Arquivo mensal: fevereiro 2011

Crise no mundo árabe ou crise do capitalismo?

Há algumas semanas estamos acompanhando através dos diversos meios de comunicação – principalmente a Internet – a uma série de manifestações populares de contestação aos regimes vigentes nos países de população majoritariamente árabe. Primeiro foi a Tunísia, depois do Egito e agora no Iemen, Bahrein, Líbia, Marrocos… É todo um mundo em ebulição. É um momento que lembra muito os anos 70 e os diversos movimentos revolucionários da América Latina, especialmente a América Central.
Naquela época, Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Colômbia, Peru, entre outros, viviam guerras civis que enfrentavam os exércitos nacionais, trinados, financiados e dirigidos pelas diversas agências militares norte-americanas com movimentos revolucionários que se identificavam como socialistas e que pretendiam reproduzir no continente o modelo político e econômico da Europa do Leste e de Cuba. Baseados numa ideologia secular – o comunismo – estes movimentos revolucionários pretendiam derrubar o capitalismo – tanto na sua dimensão nacional como na internacional – e criar condições de autonomia para os países do continente e melhores condições de vida para seus habitantes.
Os atuais movimentos populares do mundo árabe não são motivados por uma ideologia política secular, mas por uma motivação religiosa – o islamismo – que, sim, inclui uma proposta política: a implantação da lei islâmica – a sharia – como forma de reger as relações entre os habitantes destes países e purificá-los da presença opressora dos estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos.
Alguns noticiários e alguns analistas políticos apresentam a irrupção destes movimentos como uma grande novidade e até mesmo como uma grande surpresa. Um olhar mais atento, no entanto, nos deixa ver que não há novidade nenhuma no que está acontecendo no Norte da África e no Oriente Próximo. Em 1979 a Revolução Islâmica no Irâ foi o primeiro movimento revolucionário inspirado pelo Islã a implantar uma República com base na lei islâmica. Em seguida tivemos o Afeganistão e o governo dos estudantes de teologia, os talibãs. A vitório da Frente Islâmica de Salvação na Argélia nas eleições de 1991 e o consequente Golpe Militar que se estendeu numa guerra civil com mais de 300 mil mortos… Depois veio a Al-Qaeda e o Hezbollah que, numa atuação internacional, buscam a expulsão da presença norte-americana e ocidental e a implantação de regimes islâmicos.
Por trás de tudo, a dependência norte-americana, européia e japonesa do petróleo depositado sob as areias dos desertos do Oriente Próximo. As duas Guerras Mundiais contra o Iraque deixaram a problemática do petróleo completamente explícita.
Visto numa perspectiva longa do tempo, a agitação nos países árabes é mais um episódio da longa crise do capitalismo do século XX. Crise que teve seus momentos fortes na Primeira Guerra Mundial, na ascenção dos regimes naz-fascitas na Europa que culminou com a Segunda Guerra Mundial, a simbólica Guerra do Vietnã, as lutas pela independência na África,a s guerrilhas socialistas dos anos 60 e 70 na América Latina, a reconfiguração da África Negra nos anos 80 e 90 e, agora, a eclosão islâmica no mundo árabel.
Onde tudo isso vai levar? Como diriam os norte-americanos, nobody nows! O mais provável é que tudo ainda tenha apenas terminado de começar. Muitos episódios nos aguardam. Duros e sanguinários, muito provavelmente. O único que podemos fazer é solidarizar-nos com as dores de tantos homens, mulheres, velhos e crianças que sofrem as consequências de uma situação que eles não criaram e muito menos desejaram. E pedir a Deus, chamê-mo-lo de Deus-Trindade ou de Allá, que destas dores de parto nasça uma nova realidade de vida para estas nações.

Chico Anísio e Tiririca

Desde 02 de dezembro o humorista Chico Anísio está internado num hospital do Rio de Janeiro com problemas cardíacos e pulmonares. No noticiário de hoje (15 de fevereiro) anunciou-se que está fazendo fonoterapia para recuperar a articulação da fala.
Chico Anísio é um dos personagens mais antigos da minha memória televisiva. Na metade dos anos 70, eu ainda criança, no interior (sic!) de Vila Flores, conheci-o no delecioso programa humorístico Chico City da Globo onde ele encarnava um cem número de personagens. Toda quinta-feira nosso programa era ir até o vizinho abastado que tinha conseguido comprar uma televisão (preto e branco) e, toda a vizinhança reunida, nos deleciávamos com o humor politicamente correto – para os tempos da ditadura – do nobre cearense.
De todos os personagens de Chico Anísio, os que mais me marcaram foram o Bento Carneiro e o Washinton, “o comunista mais comunista que todos os outros comunistas”.
Diante da prolongada internação do ator, dois toques de humor (é a melhor maneira para falar de Chico Anísio) vem à minha mente. O primeiro é que, ao sair do hospital, talvez um dos personagens que Chico venha a encarnar para diante seja o de um doutor. Segundo, um homem que soube tão bem trabalhar a multiplicidade de tons e sons, agora, fazendo fonoterapia, certamente terá capacidade de criar muitas outras vozes e assim nos divertir ainda mais.
Se eu pudesse, daria uma sugestão para o Chico Anísio: criar um personagem a partir do “palhaço” Tiririca! Talvez, com isso, a mídia oficial o promova (ao Tiririca) ao nível de humorista.

