Arquivo mensal: outubro 2020

FRATELLI TUTTI – UMA POLÍTICA PARA ALÉM DA MODERNIDADE

SS. Papa Francesco – Udienza Movimenti Popolari 05-11-2016 @Servizio Fotografico – L’Osservatore Romano

A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos. (Papa Francisco, FT 69).

De forma esquemática, podemos dizer que a história da relação do cristianismo com a política tem dois grandes marcos. O primeiro, a “virada constantiniana” do séc. IV, quando o Imperador Constantino se aproximou do cristianismo e as lideranças cristãs aceitaram esta oportunidade como um modo de viver pacificamente e expandir a fé cristã por todo o mundo conhecido de então.

Deste ponto inicial e numa série de movimentos muito variados configurou-se o que os historiadores chamam de cristandade: a união entre o poder político e o poder religioso. Foi um modus vivendi que se prolongou até o segundo grande evento, tão significativo quanto o primeiro: a Revolução Francesa e, nela, a separação entre Igreja e Estado. Separação traumática, consequência da ruptura de um laço profundo e sólido que se havia constituído ao longo dos séculos.

No período posterior à Revolução Francesa, para alguns, ser católico era ser contra a democracia, ser contra a soberania popular e negar os direitos humanos. Um modo de pensar que foi a doutrina oficial da Igreja durante o séc. XIX e só começou a mudar, lentamente, com o avanço da Doutrina Social da Igreja. O Vaticano II veio sepultar o sonho da volta das monarquias católicas e da união entre o trono e o altar. Sempre há alguns, claro, que sonham com esse passado. São os bufões da história cujas posturas caricaturais nem risos mais fazem despertar.

O fato é que o ideal iluminista da “liberdade, igualdade e fraternidade” se impôs como parâmetro político. Da diferente articulação dos três elementos surgiram variados modelos políticos. Por um lado, tivemos as sociedades que privilegiaram a liberdade e deixaram em segundo plano a igualdade. O indivíduo como sujeito político e a livre iniciativa econômica se tornaram os grandes valores neste modelo. Do outro lado, as sociedades que colocaram a igualdade no centro e deixaram a liberdade em segundo plano. A coletividade como sujeito político e o planejamento estatal tiveram mais importância neste modelo.

Os dois modelos tiveram seus êxitos e seus limites. Processos criativos houve em ambos os lados. Assim como em ambos os lados houve exacerbações que culminaram em individualismos excludentes ou regimes totalitários.

Para dar um passo adiante e sanar a crise que acossa a humanidade, o Papa Francisco propõe que resgatemos o terceiro elemento: a fraternidade. Ela ficou na sombra tanto no modelo liberal como nos projetos socialistas reais. Mas o que seria um projeto político baseado na fraternidade? Simples: pensar a vida em sociedade não apenas como um pacto entre sócios. O pacto é importante e não pode ser negado. É a partir dele que se formam as democracias. Mas é preciso ir além. É preciso incorporar na lógica política aqueles e aquelas que sequer tem condições para participar de um pacto social.

É preciso incorporar no fazer político a categoria de “próximo”, ou seja, incluir como sujeitos os grupos sociais e as nações que hoje jazem à beira do caminho da humanidade. É preciso acolher e colocar no centro da ação política os clamores que hoje não são ouvidos. No interno dos países, estados e cidades, escutar os fracos da sociedade: minorias sociais, étnicas, sexuais, de gênero, idade, condição sanitária… Na política internacional, as nações que, de tão empobrecidas, sequer contam no jogo político e econômico mundial. E o grande próximo e esquecido de quase todos os projetos políticos: a criação, tanto em seus seres particulares como nos grandes biomas.

Nas democracias, o poder emana das maiorias. Essa é a virtude da política moderna. Mas é também o seu defeito. Para superá-lo, não se anda para trás. É preciso radicalizar a democracia incluindo nela as vozes das minorias. Só assim liberdade e igualdade chegarão ao justo equilíbrio, pois cada um será considerado na igual dignidade a partir daquilo que o faz diferente de todos os outros. Teremos então uma sociedade fraterna para todos e todas.

