Faz agosto em Porto Alegre. Apesar dos 24 graus, o inverno ainda não se foi. Ainda é cedo para se dizer primavera. Frio e calor se alternam num grenal de temperaturas que seguirá até setembro ou outubro. Ninguém sabe. Cada ano é diferente. Cada semana é uma semana. E cada dia é uma caixa de surpresas. Faz parte… Somos sobreviventes neste clima abrupto, intermitente, impaciente.
Impaciente como os cinco ipês rosas que habitam o pátio da casa onde moro. Basta um pouco de calor de agosto – às vezes até mesmo em julho – e logo saltam suas flores que contrastam com o verde das figueiras, mangueiras e jacas. Sim! Em Porto Alegre também há mangueiras e jacas. Um ou dois dias de sol bastam para que os ipês ocupem todo o espaço ao meio e acima das outras árvores. A cada dia, a cada hora, novos brotos, novas flores, um brilho cada vez maior a fascinar os olhos e a mente.
Mas como ainda é agosto, nem termina a floração e uma frente fria patagônica varre com seu gélido sopro os pampas, a serra, invade as ruas do Porto (nem sempre) Alegre, sobe a lomba do Santo Antônio e os ipês, num movimento instintivo de proteção, recolhem sua seiva, encolhem suas flores e pouco a pouco, uma atrás da outra, vão tombando ao chão formando um róseo tapete a enfeitar a grama, as ervas, a lama que se forma com a chuvisca intermitente que tudo volta a congelar. Ainda é inverno em Porto Alegre…
Entre uma pétala e outra que surdamente caem, fico a ouvir as muitas vozes que falam da menina capixaba de dez anos estuprada durante quatro anos por seu tio e que resultou grávida. Vozes que gritam para defendê-la. Vozes que rugem pra condená-la. Pobre menina pobre. Tão pobre, como diz o poeta, que até ficou negra como tantas negras de quatrocentos anos de escravidão obrigadas a carregar seus filhos presos aos grilhões da servidão em seus próprios ventres. Filhos que, quando nasciam, eram vendidos pelos próprios pais. Faz pouco isso acontecia. Há apenas 150 anos a Lei do Ventre Livre chegou. Mas muitos ventres continuam presos, escravizados à sanha de machos que se acham donos dos corpos das mulheres, antes mesmo que a natureza as faça entender que são mulheres.
Uma entre tantas meninas estupradas e obrigadas a gestar e parir um rebento fruto de um crime. Vinte e duas mil, dizem as estatísticas oficiais. Na realidade, muito mais numerosas, pois nem todas tem a dupla infelicidade de sofrerem o abuso e de serem expostas publicamente como objeto de disputa política em tempos de fascismo moralista que faz da repressão de gênero um instrumento de dominação política.
Onde estava a mãe dessa menina? Onde estava a avó desta menina? Perguntam inquisidores legais, morais e religiosos escondidos atrás de suas togas, túnicas e gravatas. Ninguém pergunta pelo estuprador. Nem pelo pai e nem pelo avô. O primeiro está foragido. O segundo, assim como o terceiro, não se indaga sua presença. Faz parte da “cultura” brasileira responsabilizar as mães e as avós sobre a educação dos filhos e filhas. Se aconteceu o que aconteceu, a culpa é da menina. A culpa é da mãe. A culpa é da vó. A culpa é das mulheres. Talvez alguém pergunte que tipo de roupa a menina estava usando quando foi estuprada pelo tio… Nunca se sabe o tamanho e o limite da hipocrisia. Talvez seja infinita. Ou incurável. Temo.
Volto aos ipês e suas roupas rosas. Logo serão relevados pelos ipês de roupas amarelas e, mais raros, os de roupas brancas e verdes. Estes últimos, raríssimos, discretos, belos, singelos. Derramadas pelo chão, as pétalas rosas olham para o alto e observam os galhos, outra vez desnudos, a preparar novos brotos para a segunda floração. Apesar do frio que enrijece a pele e fere o coração, as flores voltarão. Estamos no mês de agosto. Ainda é inverno. Intermitente inverno. Renitente inverno. Quase um inferno de um minuano macho que tudo quer penetrar.
Mas o ipê está a anunciar que logo a primavera virá. E as árvores todas – paineiras com suas sestrosas flores rosa, guapuruvus a colorir o céu de amarelo, jacarandás com seu provocante lilás – para sempre desabrocharão em todas as casas, em todos os pátios, em cada rua, esquina, praça, parque, num arco-íris de esperança e liberdade onde as meninas de seis a dez anos poderão brincar sem medo, de boneca, de carrinho, de escola, de bola… do que quiserem!