O outro mundo possível chama-se Ecossocialismo

Nova York, Estados Unidos – Joel Kovel, que teve um destacado papel em várias edições do Fórum Social Mundial (FSM), que nesta semana acontece em Dacar, afirma que o movimento deve ter por base uma prática e uma lógica anticapitalistas. Considerado o pai do movimento Ecossocialista, Joel analisa a história, trajetória e o futuro do movimento. Também é um dos autores do Manifesto Ecossocialista, que detalha um caminho alternativo ao atual de destruição ambiental. Joel disse à IPS que é preciso dar nome a este “outro mundo” e posicioná-lo firmemente contra a ameaça do capital global.


IPS: Qual foi seu papel nas edições anteriores do FSM?

JOEL KOVEL: Ecossocialismo é um conceito inerentemente global, não internacional, por isso o FSM é um lugar ideal para discutir suas principais ideias. Apresentamos o manifesto em Nairóbi em 2007, e o revisamos com um grupo de centenas de pessoas. O Ecossocialismo cresce magnificamente no terceiro mundo, mas é o quarto mundo, dos indígenas e dos povos sem Estado, o que realmente está à frente neste assunto. As pessoas do quarto mundo vivem em relações comunitárias e são vítimas diretas das corporações mineradoras e petroleiras predadoras que se enfiam no coração da terra e destroem as comunidades que são parte do solo. Por isso, dependemos do espaço único do FSM para difundir as ideias do Ecossocialismo.

IPS: O que se discute no FSM sobre a crise ecológica é suficiente?

JK: O FSM tende a se concentrar em áreas específicas dentro do assunto mais amplo do ecocídio, ou ecodestruição, como as sementes geneticamente modificadas ou a acidificação dos oceanos e o desmatamento. É preciso atender esses assuntos, mas não é suficiente para lidar com a magnitude da crise, que exige um diagnóstico muito mais amplo do que apenas das causas subjacentes do problema. Há pouquíssimo rigor teórico ou agudo sobre a crise ecológica em geral no FSM por muitas razões. As pessoas estão tão aterradas, há tantas causas válidas para se lutar, os problemas são difusos, com diferentes assuntos arraigados em localidades dispersas e ninguém pode decidir quais são os limites entre uma crise e outra. São tantas interrogações, como a de quando a crise dos oceanos passou para a atmosfera. É compreensível que as pessoas se mostrem reticentes em questões simples como a proliferação das garrafas de plástico.

IPS: O que o FSM pode dar de novo para avançar rumo a uma solução?

JK: Atualmente existe um problema de definição no FSM. Surgem diferentes questões que são transtornos ecossistêmicos, como a dúvida de quando se destroi a floresta pela monocultura, por exemplo. Cada crise ecossistêmica tem sua própria realidade concreta e localização específica, como o desastre de Bhopal, na Índia. A verdadeira crise ecológica é o conjunto de todas elas, que se agravam com rapidez, se propagam pelo mundo e aumentam de forma exponencial. Se quisermos encontrar a causa das diferentes crises sistêmicas, devemos olhar todas elas em conjunto e encontrar o que têm em comum. Cada problema tem sua própria causa, mas, virtualmente cada uma está vinculada à expansão capitalista e pode-se seguir seu rastro até a porta de um banco ou uma potência imperial. Se o FSM pretende atender o problema, deve identificar e articular a questão do capital global, que pode ser pensada de forma metafórica como um câncer que apresenta metástase. Sem importar a forma escolhida para tratar a doença, deve-se reconhecer que é uma realidade.

IPS: Em que o FSM mudou desde sua primeira participação em 2003?

JK: Infelizmente, o FSM tem tendência a girar em falso devido aos limites inerentes ao seu lema de “outro mundo é possível”, que é repetido até cansar e acaba sendo desanimador porque nunca chega a ser realmente desenhado. Porém, fato é que o FSM é o único lugar no qual se pode articular uma nova realidade, não apenas pensar na possibilidade de uma. Logicamente, deveríamos poder dizer que este “outro mundo” é o do Ecossocialismo. Entretanto, dada a natureza das organizações não governamentais e sua especialização em certas crises, o FSM não se refere o suficiente à causa da crise do capitalismo. O Fórum deve identificar o inimigo e lhe responder.

IPS: Pensa que Dacar oferece uma oportunidade para consegui-lo?