Em seus encontros com os Movimentos Populares e na Laudato Sì, o Papa Francisco deu o exemplo deste novo jeito de fazer política. É nessa direção que os cristãos são convidados a impulsionar o jogo político. Não para trás, para a Idade Média. Caminhamos para o futuro, para além da modernidade.

Fratelli Tutti – Extra Misericordiam Nulla Salus

Fratelli Tutti se situa explicitamente na corrente do Ensino Social da Igreja. Ela se propõe a orientar o viver e o agir dos cristãos no mundo de hoje. E o faz a partir da fé, de uma leitura teológica da realidade e da ação necessária para transformá-la. Entre os muitos elementos teológicos presentes no texto, dois se destacam. Um de fundo e outro operacional. O primeiro responde à questão “por que ser irmãos e amigos”. A resposta é simples: porque somos filhos do mesmo Deus que é Pai de toda a humanidade. Desde a referência inicial a Francisco de Assis até a Oração Ecumênica final onde invoca “Deus nosso Trindade de Amor”, este motivo está explicitamente presente.

Mas o mais provocador e longamente tratado é o “como ser irmão e amigo”. É o teológico operacional da Encíclica e ocupa todo o segundo capítulo. Trata-se do Princípio Misericórdia. Esta é uma expressão elaborada pelo teólogo jesuíta Jon Sobrino, que é, inclusive, título de um livro seu. Para quem segue os passos, as falas e os textos do Papa, a argumentação não é desconhecida.

Em seu terceiro ano de pontificado, em 2015, como todos lembramos, o Papa Francisco proclamou um Ano Santo Extraordinário. Na Bula “O Rosto da Misericórdia”, o texto que faz a conexão com o Concílio Vaticano II é o do samaritano. João XXIII, ao convocar o Concílio, afirmou que a misericórdia é o modo como a Igreja deve situar-se no mundo moderno. Essa mesma parábola, tão rica em imagens e ensinamentos, é retomada como paradigma para a construção de uma nova humanidade e uma nova sociedade.

O marco da parábola é um diálogo entre Jesus e um perito em leis. Este pergunta a Jesus o que deve fazer para alcançar a salvação. A parábola com a qual Jesus responde todos a conhecemos… e por isso vamos diretamente ao fim quando Jesus, diante do desconcertado legista, cita uma frase do Livro dos Provérbios: “Fazer misericórdia e fazer justiça agrada mais a Deus do que oferecer muitos sacrifícios”. Todos lembramos que, na parábola, um sacerdote e um levita haviam passado pelo caído sem fazer nada porque tinham que ir ao Templo oferecer sacrifícios. Com uma simples narrativa, Jesus coloca em questão todo o sistema religioso da época, tanto os legalistas como os ritualistas. E, para espanto dos moralistas, um samaritano, estrangeiro, herege e impuro, é apresentado como modelo de salvação.

Para quem, como o Papa Francisco, se coloca na tradição de Francisco de Assis, a parábola é ainda mais instigante. Ela remete à conversão do jovem Bernardone. No seu Testamento, ao descrever a conversão provocada pelo encontro com os leprosos, São Francisco utiliza a expressão do Livro dos Provérbios e da parábola do samaritano misericordioso: “…como estava em pecados, parecia-me por demais amargo ver os leprosos. E o próprio Senhor me levou para o meio deles, e fiz misericórdia com eles”.

