Arquivo mensal: julho 2020

O paradoxo da abundância.

Comer é um ato biológico. Nosso corpo precisa ser provido dos nutrientes necessários para permanecer vivo. Se não comemos, morremos. Por isso a fome é algo tão terrível. Ela é a antessala da morte. A pessoa que está com fome, para comer, ou seja, para sobreviver, é capaz de qualquer coisa: trapacear, roubar e, no limite, até matar.

Mas, comer, é também um ato social. Amostra disto é afirmação de que, mais importante do que comemos, é com quem comemos. Como diz a Bíblia no Livro dos Provérbios, “é melhor comer um prato de hortaliças, onde há amor, do que ter um boi gordo acompanhado de ódio na refeição”. A forma como são produzidos, intercambiados e consumidos os alimentos revelam a verdadeira natureza de uma sociedade.

A comida, por ser indispensável para a sobrevivência e por ser símbolo de relações sociais, é um elemento presente em todas as religiões, inclusive no cristianismo. Nos Evangelhos, há mais comida e refeições do que milagres e exorcismos. Se tomamos, por exemplo, o Evangelho de João, a obra do Salvador começa com uma festa de casamento em Caná onde ele transforma a água em vinho e termina com um encontro do Ressuscitado com os discípulos à beira do lago onde Jesus partilha pão e peixe assado com seus amigos e amigas.

Partilha de comida e bebida que, durante o percurso da Galileia até Jerusalém, Jesus já havia feito em muitos lugares e com muitas pessoas. Na casa de pobres e de ricos, de santos e de pecadores, de homens e de mulheres, de judeus e de estrangeiros. Às vezes comendo e bebendo muito, a ponto de dizerem que era um comilão e um beberrão. Outras vezes, comendo as sobras ou o quase nada do que as pessoas tinham. E, em algumas situações, até roubando o trigo da beira da estrada para poder saciar a fome dos discípulos.

Mas acima de tudo e em todas as ocasiões, ensinando que a comida deve ser partilhada sem que ninguém fique de fora. Quando os discípulos, vendo a multidão com fome, pedem que o Mestre mande todos embora para que cada um se vire como pode, Jesus ensina que a partilha é o caminho para que todos fiquem saciados. E dos cinco pães e dois peixes nasce a consciência e a prática de que, para que todos comam, é preciso que os que tem muito partilhem com os que pouco ou nada têm.

No tempo de Jesus, assim como hoje, o problema não é a falta de comida. É a falta de partilha. No mundo, há comida de sobra. No caso do Brasil, somos o maior exportador mundial de alimentos. E, mesmo assim, há gente passando fome…

Como dizia o Papa João Paulo II na Inauguração da Primeira Conferência da ONU sobre alimentação no ano de 1992, vivemos o “paradoxo da abundância”: há alimento para todos, mas nem todos podem comer.

Precisamos de novo, aprender com Jesus: que a partilha do pão, do peixe, do vinho, da alegria e da mesa aberta para todos e todas, nos ajude a matar a fome de comida e o anseio por uma nova e justa sociedade.

Nole mi tangere!

Dia 22 de julho a Igreja celebra Santa Maria Madalena. E o faz com uma festa. Dentro das categorias litúrgicas, é o modo mais elevado de lembrar um santo, no caso, uma santa. A elevação de categoria litúrgica de Maria Madalena aconteceu em 2016 por decisão do Papa Francisco. Até então, celebrava-se apenas a memória desta mulher.

A decisão não foi uma inovação. Na Idade Média, vários teólogos, incluído Santo Tomás de Aquino, a chamaram de “apóstola dos apóstolos”. Título mais do que merecido pois, segundo os Evangelhos, foi a encarregada por Jesus de anunciar a ressurreição aos outros discípulos.

Ela fazia parte do grupo dos seguidores e seguidoras do Mestre desde a Galileia. Juntamente com Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Susana e muitas outras, elas sustentavam o grupo com seus bens. Eram mulheres poderosas e independentes que, contrariando as tradições e leis, abandonaram tudo para seguir Jesus.