JK: Totalmente. A África é um dos lugares mais vulneráveis da Terra, o que é tremendamente irônico, pois é o menos industrializado do planeta. O continente é saqueado pela desapiedada extração de recursos como em nenhum outro lugar do mundo, em primeiro lugar porque é rico. E, em segundo, pela falta de proteção para deter a chegada das companhias. Há mais incentivos na África para começar a pensar de forma sistêmica. Dacar também é um centro mundial de pesquisa em ecologia, muito mais do que Nairóbi, e até mesmo do que Mumbai. O calibre geral dos intelectuais de esquerda presentes é extremamente alto no Senegal..

IPS: O que o FSM pode fazer para lidar com os desafios apresentados no Fórum Econômico Mundial que acontece quase simultaneamente?

JK: É preciso basear-se firmemente em uma prática e uma lógica anticapitalistas. É difícil, mas certamente possível. Creio que acima de tudo o FSM é um lugar onde a grande variedade de tendências se encontra, conscientes de que seus diferentes problemas são sistemáticos e têm a ver com a penetração do império e do capital global em cada rincão da Terra. Para continuar com a analogia médica, se você tem um paciente com um tumor no pâncreas, só é possível tratá-lo se os médicos concordarem que se trata de câncer. Só a partir daí se pode reunir e pensar no remédio, e há muitíssimas formas de curar isto. Envolverde/IPS

“Programa de renda negligencia mulheres”

Políticas de proteção social raramente consideram a desigualdade de gênero, apesar de a pobreza feminina ser mais grave.

Apesar das evidências de que a pobreza afeta mais as mulheres, os programas de proteção social — como os de transferência de renda ou de frentes de emprego — negligenciam as desigualdades entre os sexos, avaliam as cientistas sociais Rebecca Holmes e Nicola Jones, do Instituto de Desenvolvimento Ultramarino, com sede em Londres.

“Poucos programas sociais têm como objetivo primordial aumentar a autonomia de meninas e mulheres ou transformar as relações de gênero”, escrevem as pesquisadoras na edição mais recente da Poverty in Focus, revista do CIP-CI (Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo), um órgão do PNUD em parceria com o governo brasileiro.

Em alguns casos, o problema simplesmente não é abordado. Em outros, a única medida adotada é incluir as beneficiadas como pessoa responsável por receber o dinheiro. Essa abordagem, argumentam as autoras, “resulta num conceitualização estreita das vulnerabilidades de gênero e num foco que apoia as responsabilidades domésticas tradicionais das mulheres”.

Raramente as políticas priorizam a transformação das relações domiciliares de modo a assegurar que o ganho de renda no lar seja alocado igualmente. Também são poucos os exemplos de programas que enfrentam as desigualdades de poder de decisão e de distribuição do trabalho dentro de casa.

Ao adotar essas estratégias, avaliam as pesquisadoras, os programas sociais abordam os riscos e vulnerabilidades econômicos, mas dão pouca atenção às dimensões sociais, como desigualdade de gênero, discriminação social e relações desiguais de poder. E, “para muitas populações pobres e marginalizadas, as fontes sociais de vulnerabilidade são frequentemente tão ou mais importantes”.

Uma pesquisa feita pelo Instituto de Desenvolvimento Ultramarino detectou alguns programas que tentam conciliar as duas abordagens – em Bangladesh, Gana, Peru, Etiópia, Índia e México. Há projetos que tentam facilitar o acesso de mulheres e meninas à escola e ao sistema de saúde, sobretudo durante a gravidez e a amamentação. Em outros, os benefícios em forma de dinheiro ou víveres são acompanhados de cursos de conscientização sobre violência de gênero. O mapeamento também encontrou iniciativas em que se estimulam a participação e a liderança feminina na comunidade, inclusive em debates que decidam o rumo dos programas.

Algumas ações de frente de emprego (em que se paga para o beneficiado exercer um serviço público) construíram creches e permitiram que as trabalhadoras tivessem horários mais flexíveis, contam as autoras. Outras incluíram a construção de estruturas que fazem com que as mulheres percam menos tempo em trabalhos domésticos (por exemplo: fonte de água potável próxima à comunidade, para que elas não tenham que se deslocar até outro local).

Mesmo esses programas, porém, ainda enfrentam desafios para promover a autonomia das mulheres (ou “empoderamento”), como destaca o texto. Algumas frentes de emprego, por exemplo, de fato aumentaram a renda feminina e ofereceram formas não abusivas de trabalho, mas preconceitos arraigados dificultaram a redução da desigualdade.

O artigo aponta que, como às vezes se assume que há alguns trabalhos que não são apropriados para mulheres, os homens em média ganham mais e elas trabalham menos dias. No Peru, as mulheres de fato participaram das discussões, mas isso tornou ainda mais difícil para elas conciliar as outras tarefas.

O ideal, avaliam as cientistas sociais, é estabelecer vínculos mais estreitos entre esses programas as políticas econômica e social. “Quando os instrumentos de proteção social são parte de um pacote maior da política econômica e social, eles têm mais probabilidade de ajudar a transformar as relações entre homens, mulheres, meninos e meninas.”