Ano passado eu morri…

…mas esse ano eu não morro! Assim cantava Belchior na música “Sujeito de Sorte”, gravada primeiro por ele, na sequência por muitos intérpretes e ultimamente tornada outra vez famosa na voz de Emicida que a regravou pensando no povo negro do Brasil – especialmente os mais jovens – que estão sempre sob o risco de serem mortos pela polícia pelo simples fato de serem negros e, em sua maioria, pobres.

A música me veio à mente ao pensar no Evangelho do Quinto Domingo de Quaresma em que Jesus faz seu amigo Lázaro voltar à vida. Lázaro, assim como o compositor a que nos referimos, é um “sujeito de sorte”. Ele teve a sorte de ser amigo de Jesus e por isso, depois de morto, voltar à vida. O Evangelho de João não diz de que Lázaro morreu. Provavelmente por alguma “doença de pobre” tão comum na Palestina naquela época: tuberculose, hanseníase, esquistossomose, malária, helmintíase, tracoma… Ou então foi vítima do trabalho exaustivo e da fome, da violência da polícia do Templo ou das forças de ocupação romana. As mesmas causas que provocam, a cada ano, milhões de mortes não só nos países empobrecidos, mas também nos países ricos.

Lázaro foi um sujeito de sorte. Jesus, avisado por Marta e Maria, veio e mandou que tirassem a pedra que tapava o sepulcro e ordenou que Lázaro viesse para fora. Mas Lázaro ainda estava amarrado pelos laços da morte e não podia caminhar. Ele estava vivo, mas ainda preso pela morte. Como diz Belchior, ele ainda sofria o sofrimento do ano passado. A morte do passado ainda dominava o presente daquele que tinha voltado à vida. Era preciso não apenas fazê-lo reviver, mas livrá-lo do que tinha causado sua morte para que não voltasse a morrer. Imagino que, se Lázaro conhecesse Belchior ou Emicida, ele também cantaria com Jesus: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” porque fui libertado daquilo que causou a morte “e assim já não posso sofrer no ano passado”.

A morte pode ser, no seu acontecer, um evento pontual. Mas, na maioria dos casos, tem causas estruturais que enraízam no passado de nossa sociedade e se expressam em nossa história familiar e pessoal. Há laços mortais que perpassam gerações e gerações e continuam matando hoje como matavam no tempo de Jesus. Laços fatais que mataram nossos pais e que continuarão a matar nossos filhos e netos se nós não tivermos a coragem de tirar as pedras, cortar as cortas da morte e queimá-las para que não voltem a amarrar a ninguém mais.

Não tenho a certeza, como a tinha o cantor nordestino, de “Deus é brasileiro”. Mesmo assim, com ele compartilho a constante sensação de que Ele “anda sempre a meu lado” e, na Sua Páscoa, tivemos removida a pedra que nos matava e desatados os laços que nos impediam de caminhar.

Por isso olho sempre e cada vez para diante na certeza de que, se no ano passado quase morremos, esse ano e no futuro, temos o compromisso de deixar que ninguém morra.

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