Maria Madalena é uma das personagens mais frequentes nos evangelhos. Quatorze vezes é citada nominalmente. Acompanhou Jesus até Jerusalém e, junto com a mãe de Jesus e as outras mulheres, foi das poucas que presenciaram a crucificação.

Além de discípula fiel e apóstola de primeira hora, a única informação que dela nos dão os evangelhos é que foi libertada de sete demônios. Em linguagem bíblica, era uma pessoa que sofria muito e, no encontro com Jesus, foi libertada. De que ela sofria? Os evangelhos nada dizem.

Por que então a tradição associou Maria Madalena a uma prostituta? É uma boa pergunta… A primeira vez que isso aconteceu foi num sermão de São Gregório Magno, pronunciado no ano de 591 d.C. No sermão, o Papa confunde a Madalena com a mulher adúltera e com a Maria que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas. Uma indevida ligação que que se perpetuou em sermões e obras de arte e chegou até o cinema contemporâneo.

E mais: por que durante séculos tal associação foi aceita acriticamente? Também é uma boa pergunta… Não sei se tenho uma boa resposta para as duas boas perguntas. Mas tenho, no mínimo, uma suspeita: a dificuldade, tanto na Igreja como na sociedade, em aceitar o protagonismo das. São Gregório Magno, em seu sermão, já deixou a dica. Maria, a Mãe de Jesus, era o modelo de mulher submissa. Madalena, a de mulher independente que se arrepende e passa a ser submissa.

São João Paulo II, na Encíclica sobre a Dignidade da Mulher, lembra que estamos em outros tempos e precisamos reconhecer a dignidade e protagonismo das mulheres na sociedade e na Igreja. Nessa mudança, é preciso ouvir das mulheres de hoje, aquilo que Jesus disse outrora a Maria de Magdala: “Noli me tangere! Não me detenhas!” Elas pedem passagem.

*Imagem: “Nole mi tangere!” de Fra Angelico (c. 1440).

A Lei do Retorno

Sou avesso a todo determinismo. Desde os simples até os científicos e religiosos. Não acho que “tal pai, tal filho” seja insuperável. A experiência nos diz que, felizmente, os filhos são, quase sempre, muito diferentes dos pais. E com isso fica eliminado o “a fruta não cai longe da árvore”. E o preconceito de que os povos originários de climas frios e temperados são trabalhadores e previdentes e que aqueles das regiões tropicais são malandros e indolentes. Assim o queria um certo vice-presidente de uma república onde mais da metade da população se autodeclara preta, parda ou amarela… Ele incluído!

Também não é comprovado que quem nasce na favela seja potencial bandido e quem cresceu no condomínio está fadado a ser “doutor”. A incipiente e ameaçada experiência das cotas, do PROUNI e do FIES mostra que todos e todas, independentemente da origem social, quando têm as necessárias condições, podem alcançar todos os lugares sociais. Mas, na nossa sociedade de poucas oportunidades, quando um se move, tira o lugar de outro. E isso incomoda…

Apesar de Freud, fica difícil comprovar que somos nada mais que os frutos dos traumas de nossa infância. Se assim fosse, faltariam psicólogos! E, contra Marx, que o desenvolvimento das forças produtivas leva necessariamente ao comunismo. E se a mão invisível do mercado trouxesse inexoravelmente a riqueza para todos, como dizia Adam Smith e hoje continuam a repetir os ajurujurás ministeriais de ocasião, a pobreza do Brasil e do mundo já teria encontrado solução. E, a cada crise, as grandes empresas não estariam correndo em busca de socorro das burras públicas.

E também é insustentável dizer que se os pais comem uvas verdes, os filhos nascem com os dentes enfraquecidos. Está na Bíblia. Mas a Bíblia é a verdade divina dita com palavras humanas. E o dizer humano nem sempre consegue transmitir o querer divino. Às vezes colocamos na boca de Deus nossos desejos e sentimentos.

