Pasolini e a Biblia

Enrique Irazoqui, o ator que viveu Cristo, e Pier Paolo Pasolini nos bastidores de O evangelho segundo Mateus | Imagem: reprodução http://cineugenio.blogspot.com

No dia 16 de setembro passado, na Itália, faleceu o ator Enrique Irazoqui. Sua morte pouco foi noticiada. Poucas pessoas sabem quem foi Enrique Irazoqui. Não é de estranhar. Ele atuou em poucos filmes. E o único que se tornou conhecido foi seu primeiro, no qual representou o principal personagem. E isso faz tempo. Muito tempo. Foi na década de 1960.

Enrique Irazoqui era estudante em Barcelona e, durante a ditadura de Franco, foi à Itália buscar apoio para o movimento estudantil espanhol. Em Roma, encontrou-se com o cineasta Pier Paolo Pasolini. Ateu, anticlerical, comunista e homossexual, Pasolini estava trabalhando num projeto controverso: produzir um filme sobre a vida de Jesus tendo como roteiro o Evangelho de Mateus.

Pelo seu perfil pessoal e pela sua proposta, ninguém se arriscava a financiar o projeto. Sem dinheiro, Pasolini buscava atores amadores que custassem pouco e dessem um tom realista à produção. O jovem Irazoqui lhe pareceu o ideal para representar a Jesus.

Diante da insistência de Pasolini, o estudante aceitou a proposta. Enfrentando muitas dificuldades e a oposição da Igreja, o projeto foi adiante. Na sua estreia no Festival de Veneza, em 1964, o filme recebeu o Prêmio Especial do Júri. Sucesso em todo o mundo, em 2004, L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, considerou a produção de Pasolini o melhor filme sobre Jesus Cristo de todos os tempos.

O que havia de diferente neste filme que o fez tão especial? Dentre as muitas qualidade da obra, uma foi fundamental. Ateu, anticlerical, comunista e homossexual, Pasolini leu o texto do Evangelho de Mateus e o transportou, literalmente, para a tela, despido de qualquer preconceito religioso. O Jesus de Pasolini interpretado por Enrique Irazoqui é tal e qual o apresentado pelo Evangelho de Mateus: um Jesus humano, simplesmente humano, profundamente humano, tão humano que criava o espaço pleno para que Deus nele se manifestasse totalmente.

Além de uma excepcional obra de arte, o Jesus de Pasolini interpretado por Irazoqui é uma magistral lição de como ler a Bíblia. Para entender os Evangelhos e todo o texto sagrado, o caminho adequado é deixar que o texto nos leia no seu realismo humano. E isso tem sua razão. A Bíblia é a Palavra de Deus dita nas mais diversas situações humanas. Situações de alegria, de esperança, de desespero, de dor, de desolação e desilusão. É nelas, no mais humano do humano, que a presença de Deus faz nascer a fé e, através da caridade, alimenta a esperança.

Como bem lembrou o Concílio Vaticano II e insistentemente reiterou o Papa Bento XVI na Exortação Apostólica Verbum Domini, a palavra de Deus por excelência não é o texto que lemos. A mais concreta e verdadeira palavra divina está na humanidade de Jesus que os textos escritos e transmitidos nos permitem reconhecer e constrói o caminho que nos conduz a Deus. Se não reconhecemos na humanidade de Jesus e na humanidade dos humanos a presença viva de Deus, a Bíblia não passa de um simples texto, letra morta, que em nada edifica. Assim como Pasolini o fez através do personagem de Enrique Irazoqui, para reconhecer o verdadeiro rosto de Jesus presente na Bíblia, é preciso muitas vezes despir-nos dos preconceitos religiosos e deixar que ela nos fale e nos leia em nossa própria humanidade. Então, sim, ela será palavra viva e vivificante para o mundo.

 

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