Fazer misericórdia! Este é o imperativo para a construção de uma nova humanidade e de uma nova sociedade. Não basta “ter” misericórdia. É preciso “fazer” misericórdia. Ter é para si. Fazer, é para o outro, para aquele que foi assaltado, espancado e abandonado na beira do caminho. Para Francisco de Assis, o apelo por misericórdia vem dos leprosos jogados para fora das cidades medievais. Vai ao encontro, desce do cavalo, beija, cuida, recoloca em humanidade. Jon Sobrino, nosso teólogo salvadorenho, no subtítulo de seu livro, chama os cristãos a “descer da cruz os povos crucificados”. Com efeito, a misericórdia não é uma atitude individual. Ela é comunitária, coletiva, política. É o princípio que rege a salvação de cada pessoa, sim, mas também da Igreja e toda a sociedade.

Fora da misericórdia, não há salvação. É o apelo da fé que precisa chegar à razão e ser transformado em ação.

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Num mundo em conflito, Todos Irmãos!

Papa Francisco e o Grande Imã Ahmed At-Tayyeb,

De tanto surpreender-nos, o Papa Francisco já não surpreende ninguém! A  novidade que, desde o início de seu pontificado, emerge a cada pronunciamento e texto publicado, fez com que nos acostumássemos com o novo que se renova e nos surpreende a cada vez.

Não foi diferente com sua última encíclica, a Fratelli Tutti. Ele já vinha cozinhando o assunto há tempo. A primeira parte, a que trata das relações da humanidade com a Casa Comum, resultou na Encíclica Laudato Sì. Faltava a segunda parte sobre as relações entre os humanos, no nível internacional e dentro de cada nação. Agora aí está. É a segunda encíclica social de Francisco. Se a Laudato Sì inovou ao tratar pela primeira vez num documento papal da questão ecológica, a Fratelli Tutti retoma a intuição original do Ensino Social da Igreja ao abordar os dilemas econômicos e sociais que afligem a sociedade.

Pela forma e pelo conteúdo, ela é herdeira de um longo processo que começou em 1891, com a primeira encíclica social, a Rerum Novarum do Papa Leão XIII. No final do séc. XIX, a Europa vivia o caos do liberalismo econômico que havia criado riquezas como nunca antes na história da humanidade ao custo de milhões de homens, mulheres e crianças forçados a viver na mais absoluta miséria ou obrigados a migrar para outros continentes em busca de melhores condições de vida.

Em reação ao liberalismo, surgira o movimento operário e suas expressões políticas socialistas e comunistas que se elevavam no horizonte como um fantasma aterrador. O caos parecia estar à porta. E, de fato, estava. A voz firme e serena do Papa Leão XIII não foi ouvida e a Europa mergulhou na Primeira Guerra Mundial.

Os acordos de 1918 não significaram o fim dos problemas. Como não se foi à raiz econômica e social, os conflitos do capitalismo encontraram expressão nas ideologias totalitárias. Outra vez a voz da Igreja se se fez ouvir. Em 1931, o Papa Pio XI, na Encíclica Non Abbiamo Bisogno (Não Temos Necessidade) condenou veementemente o fascismo. Seis anos depois, em 1937, o mesmo Papa, na Encíclica Mit Brennender Sorge (Com Grande Preocupação), condenou o nazismo. No mesmo ano, a Encíclica Divini Redemptoris (O Divino Redentor), condenou o comunismo. O alerta não foi ouvido e o mundo mergulhou na Segunda Guerra Mundial com suas catastróficas consequências.

E, mais uma vez, como o problema de fundo não foi resolvido, o fim da guerra não significou a instauração da paz. O conflito continuou na Guerra Fria que dividiu a humanidade em duas partes em constante tensão. Em 1963, o Papa João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris (Paz na Terra), lembrava ao mundo que a paz de todos os povos só seria alcançada na base da verdade, justiça, caridade e liberdade.

Caminho difícil que os poderosos renegaram. A Guerra Fria se transmutou em guerra econômica global e a humanidade, ao invés de caminhar para a integração e harmonia, é arrastada para a beligerância e caos de um neoliberalismo em que os seres humanos são, ao mesmo tempo e apenas, consumidores e mercadoria.

Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco, retomando a intuição de Francisco de Assis, convida a redescobrir que cada ser humano, distante ou próximo, é nosso irmão e com ele somos convidados a conviver na fraternidade e na amizade. Teremos disponibilidade para ouvir a voz que clama no deserto dos poderes deste mundo? A esperança me diz que sim. o resalismo me faz temer…

A cada um de nós o desafio de dar resposta e trabalhar para que ela se torne real no nosso dia a dia e no mundo todo.

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Aparecida!

Basta falar o nome e todos já conhecem a história do Santuário mais famoso do Brasil. O Santuário de Aparecida, na beira do Rio Paraíba, no interior de São Paulo. Foi lá que, no ano de 1717, três pescadores – Domingos, Filipe e João – ao buscar peixes para o almoço de uma comitiva que baixava de Minas para o litoral, antes que as redes se enchessem, encontraram, primeiro o corpo, depois, a cabeça de uma santa.

Juntadas as duas peças, era a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Mas ela tinha algo de especial. Era uma imagem ao mesmo tempo diferente e igual. Era igual porque nela se reconhecia claramente a Imaculada Conceição. Mas era diferente, porque seu rosto era semelhante ao dos pescadores que a encontraram nas águas do Paraíba. Tinha o rosto deles, de suas esposas, de suas filhas, de suas mães. Um rosto negro, a pele negra, as mãos negras. E os anjos que descansavam a seus pés também eram negros. Anjos negros, bem diferentes dos que, com suas peles alvas e rostos rosados, enfeitavam as igrejas dos brancos da cidade de Guaratinguetá e das barrocas igrejas das Minas Gerais de onde vinham os ilustres viajantes.

Quem fez aquela imagem? E por que a fez daquele jeito? Ninguém sabia. Até hoje ninguém sabe. Não há outras iguais em outros lugares. É única. Tão diferente das outras imagens da Conceição. E há tantas e tão variadas. Mas só a encontrada no Rio Paraíba é negra. Só ela tem o rosto, a pele, as mãos, os anjos reproduzindo a carne dos homens e das mulheres que, sob o jugo da escravidão, foram trazidos da África para padecer nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar, nas lavouras de cacau e café, nas minas, campos e cidades.

Talvez seu escultor tenha sido um dos tantos milhões de africanos que, no escondido da noite, no fundo da senzala, longe dos olhos do seu senhor, tomou um pedaço de madeira e, com a força e a suavidade de quem chora a dor da escravidão e sonha com um futuro de liberdade, cinzelou pensando no rosto e no corpo de sua esposa, de sua mãe, de suas filhas, que na África ficaram.

Ou talvez seja obra de uma mulher negra que, privada de seus filhos e obrigada a cuidar de rebentos que não eram seus, colocou na imagem a força e o vigor da Mãe África, tão distante na geografia e tão presente no seu rosto, na sua pele, em suas mãos e nos seus pés.

São hipóteses. Apenas hipóteses. Não sabemos quem esculpiu aquela Imaculada Conceição. Assim como não sabemos como ela foi parar no fundo do Rio Paraíba. E por que lá foi jogada depois de ser quebrada em dois pedaços. Quem a quebrou? Quem no rio a jogou? Não sabemos. Ninguém nunca perguntou. Ninguém investigou. É possível que nunca saibamos. Só podemos imaginar…

Talvez tenha sido um daqueles senhores, incomodado com o escravizado que perdia seu tempo a esculpir uma imagem de uma santa. Ou talvez uma senhora perturbada porque a santa era negra, de pele negra, de mãos negras, acompanhada por anjos negros. Não sabemos. É apenas uma hipótese. Mas uma hipótese a se cogitar. Uma hipótese que nos leva a perguntar: porque a Mãe Negra Aparecida se deixou encontrar por Domingos, Filipe e João, nas turvas águas do Paraíba? Não sabemos. Mas podemos a ela perguntar. Ela está no Santuário. Ela está em todo lugar. Basta abrir o coração. Basta rezar.