricas, está buscando novos rumos.
Por fim, um último indicativo talvez seja o de um cristianismo inspirado pelo Espírito no interior de cada pessoa que, sem desprezar a institucionalidade, crie o ambiente para que cada pessoa possa fazer a experiência de ser habitado por Deus.
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[*] Frade Menor Capuchinho. Doutor em Teologia. Licenciado em Filosofia. Professor na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF – Porto Alegre, RS). Endereço: freivanildo@gmail.com