O papa não confia no homem

por Gianni Carta

Intitulada Caritas in veritate, a terceira encíclica do papa Bento XVI foca nos grandes problemas provocados pela globalização na vida do homem, “o primeiro capital a salvar e a valorizar”. Oportunamente divulgada na terça-feira 7, às vésperas da cúpula do G-8 em L’Aquila, na Itália, Caridade na Verdade é uma encíclica social – mas está longe de ser revolucionária.

Há mais de um século a Igreja Católica busca a justiça social em prol do “bem comum”. Em 1891, Leão XXIII publicava Rerum novarum, texto, este sim então revolucionário, o qual, na alvorada do capitalismo industrial, estimulava o desenvolvimento de um sindicalismo cristão. Mais recentemente, em 1991, o conservador João Paulo II divulgou Centesimus annus, encíclica nada revolucionária na qual o papa reconheceu aspectos positivos na economia de mercado – que visaria ao bem comum. A encíclica Cem Anos foi publicada logo após o colapso da União Soviética.

Caritas in veritate surpreende porque revela um Joseph Ratzinger mais complexo do que se supunha: arguto, compreensivelmente tendencioso (a favor de ideias da Igreja Católica), e ideologicamente confuso. Arguto porque reconhece que os percalços da globalização não são inerentes ao mercado globalizado em si. Os percalços nascem da natureza do homem, este marcado pelo “pecado das origens”. E este é um ponto fundamental na terceira encíclica do alemão Ratzinger: o homem, de forma geral, é inconfiável. Tal percepção é válida do ponto de vista do crente (que acredita no “pecado das origens”), do político conservador ou liberal.

Na verdade, essa capacidade de compreender a essência do homem por parte do papa não surpreende. Ratzinger, de 82 anos, é catedrático de alto calibre. Embora não tenha o carisma de seu antecessor, e tenha expressões faciais um tanto sinistras, ao longo dos anos produziu dezenas de livros e fez inúmeras eloquentes conferências.

Bento XVI fornece, para ilustrar os limites do homem, exemplos para detalhar algumas lacunas do ser humano. Por exemplo, o empresário para o qual “o lucro torna-se seu objetivo exclusivo, e se (o lucro) for produzido por meios impróprios e sem o bem comum como fim principal, arrisca destruir a riqueza e criar pobreza”. A pobreza, por sua vez, afeta as democracias. Os poderosos das finanças, acrescenta Ratzinger, precisam “redescobrir o genuíno fundamento ético de suas atividades”.

A questão parece simples. Mas está longe de sê-lo. A pessoa ligada às finanças visa, óbvio, o lucro. Ela pode ou não ser ética em suas operações. O mesmo se aplica ao político conservador, de centro ou de esquerda. Mas o homem, com as claras exceções, falhou no capitalismo, no comunismo e na religião. Basta ver o atual estado do capitalismo mundial, o colapso do comunismo e o decrescente nível de religiosos praticantes.

E aqui chegamos ao segundo ponto acima mencionado: o papa é tendencioso. Ele precisa, claro, defender as doutrinas do Pontificado e seus 2 mil anos de existência. Um ser avaro pode corrigir suas fraquezas, ou improbidades, buscando valores espirituais, e principalmente aqueles cristãos, nos diz Ratzinger. O papa acrescenta: “O ateísmo subtrai dos cidadãos a força moral ou espiritual para se engajar a favor do desenvolvimento humano”. O papa indaga, já implicitamente dando sua resposta: “Um humanismo sem Deus é possível?” Isso significa que um homem ateu ou agnóstico, ou simplesmente não praticante, não pode ter força moral ou espiritual?

O terceiro ponto de Caritas in veritate, já citado acima, chama atenção: a confusão ideológica do papa. Antes de adentrar o campo social de reformas pedidas por Bento XVI, vale colocá-lo no seu contexto histórico. Já no número especial de quinze anos de CartaCapital, publicado em 27 de maio, recordamos quem é Ratzinger. Ex-líder da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Inquisição) a partir de 1981 sob João Paulo II, o alemão praticamente varreu do mapa católico a Teologia da Libertação, que pregava na América Latina uma Igreja voltada aos humildes e explorados.

O movimento ganhou espaço por duas- razões: a região concentra mais de 500 milhões de católicos. Nos anos 60, quando os teólogos da libertação se disseminaram, vários países eram controlados por ditaduras sangrentas. O objetivo da Teologia da Libertação era trazer mais solidariedade e humanidade para os pobres oprimidos por regimes totalitários. Nos anos 80, Ratzinger se opôs ao movimento latino-americano. Convenceu João Paulo II, sem grandes dificuldades, de que o movimento era perigoso à própria sobrevivência da religião porque tinha um viés marxista, de libertação nacional. Habilmente, Ratzinger lembrou ao polonês João Paulo II que regimes ateus e totalitários, como o soviético que dominou sua Polônia natal, chegaram ao poder por meio de revoltas populares.

Agora, com o naufrágio do comunismo e do capitalismo selvagem, Ratzinger adotou um discurso mais humanista e parecido com o dos teólogos da Libertação – e longe daquele propício ao líder da Congregação para a Doutrina da Fé. A economia global precisa ser regulamentada, prega Ratzinger. Motivo: a globalização não se revelou funcional. O nível de desemprego cresce em todo o mundo e Ratzinger lamenta o declínio da Previdência Social, e escreve sobre a importância de sindicatos para proteger os trabalhadores. “Trabalho para todos”, acentua. É preciso lutar contra a precariedade.

A pobreza, continua o pontífice, cria disparidades entre ricos e pobres e coloca a democracia em risco. Quanto à economia, precisa de ética. Para concluir sem originalidade, que a falta de ética no sistema financeiro provocou a atual crise econômica mundial.

Para regulamentar a economia mundial, Bento XVI crê que o papel do Estado precisa ser “repensado”. Estados têm de agir em sintonia com os organismos financeiros como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. De fato, Ratzinger crê que a ONU pede por uma reforma para se tornar uma verdadeira autoridade política mundial. A instituições como o FMI, ele também não poupa críticas: “(Elas) requisitaram cortes no orçamento social no Terceiro Mundo”.
Um flechada de Ratzinger nas organizações não-governamentais (ONGs) é merecida: “Acontece, por vezes, que os destinatários das ajudas se tornem funcionais a quem os ajuda, e os pobres servem para manter em vida ricas organizações burocráticas”. Bento XVI pede maior transparência por parte da ONU e das ONGs. De fato, é hora.

A encíclica ganhou elogios por seu corte social e pode nos ajudar a refletir sobre o futuro. Mas não oferece respostas concludentes.

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