Com efeito, o campo da religião é propício para os determinismos mais perigosos. Desde a lei da causa e do efeito até a doutrina da predestinação. Não sou especialista em budismo, hinduísmo e espiritismo, mas, no que se refere à fé cristã, a liberdade do ser humano é respeitada por Deus até as últimas consequências. E, mesmo que o ser humano se decida contra aquilo que Deus deseja – ele não determina! – para além e acima de todo pecado, está a graça divina que respeita o agir humano. Complexo, mas só assim Deus é Deus e o ser humano é humano. Fora disso, o divino se transforma em tirano e o humano em marionete. Aí já não há mais religião. Há fanatismo e escravidão.

Calvino e Jansênio me dão arrepios espirituais. Entre Lutero e Armínio, fico com os dois sem eliminar nenhum. Bem assim como o fez o Concílio de Trento.

Isso posto, devo confessar que, às vezes, dá um prazer enorme dizer: aqui se faz, aqui se paga! Mas, fiquem tranquilos: vou me confessar!

Imagem: “Marionete”, por Alex Silva by Flickr

Será que nem desenhando?

Uma das figuras mais usadas na literatura, principalmente na oriental, é a parábola. Ela é leve, deliciosa, facilmente memorizável e altamente instrutiva. A estrutura da parábola é simples. Uma alegoria que, inserida numa rápida narrativa com poucos personagens, apresenta um ensinamento útil.

A maioria de nós, ao ouvir falar em parábolas, logo as associamos a Jesus. Como outros pregadores, ele a utilizou com maestria. Tomava situações do quotidiano e, a partir delas, procurava transmitir seu ensinamento.

A utilização de tal método por parte de Jesus muitas vezes funcionou. Podemos percebê-lo pelas reações dos ouvintes. Alguns vibravam com o que Jesus dizia. Outros entendiam tão bem que partiam para cima de Jesus para prendê-lo e matá-lo. É o caso, por exemplo, dos fariseus e sacerdotes que entendem muito bem o que Jesus quer dizer com a parábola dos vinhateiros assassinos.

Mas a parábola, ainda segundo Jesus, pode ter uma outra finalidade. Ela pode ser usada para confundir os ouvintes e fazer com que eles não entendam o que está acontecendo. É estranho, mas é isso mesmo. Tal intencionalidade está presente numa das narrativas mais conhecidas de Jesus, a dita Parábola do Semeador. Todos já a conhecem. Mas nem todo mundo presta atenção naquele trecho entre a parábola propriamente dita e a explicação dada por Jesus.

Ao findar a parábola, os discípulos perguntam: “Por que falas ao povo em parábolas?” Jesus responde citando o profeta Isaías: “Eles olharão e olharão, mas não conseguirão ver; eles escutarão e ouvirão, mas não conseguirão entender. Isto acontecerá para que eles não venham a arrepender-se e a ser perdoados de seus pecados.”

A constatação de Jesus é desoladora. Para ele e para os discípulos. E para o seu projeto de levar a cura a todas as pessoas. Como diz Jesus, há pessoas que “nem desenhando” entendem aquilo que pareceria óbvio. Assim como Jesus, às vezes nos perguntamos: se é tão óbvio o que se diz, por que tem gente que não entende de jeito nenhum?

Não sãos os ouvidos o problema. Nem os olhos. O problema está no coração que não permite entender o que os olhos veem e os ouvidos ouvem. Há cegos da vista. Há surdos dos ouvidos. E há cegos e surdos do coração. Para estes, a parábola, por mais clara que seja, é confusão, é ocultamento, é perdição.

Felizmente, como diz o próprio Jesus, há também os corações que acolhem com alegria a semente e produzem trinta, sessenta e cem por um! Esses são a real parábola do futuro que esperamos para toda a humanidade.

e.